Um dia Percebemos Mário Quintana
O que eles chamam de nossos defeitos é o que nós temos de diferente deles. Cultivemo-los pois, com o maior carinho – esses nossos benditos defeitos.
Não gosto de estar dormindo nem de estar morto perto de ninguém.
É preciso a saudade para eu te sentir
como sinto – em mim – a presença misteriosa da vida...
Mas quando surges és tão outra e múltipla e imprevista
que nunca te pareces com o teu retrato...
E eu tenho de fechar meus olhos para ver-te!
Segunda canção de muito longe
Havia um corredor que fazia cotovelo:
Um mistério encanando com outro mistério, no escuro…
Mas vamos fechar os olhos
E pensar numa outra cousa…
Vamos ouvir o ruído cantado, o ruído arrastado das correntes no algibe,
Puxando a água fresca e profunda.
Havia no arco do algibe trepadeiras trêmulas.
Nós nos debruçávamos à borda, gritando os nomes uns dos outros,
E lá dentro as palavras ressoavam fortes, cavernosas como vozes de leões.
Nós éramos quatro, uma prima, dois negrinhos e eu.
Havia os azulejos, o muro do quintal, que limitava o mundo,
Uma paineira enorme e, sempre e cada vez mais, os grilos e as estrelas…
Havia todos os ruídos, todas as vozes daqueles tempos…
As lindas e absurdas cantigas, tia Tula ralhando os cachorros,
O chiar das chaleiras…
Onde andará agora o pince-nez da tia Tula
Que ela não achava nunca?
A pobre não chegou a terminar o Toutinegra do Moinho,
Que saía em folhetim no Correio do Povo!…
A última vez que a vi, ela ia dobrando aquele corredor escuro.
Ia encolhida, pequenininha, humilde. Seus passos não faziam ruído.
E ela nem se voltou para trás!
Não gosto do Carnaval porque parece filme histórico italiano.
O ópio
Dizem os comunistas que a religião é o ópio do povo; outros dizem que o ópio do povo é precisamente o comunismo; se pedissem a minha opinião, eu diria que o ópio do povo é o trabalho.
Eles ergueram a Torre de Babel para escalar o Céu. Mas Deus não estava lá! Estava ali mesmo, entre eles, ajudando a construir a torre.
O homem é um bicho que arreganha os dentes sem necessidade, isto é, quando nos sorri.
Delícia de olhar, no céu, os v v v dos voos distanciando-se…
Se alguém acha que estás escrevendo muito bem, desconfia… O crime perfeito não deixa vestígios.
Hoje o que mais se precisa é de silêncios que interrompam o ruído.
Todo poema é uma aproximação. A sua incompletude é que o aproxima da inquietação do leitor. Este não quer que lhe provem coisa alguma. Está farto de soluções.
Tenho uma enorme pena dos homens famosos, que por isso mesmo perderam sua vida íntima e são como esses animais do Zoológico, que fazem tudo à vista do público.
Vivemos conjugando o tempo passado (saudade, para os românticos) e o tempo futuro (esperança, para os idealistas). Uma gangorra, como vês, cheia de altos e baixos – uma gangorra emocional. Isto acaba fundindo a cuca de poetas e sábios e maluquecendo de vez o Homo sapiens. Mais felizes os animais, que, na sua gramática imediata, apenas lhes sobra um tempo: o presente do indicativo. E que nem dá tempo para suspiros...