Versos de Clarice Lispector
Sejam vocês mesmas! Estudem cuidadosamente o que há de positivo ou negativo na sua pessoa e tirem partido disso. A mulher inteligente tira partido até dos pontos negativos. Uma boca demasiadamente rasgada, uns olhos pequenos, um nariz não muito correto podem servir para marcar o seu tipo e torná-lo mais atraente.
Desde que seja seu mesmo.
Qual é mesmo a palavra secreta? Não sei é porque a ouso? Não sei porque não ouso dizê-la?
Sinto que existe uma palavra, talvez unicamente uma, que não pode e não deve ser pronunciada. Parece-me que todo o resto não é proibido. Mas acontece que eu quero é exatamente me unir a essa palavra proibida. Ou será? Se eu encontrar essa palavra, só a direi em boca fechada, para mim mesma, senão corro o risco de virar alma perdida por toda a eternidade. Os que inventaram o Velho Testamento sabiam que existia uma fruta proibida.
As palavras é que me impedem de dizer a verdade.
Na hora do acontecimento não aproveito nada. E depois vem uma ilógica saudade. Mas é que o tempo presente, como a luz de uma estrela, só depois é que me atingirá em anos-luz. Na hora não chego a perceber do que se trata. Parece-me que só sou sensível e alerta na recordação. Quase que vivo, pois, no passado por não reconhecer a espécie de riqueza do momento atual.
O esquecimento das coisas é minha válvula de escape. Esqueço muito por necessidade. Inclusive estou tentando e conseguindo esquecer-me de mim mesmo, de mim minutos antes, de mim esqueço o meu futuro. Sou nu.
– Você tem paz, Clarice?
– Nem pai nem mãe.
– Eu disse “paz”.
– Que estranho, pensei que tivesse dito “pais”. Estava pensando em minha mãe alguns segundos antes. Pensei – mamãe – e então não ouvi mais nada. Paz? Quem é que tem?
Escrevo-te toda inteira e sinto um sabor em ser e o sabor-a-ti é abstrato como o instante. é também com o corpo todo que pinto os meus quadros e na tela fixo o incorpóreo, eu corpo a corpo comigo mesma. Não se compreende música: ouve-se. Ouve-me então com teu corpo inteiro. Quando vieres a me ler
perguntarás por que não me restrinjo à pintura e às minhas exposições, já que escrevo tosco e sem ordem. É que agora sinto necessidade de palavras – e é novo para mim o que escrevo porque minha verdadeira palavra foi até agora intocada. A palavra é a minha quarta dimensão.
Com perdão da palavra, sou um mistério para mim.
(A descoberta do mundo)
Ouve-me, ouve o meu silêncio. O que falo nunca é o que falo e sim outra coisa. Capta essa outra coisa de que na verdade falo porque eu mesma não posso.
(Água viva)
E umas das coisas que aprendi é que se deve viver apesar de. Apesar de, se deve comer. Apesar de, se deve amar. Apesar de, se deve morrer. Inclusive muitas vezes é o próprio apesar de que nos empurra para frente. Foi o apesar de que me deu uma angústia que insatisfeita foi criadora de minha própria vida.
E só estou triste hoje porque estou cansada. No geral sou alegre.
É assim porque é assim. Existe no mundo outra resposta? Se alguém sabe de uma melhor, que se apresente e diga, estou há anos esperando.
Existia. Só isto. E eu? De mim só se sabe que respiro.
Quero antes afiançar que essa moça não se conhece senão através de ir vivendo à toa. Se tivesse a tolice de se perguntar “quem sou eu?” cairia estatelada e em cheio no chão. É que “quem sou eu?” provoca necessidade. E como satisfazer a necessidade? Quem se indaga é incompleto.
A realidade é delicada demais, só a realidade é delicada, minha irrealidade e minha imaginação são mais pesadas.
E eis que não entendo o ovo. Só entendo o ovo quebrado: quebrado na frigideira. É deste modo indireto que me ofereço à existência do ovo: meu sacrifício é reduzir-me à minha vida pessoal. Fiz de meu prazer e de minha dor o meu destino disfarçado. Como aqueles que no convento varrem o chão e lavam as roupas, servindo sem a glória de função maior, meu trabalho é o de viver os meus prazeres e minhas dores. É necessário que eu tenha a modéstia de viver.
Suponho que me entender não é uma questão de inteligência e sim de sentir
De entrar em contato... Ou toca, ou não toca.
E, se me achar esquisita, respeite também.
Até eu fui obrigada a me respeitar
Repito por pura alegria de viver:
a salvação é pelo risco, sem o qual a vida não vale a pena!
Que minha solidão me sirva de companhia
Que eu tenha a coragem de me enfrentar
Que eu saiba ficar com o nada e mesmo assim me sentir como se estivesse plena de tudo.
Liberdade é pouco. O que eu desejo ainda não tem nome
Nota: O primeiro pensamento pertence a uma entrevista dada por Clarice em 1977. O segundo e o terceiro são do livro "A descoberta do mundo". O quarto é uma adaptação de um trecho de "Um sopro de vida". O último pensamento é do livro "Perto do coração selvagem".
...MaisQuero escrever o borrão vermelho de sangue com as gotas e coágulos pingando de dentro para dentro. Quero escrever amarelo-ouro com raios de translucidez. Que não me entendam pouco-se-me-dá. Nada tenho a perder. Jogo tudo na violência que sempre me povoou, o grito áspero e agudo e prolongado, o grito que eu, por falso respeito humano, não dei. Mas aqui vai o meu berro me rasgando as profundas entranhas de onde brota o estertor ambicionado. Quero abarcar o mundo com o terremoto causado pelo grito.
O clímax de minha vida será a morte.
Quero escrever noções sem o uso abusivo da palavra. Só me resta ficar nua: nada tenho mais a perder.
Nem tudo o que escrevo resulta numa realização, resulta mais numa tentativa. O que também é um prazer. Pois nem em tudo eu quero pegar. Às vezes quero apenas tocar. Depois o que toco às vezes floresce e os outros podem pegar com as duas mãos.
É preciso coragem. Uma coragem danada. Muita coragem é o que eu preciso. Sinto-me tão desamparada, preciso tanto de proteção... porque parece que sou portadora de uma coisa muito pesada. Sei lá porque eu escrevo! Que fatalidade é esta?
Olhou em torno de si a manhã perfeita, respirando profundamente e sentindo, quase com orgulho, o coração bater cadenciado e cheio de vida.