Trechos pequenos de Fernando Pessoa
Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Nota: Trecho do poema "Mar Português" da Mensagem, de Fernando Pessoa.
Saudades, só portugueses
Conseguem senti-las bem
Porque têm essa palavra
Para dizer que as têm.
Acontece-me às vezes (...) um cansaço tão terrível da vida que não há sequer hipótese de ato de dominá-lo.
Estou só e sonho saudade.
E como é branca de graça
A paisagem que não sei,
Vista de trás da vidraça
Do lar que nunca terei!
Quem escreverá a história do que poderia ter sido o irreparável do meu passado;
Este é o cadáver.
Se a certa altura eu tivesse me voltado para a esquerda, ao invés que para direita;
Se em certo momento eu tivesse dito não, ao invés que sim;
Se em certas conversas eu tivesse dito as frases que só hoje elaboro; Seria outro hoje, e talvez o universo inteiro seria insensivelmente levado a ser outro também."
Eu sou o intervalo entre o meu querer e o que a vontade dos outros fez de mim.
Nota: Adaptação de trecho do poema "Começo a conhecer-me" de Álvaro de Campos
Chove. Há silêncio, porque a mesma chuva
Não faz ruído senão com sossego.
Chove. O céu dorme. Quando a alma é viúva
Do que não sabe, o sentimento é cego.
Chove. Meu ser (quem sou) renego…
Tão calma é a chuva que se solta no ar
(Nem parece de nuvens) que parece
Que não é chuva, mas um sussurrar
Que de si mesmo, ao sussurrar, se esquece.
Chove. Nada apetece…
Não paira vento, não há céu que eu sinta.
Chove longínqua e indistintamente,
Como uma coisa certa que nos minta,
Como um grande desejo que nos mente.
Chove. Nada em mim sente…
Quando vier a Primavera,
Se eu já estiver morto,
As flores florirão da mesma maneira
E as árvores não serão menos verdes que na Primavera passada.
A realidade não precisa de mim.
Sinto uma alegria enorme
Ao pensar que a minha morte não tem importância nenhuma.
Se soubesse que amanhã morria
E a Primavera era depois de amanhã,
Morreria contente, porque ela era depois de amanhã.
Se esse é o seu tempo, quando havia ela de vir senão no seu tempo?
Gosto que tudo seja real e que tudo esteja certo;
E gosto porque assim seria, mesmo que eu não gostasse.
Por isso, se morrer agora, morro contente,
Porque tudo é real e tudo está certo.
Podem rezar latim sobre o meu caixão, se quiserem.
Se quiserem, podem dançar e cantar à roda dele.
Não tenho preferências para quando já não puder ter preferências.
O que for, quando for, é que será o que é.
As lentas nuvens fazem sono
As lentas nuvens fazem sono,
O céu azul faz bom dormir.
Bóio, num íntimo abandono,
À tona de me não sentir.
E é suave, como um correr de água,
O sentir que não sou alguém,
Não sou capaz de peso ou mágoa.
Minha alma é aquilo que não tem.
Que bom, à margem do ribeiro
Saber que é ele que vai indo...
E só em sono eu vou primeiro.
E só em sonho eu vou seguindo.
Cada um é muita gente.
Para mim sou quem me penso,
Para outros - cada um sente
O que julga, e é um erro imenso.
Feliz quem não exige da vida mais do que ela espontaneamente lhe dá, guiando-se pelo instinto dos gatos, que buscam o sol quando há sol.
O amor quer a posse, mas não sabe o que é a posse. Se eu não sou meu, como serei teu, ou tu minha? Se não possuo o meu próprio ser, como possuirei um ser alheio? Se sou já diferente daquele de quem sou idêntico, como serei idêntico daquele de quem sou diferente? O amor é um misticismo que quer praticar-se, uma impossibilidade que só é sonhada como devendo ser realizada.
in O Rio da Posse
Hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Nota: Trecho do poema "Tabacaria" de Álvaro de Campos, heterónimo de Fernando Pessoa. Link
Há doenças piores que as doenças,
Há dores que não doem, nem na alma
Mas que são dolorosas mais que as outras.
Há angústias sonhadas mais reais
Que as que a vida nos traz, há sensações
Sentidas só com imaginá-las
Que são mais nossas do que a própria vida.
Há tanta cousa que, sem existir,
Existe, existe demoradamente,
E demoradamente é nossa e nós...
Por sobre o verde turvo do amplo rio
Os circunflexos brancos das gaivotas...
Por sobre a alma o adejar inútil
Do que não foi, nem pôde ser, e é tudo.
Dá-me mais vinho, porque a vida é nada
A OUTRA
Amamos sempre no que temos
O que não temos quando amamos.
O barco pára, largo os remos
E, um a outro,as mãos nos damos.
A quem dou as mãos?
À Outra.
Teus beijos são de mel de boca,
São os que sempre pensei dar,
E agora a minha boca toca
A boca que eu sonhei beijar.
De quem é a boca?
Da Outra.
O remos já caíram na água,
O barco faz o que a água quer.
Meus braços vingam minha mágoa
No abraço quie enfim podem ter.
Quem abraço?
A Outra.
Bem sei, és bela, és quem desejei..
Não deixe a vida que eu deseje
Mais que o que pode ser teu beijo
E poder ser eu que te beije.
Beijo, e em quem penso?
Na Outra.
Os remos vão perdidos já,
O barco vai e não sei para onde.
Que fresco o teu sorriso está,
Ah, meu amor, e o que ele esconde!
Que é do sorriso
Da Outra?
Ah, talvez, mortos ambos nós,
Num outro rio sem lugar
Em outro barco outra vez sós
Possamos nós recomeçar
Que talvez sejas
A Outra.
Mas não, nem onde essa paisagem
É sob eterna luz eterna
Te acharei mais que alguém na viagem
Que amei com ansiedade terna
Por ser parecida
Com a Outra.
Ah, por ora, idos remos e rumo,
Dá-me as mãos, a boca, o teu ser.
E façamos desta hora um resumo
Do que não poderemos ter.
Nesta hora, a única
Sê a Outra.
Mesmo a ausência dele é uma coisa que está comigo. E eu gosto tanto dele que não sei como o desejar.