Trechos Clarice Lispector
Minha florzinha,
Recebi sua carta desse estranho Bucsky, datada de 30 de dezembro. Como fiquei contente, minha irmãzinha, com certas frases suas. Não diga porém: descobri que ainda há muita coisa viva em mim. Mas não, minha querida! Você está toda viva! Somente você tem levado uma vida irracional, uma vida que não parece com você. Tania, não pense que a pessoa tem tanta força assim a ponto de levar qualquer espécie de vida e continuar a mesma. Até cortar os próprios defeitos pode ser perigoso – nunca se sabe qual é o defeito que sustenta nosso edifício inteiro.
Nem sei como lhe explicar, querida irmã, minha alma. Mas o que eu queria dizer é que a gente é muito preciosa, e que é somente até certo ponto que a gente pode desistir de si própria e se dar aos outros e às circunstâncias. Depois que uma pessoa perder o respeito de si mesma e o respeito de suas próprias necessidades – depois disso fica-se um pouco um trapo. Eu queria tanto, tanto estar junto de você e conversar, e contar experiências minhas e de outros. Você veria que há certos momentos em que o primeiro dever a realizar é em relação a si mesmo. Eu mesma não queria contar a você como estou agora, porque achei inútil. Pretendia apenas lhe contar o meu novo caráter, ou falta de caráter, um mês antes de irmos para o Brasil, para você estar prevenida. Mas espero de tal forma que no navio ou avião que nos levar de volta eu me transforme instantaneamente na antiga que eu era, que talvez nem fosse necessário contar. Querida, quase quatro anos me transformaram muito.
Do momento em que me resignei, perdi toda a vivacidade e todo interesse pelas coisas. Você já viu como um touro castrado se transforma num boi? assim fiquei eu…, em que pese a dura comparação… Para me adatar (sic) ao que era inadatável (sic), para vencer minhas repulsas e meus sonhos, tive que cortar meus aguilhões – cortei em mim a força que poderia fazer mal aos outros e a mim. E com isso cortei também minha força. Espero que você nunca me veja assim resignada, porque é quase repugnante. Espero que no navio que nos leve de volta, só a ideia de ver você e de retomar um pouco minha vida – que não era maravilhosa mas era uma vida – eu me transforme inteiramente. Mariazinha, mulher do Milton, um dia desses encheu-se de coragem, como ela disse, e me perguntou: você era muito diferente, não era? Ela disse que me achava ardente e vibrante, e que quando me encontrou agora se disse: ou esta calma excessiva é uma atitude ou então ela mudou tanto que parece quase irreconhecível. Uma outra pessoa disse que eu me movo com uma lassidão de mulher de cinquenta anos. Tudo isso você não vai ver nem sentir, queira Deus. Não haveria nem necessidade de lhe dizer, então… Mas não pude deixar de querer lhe mostrar o que pode acontecer com uma pessoa que fez pacto com todos, e que se esqueceu de que o nó vital de uma pessoa deve ser respeitado.
Minha irmãzinha, ouça meu conselho, ouça meu pedido: respeite a você mais do que aos outros, respeite suas exigências, respeite mesmo o que é ruim em você – respeite sobretudo o que você imagina que é ruim em você – pelo amor de Deus, não queira fazer de você uma pessoa perfeita – não copie uma pessoa ideal, copie você mesma – é esse o único meio de viver. Eu tenho tanto medo de que aconteça com você o que aconteceu comigo, pois nós somos parecidas. Juro por Deus que se houvesse um céu, uma pessoa que se sacrificou por covardia – será punida e irá para um inferno qualquer. Se é que uma vida morna não será punida por essa mesma mornidão. Pegue para você o que lhe pertence, e o que lhe pertence é tudo aquilo que sua vida exige. Parece uma moral amoral. Mas o que é verdadeiramente imoral é ter desistido de si mesma. Espero em Deus que você acredite em mim. Gostaria mesmo que você me visse e assistisse a minha vida sem eu saber – pois somente saber de sua presença me transformaria e me daria vida e alegria. Isso seria uma lição para você. Ver o que pode suceder quando se pactuou com a comodidade de alma. Tenha coragem de se transformar, minha querida, de fazer o que você deseja – seja sair nos week-end, seja o que for. Me escreva sem a preocupação de falar coisas neutras – porque como poderíamos fazer bem uma a outra sem esse mínimo de sinceridade?
Que o ano novo lhe traga todas as felicidades, minha querida. Receba um abraço de muita saudade, de enorme saudade de sua irmã
Clarice
Fora as vezes que vi por televisão, só assisti a um jogo de futebol na vida, quero dizer, de corpo presente. Sinto que isso é tão errado como se eu fosse uma brasileira errada.
O futebol tem uma beleza própria de movimentos que não precisa de comparações.
Eu não queria só ter um passado: queria sempre estar tendo um presente, e alguma partezinha de futuro.
Se seu time é Botafogo, não posso perdoar que você trocasse, mesmo por brincadeira, uma vitória dele nem por um meu romance inteiro sobre futebol.
Uma pergunta que me fez: o que mais me importava – se a maternidade ou a literatura. O modo imediato de saber a resposta foi eu me perguntar: se tivesse que escolher uma delas, que escolheria? A resposta era simples: eu desistiria da literatura. Nem tem dúvida que como mãe sou mais importante do que como escritora.
Não é o grau que separa a inteligência do gênio, mas a qualidade.
Sei que sou inteligente e que às vezes escondo isso para não ofender os outros com minha inteligência.
O mar é impossível de se acreditar. Só o imaginando é que se chega a ver sua realidade.
Eu não me aprovo porque mal consigo viver comigo mesmo. Faço quase o impossível para ter isenção. Isenção de mim. Estou quase atingindo esse estado de beatitude.
Eu quero simplesmente isto: o impossível. Ver Deus. Ouço o barulho do vento nas folhas e respondo: sim!
Nunca se esquecer, quando se tem uma dor, que a dor passará: nunca se esquecer que, quando se morre, a morte passará. Não se morre eternamente. É só uma vez, e dura um instante.
Entrego-me ao doce convívio da eternidade. Mas esta eu não sei se mereço.
Nunca me senti realizada como escritora, e tenho a impressão de que será assim até eu morrer.
Estou desiludida. É que escrever não me trouxe o que eu queria, isto é, paz.
Irei até onde o ar termina, irei até onde a grande ventania se solta uivando, irei até onde o vácuo faz uma curva, irei aonde meu fôlego me levar.