Trechos pequenos de Fernando Pessoa
Nunca amamos ninguém. Amamos, tão-somente, a ideia que fazemos de alguém. É a um conceito nosso - em suma, é a nós mesmos - que amamos. Isso é verdade em toda a escala do amor.
Nota: Trecho de poema de "Autobiografia sem Factos", de Fernando Pessoa.
Já não sei andar só pelos caminhos,
Porque já não posso andar só.
Eu sei que por algum tempo vou seguir oscilante entre a razão e o desejo. Algumas decisões são tomadas com o coração inquieto e o pensamento tomado por muitas coisas que aconteceram e que acontecem, tudo misturado. Sei também que o tempo vai ser meu amigo para essas coisas da vida. Com coragem eu sigo, nessa velocidade que eu não temo, nem mesmo de ousar ser feliz.
"Amore Mio"
O amor, quando se revela;
Não se sabe revelar;
Sabe bem olhar pra ela;
Mas não lhe sabe falar.
Quem quer dizer o que sente;
Não sabe o que há de dizer;
Fala: parece que mente;
Cala: parece esquecer.
Ah! mas se meus olhos falassem;
"Amore Mio" haveriam de dizer;
Ah! se ela adivinhasse;
Se pudesse ouvir um olhar;
E se um olhar lhe bastasse;
P'ra saber que a estão a amar!;
Mas quem sente muito cala.
Quem quer dizer o quanto sente;
Fica sem alma nem fala.
Fica só inteiramente!
Mas se esta poesia puder contar-lhe;
O que não ouso dizer-lhe.
Já não terei de falar-lhe;
Pois o seu coração;
Haverá de me compreender.
Minha imagem se configurará em seu olhar;
Seu coração pulsará em sintonia ao meu;
Seus lábios proferiram o meu nome;
E o seu desejo se identificará com o meu.
Os meus sonhos não serão somente meus;
Minha vida não será solidão;
Minhas mãos terão calor e afeto;
Meu sorriso não será sem compaixão.
As noites escuras traram novamente estrelas;
O crepúsculo não será tão infecundo;
A aurora trará à luz um novo tempo;
E minh'alma arderá no fogo da paixão... certamente, um NOVO MUNDO.
E não sei o que sinto, não sei o que quero sentir, não sei o que penso nem o que sou.
Verifico que, tantas vezes alegre, tantas vezes contente, estou sempre triste.
Não vejo, sem pensar.
Não há sossego - e, ai de mim!, nem sequer há desejo de o ter.
(Livro do Desassossego - Bernardo Soares, heterônimo de Fernando Pessoa)
Se às vezes eu disser que as flores sorriem
E se eu disser que os rios cantam
Não é porque eu julgue que há sorriso nas flores
E cantos no correr dos rios.
É porque assim faço, mais sentir aos homens falsos
A existência verdadeiramente real das flores e dos rios.
Porque eu escrevo para eles me lerem, sacrifica-me às vezes,
À sua estupidez de sentidos.
Não concordo comigo mas absolvo-me,
Por que eu sou só essa coisa séria uma intérprete da natureza,
Porque os homens não percebem a sua linguagem,
Por ela não ser linguagem nenhuma.
Todas as coisas que dizes
Afinal não são verdade.
Mas, se nos fazem felizes,
Isso é a felicidade.
Na casa defronte de mim e dos meus sonhos,
Que felicidade há sempre!
Moram ali pessoas que desconheço, que já vi mas não vi.
São felizes, porque não são eu.
As crianças, que brincam às sacadas altas,
Vivem entre vasos de flores,
Sem dúvida, eternamente.
As vozes, que sobem do interior do doméstico,
Cantam sempre, sem dúvida.
Sim, devem cantar.
Quando há festa cá fora, há festa lá dentro.
Assim tem que ser onde tudo se ajusta —
O homem à Natureza, porque a cidade é Natureza.
Que grande felicidade não ser eu!
Mas os outros não sentirão assim também?
Quais outros? Não há outros.
O que os outros sentem é uma casa com a janela fechada,
Ou, quando se abre,
É para as crianças brincarem na varanda de grades,
Entre os vasos de flores que nunca vi quais eram.
Os outros nunca sentem.
Quem sente somos nós,
Sim, todos nós,
Até eu, que neste momento já não estou sentindo nada.
Nada? Não sei...
Um nada que dói...
Todas as Cartas de Amor são Ridículas
Todas as cartas de amor são
Ridículas.
Não seriam cartas de amor se não fossem
Ridículas.
Também escrevi em meu tempo cartas de amor,
Como as outras,
Ridículas.
As cartas de amor, se há amor,
Têm de ser
Ridículas.
Mas, afinal,
Só as criaturas que nunca escreveram
Cartas de amor
É que são
Ridículas.
Quem me dera no tempo em que escrevia
Sem dar por isso
Cartas de amor
Ridículas.
A verdade é que hoje
As minhas memórias
Dessas cartas de amor
É que são
Ridículas.
(Todas as palavras esdrúxulas,
Como os sentimentos esdrúxulos,
São naturalmente
Ridículas.)
Meu coração triste, meu coração ermo,
Tornado a substância dispersa e negada
Do vento sem forma, da noite sem termo,
Do abismo e do nada!
É talvez o último dia da minha vida.
Saudei o Sol, levantando a mão direita,
Mas não o saudei, dizendo-lhe adeus,
Fiz sinal de gostar de o ver antes: mais nada.
Nota: Poema de Fernando Pessoa (heterônimo Alberto Caeiro).
E não sei o que sinto, não sei o que quero sentir, não sei o que penso nem o que sou. Verifico que, tantas vezes alegre, tantas vezes contente, estou sempre triste.
ANIVERSÁRIO
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.
Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui...
A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais copos,
O aparador com muitas coisas — doces, frutas, o resto na sombra debaixo do alçado —,
As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa,
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...
Pára, meu coração!
Não penses! Deixa o pensar na cabeça!
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!
Hoje já não faço anos.
Duro.
Somam-se-me dias.
Serei velho quando o for.
Mais nada.
Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!...
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!...
Há um grande cansaço na alma do meu coração. Entristece-me quem eu nunca fui, e não sei que espécie de saudades é a lembrança que tenho dele. Caí entre as esperanças e as certezas, com os poentes todos.
Repudiei sempre que me compreendessem. Ser compreendido é prostituir-se. Prefiro ser tomado a sério como o que não sou, ignorado humanamente, com decência e naturalidade.
Tabacaria
Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo.
que ninguém sabe quem é
( E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a por umidade nas paredes
e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.
Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.
Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.
Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.
Outros terão
Um lar, quem saiba, amor, paz, um amigo.
A inteira, negra e fria solidão
Está comigo.
A outros talvez
Há alguma coisa quente, igual, afim
No mundo real. Não chega nunca a vez
Para mim.
"Que importa?"
Digo, mas só Deus sabe que o não creio.
Nem um casual mendigo à minha porta
Sentar-se veio.
"Quem tem de ser?"
Não sofre menos quem o reconhece.
Sofre quem finge desprezar sofrer
Pois não esquece.
Isto até quando?
Só tenho por consolação
Que os olhos se me vão acostumando
À escuridão.
Fernando Pessoa, 13-1-1920.
Névoa
A névoa envolve a montanha,
Húmido, um frio desceu.
O que é esta mágoa estranha
Que o coração me prendeu?
Parece ser a tristeza
De alguém de quem sou ator,
Com fantasiada viveza
Tornada já minha dor.
Mas, não sei porquê, me dói
Qual se fora eu a ilusão;
E ha névoa em tudo o que foi
E frio em meu coração.