Trechos Clarice Lispector
Bom, agora eu morri. Mas vamos ver se eu renasço de novo. Por enquanto eu estou morta. Estou falando do meu túmulo.
Escrever é o mesmo processo do ato de sonhar: vão-se formando imagens, cores, atos, e sobretudo uma atmosfera de sonho que parece uma cor e não uma palavra.
Minha alma tem o peso da luz. Tem o peso da música. (...) Tem o peso de um olhar. Pesa como pesa uma ausência. E a lágrima que não se chorou. Tem o imaterial peso da solidão no meio de outros.
Com perdão da palavra, sou um mistério para mim.
(A descoberta do mundo)
Ouve-me, ouve o meu silêncio. O que falo nunca é o que falo e sim outra coisa. Capta essa outra coisa de que na verdade falo porque eu mesma não posso.
(Água viva)
(...) ele se arriscou à penosa acrobacia de voar desajeitado. Boquiaberto, olhou em torno porque certos gestos se tornam aterrorizantes na solidão, com um valor final neles mesmos. Quando um homem cai sozinho num campo não sabe a quem dar a sua queda.
Mas às vezes a saudade é tão profunda que a presença é pouco: quer-se absorver a outra pessoa toda.
Ninguém estará perdido se der amor e às vezes receber amor em troca.
Sou inquieta, ciumenta, áspera, desesperançosa. Embora amor dentro de mim eu tenha. Só que não sei usar amor: às vezes parecem farpas.
Descobri o meu país
Subi a montanha
e no seu topo os anjos me cercaram
e me engrinaldaram a fronte
com as flores do céu.
Asas zumbiam
em harmonias fragílimas
e vozes de arcanjos louvavam a paz.
Derramaram sobre meu corpo
sete bálsamos purificadores
e fizeram-me beber
ambrosia e mel.
Banharam-me no rio da música
e eu saí ingênua
como o canto de uma criança.
E depois surgiram novos anjos
e não havia noite
e não havia dia.
E a ambrosia e o néctar
deslizavam com fartura celestial.
E novas canções se entoaram
sempre em louvor a Deus.
E não havia noite
e não havia dia.
E aos poucos cresceu dentro de mim
o desespero
e eu busquei em vão os olhos celestiais.
Eles nada diziam
e cantavam a paz.
E aos poucos uma nostalgia
me enlanguesceu
e eu era o arco distendido
sem a flecha
e eu buscava o ar
sem respirar.
Um anjo me interrogou: mais néctar?
Eu gritei: quero cheiro da terra!
E o anjo me perdoou
E eu cansei de ser perdoada,
eu queria sofrer.
E não havia noite e não havia...
Quebrei minhas asas,
desci a montanha
e vivi na Terra!
Homens amavam
e cansavam do amor.
Homens bebiam sangue
e descobriam
que não desejavam brigar
Entoavam-se cânticos místicos
onde só havia a insatisfação.
E depois homens morriam
e todos sabiam que era o fim.
Nem a terra,
nem o céu!
Fechei-me num quarto,
inventei outro Deus,
outro céu, outra terra
e outros homens.
Nota: Esse é um dos dois únicos poemas que foram publicados em vida por Clarice Lispector. O outro poema publicado em vida pela autora é A mágoa.
...MaisEscrevo com o corpo. E o que escrevo é uma névoa úmida.
Muito elogio é como botar água demais na flor. Ela apodrece.
Mas não sou completa, não. Completa lembra realizada. Realizada é acabada.
Suponho que me entender não é uma questão de inteligência e sim de sentir
De entrar em contato... Ou toca, ou não toca.
E, se me achar esquisita, respeite também.
Até eu fui obrigada a me respeitar
Repito por pura alegria de viver:
a salvação é pelo risco, sem o qual a vida não vale a pena!
Que minha solidão me sirva de companhia
Que eu tenha a coragem de me enfrentar
Que eu saiba ficar com o nada e mesmo assim me sentir como se estivesse plena de tudo.
Liberdade é pouco. O que eu desejo ainda não tem nome
Nota: O primeiro pensamento pertence a uma entrevista dada por Clarice em 1977. O segundo e o terceiro são do livro "A descoberta do mundo". O quarto é uma adaptação de um trecho de "Um sopro de vida (Pulsações)". O último pensamento é do livro "Perto do coração selvagem".
...MaisQuero escrever o borrão vermelho de sangue com as gotas e coágulos pingando de dentro para dentro. Quero escrever amarelo-ouro com raios de translucidez. Que não me entendam pouco-se-me-dá. Nada tenho a perder. Jogo tudo na violência que sempre me povoou, o grito áspero e agudo e prolongado, o grito que eu, por falso respeito humano, não dei. Mas aqui vai o meu berro me rasgando as profundas entranhas de onde brota o estertor ambicionado. Quero abarcar o mundo com o terremoto causado pelo grito.
O clímax de minha vida será a morte.
Quero escrever noções sem o uso abusivo da palavra. Só me resta ficar nua: nada tenho mais a perder.
Cuidado com suas preocupações, dizem que dá ferida no estômago.
Mas não havia nela miséria humana. É que tinha em si mesma uma certa flor fresca. Pois, por estranho que pareça, ela acreditava. Era apenas fina matéria orgânica. Existia. Só isto. E eu? De mim só se sabe que respiro.
E falo bem baixo para que os ouvidos sejam obrigados a ficar atentos e a me ouvir.