Versos de Carlos Drummond de Andrade

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O essencial é viver!

Os homens igualam-se na dor e diversificam-se na alegria.

Se por algum motivo você estiver triste, se a vida te deu uma rasteira e a outra pessoa sofrer o seu sofrimento, chorar as suas lágrimas e enxugá-las com ternura, que coisa maravilhosa: você poderá contar com ela em qualquer momento de sua vida.

Ela promete ser boazinha, não destruir, mas depois esquece.

E no mar estava escrita uma cidade...

Que século, meu Deus! - exclamaram os ratos e começaram a roer o edifício.

O importante não é estar aqui ou ali, mas ser. E ser é uma ciência delicada, feita de pequenas observações do cotidiano, dentro e fora da gente. Se não executamos essas observações, não chegamos a ser: apenas estamos, e desaparecemos.

De tudo fica um pouco. Não muito.

Depois, cantou “se mil vezes você me deixar e voltar, eu aceito”.

Quem não namora, tirou férias não remuneradas de si mesmo.

Te amo, porque te amo.

Todo mundo é bom quando não usa a cabeça.

Uma eleição é feita para corrigir o erro da eleição anterior, mesmo que o agrave.

Sofremos por quê? Porque automaticamente esquecemos o que foi desfrutado e passamos a sofrer pelas nossas projeções irrealizadas.

O Homem Escrito

Ainda está vivo ou
virou peça de arquivo
sua vida é papel
a fingir de jornal?

Dele faz-se bom uso
seu texto é confuso?
Numa velha gaveta
o esquecem, a caneta?

Após tantos escapes
arredonda-se em lápis?
Essa indelével tinta
é para que não minta
mas do que o necessário
é uma sigla no armário?

Recobre-se de letras
ou são apenas tretas?
Entrará em catálogo
a custa de monólogo?

Terá número, barra
e borra de carimbo?
Afinal, ele é gente
ou registro pungente?

No pequeno museu sentimental

No pequeno museu sentimental
os fios de cabelo religados
por laços mínimos de fita
são tudo que dos montes hoje resta,
visitados por mim, montes de Vênus.

Apalpo, acaricio a flora negra,
a negra continua, nesse branco
total do tempo extinto
em que eu, pastor felante, apascentava
caracóis perfumados, anéis negros,
cobrinhas passionais, junto do espelho
que com elas rimava, num clarão.

Os movimentos vivos no pretérito
enroscam-se nos fios que me falam
de perdidos arquejos renascentes
em beijos que da boca deslizavam
para o abismo de flores e resinas.

Vou beijando a memória desses beijos.

"Em vão me tento explicar, os muros são surdos."
"Sob a pele das palavras há cifras e códigos."

Professorinha ensinando à crianças; a adultos; ao povo;
toda a arte de ser, sem esconder o ser.


(Trecho de Drummond, no dia da morte de Leila)

Sentimento do Mundo

Tenho apenas duas mãos
e o sentimento do mundo,
mas estou cheio de escravos,
minhas lembranças escorrem
e o corpo transige
na confluência do amor.

Quando me levantar, o céu
estará morto e saqueado,
eu mesmo estarei morto,
morto meu desejo, morto
o pântano sem acordes.

Os camaradas não disseram
que havia uma guerra
e era necessário
trazer fogo e alimento.
Sinto-me disperso,
anterior a fronteiras,
humildemente vos peço
que me perdoeis.

Quando os corpos passarem,
eu ficarei sozinho
desfiando a recordação
do sineiro, da viúva e do microcopista
que habitavam a barraca
e não foram encontrados
ao amanhecer

esse amanhecer
mais noite que a noite.

Carlos Drummond de Andrade
ANDRADE,C. D. de. Sentimento do Mundo. p.11. 1ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2012

A tarde talvez fosse azul,
não houvesse tantos desejos.

Carlos Drummond de Andrade
Poesia até agora. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1948.

Nota: Trecho do Poema de sete faces.

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