Trechos Clarice Lispector
E é também porque sempre fui de brigar muito, meu modo é brigando. É porque sempre tento chegar pelo meu modo. É porque ainda não sei ceder. É porque no fundo eu quero amar o que eu amaria – e não o que é. É porque ainda não sou eu mesma, e então o castigo é amar um mundo que não é ele. É também porque eu me ofendo à toa. É porque talvez eu precise que me digam com brutalidade, pois sou muito teimosa.
A esperança também não tem número. Perder uma coisa é inefável: nunca sei onde as coloquei. (...) Ser é de um provisório impalpável. (...) Juro que preciso de soluções. Não posso ficar assim completamente no ar.
Que simplicidade. Nunca pensei que o mundo e eu chegássemos a esse ponto de trigo.
Perder-se significa ir achando e nem saber o que fazer do que se for achando.
Fico tão assustada quando percebo que durante horas perdi minha formação humana. Não sei se terei uma outra para substituir a perdida.
Até que por horas desisti. E, por Deus, tive o que eu não gostaria. Não foi ao longo de um vale fluvial que andei – eu sempre pensara que encontrar seria fértil e úmido como vales fluviais. Não contava que fosse esse grande desencontro.
Lembrei-me de ti, quando beijara teu rosto de homem, devagar, devagar beijara, e quando chegara o momento de beijar teus olhos – lembrei-me de que então eu havia sentido o sal na minha boca, e que o sal de lágrimas nos teus olhos era o meu amor por ti. Mas, o que mais me havia ligado em susto de amor, fora, no fundo do fundo do sal, tua substância insossa e inocente e infantil: ao meu beijo tua vida mais profundamente insípida me era dada, e beijar teu rosto era insosso e ocupado trabalho paciente de amor, era mulher tecendo um homem, assim como me havias tecido, neutro artesanato de vida.
Minha tendência a indagar e a significar já é em si uma angústia.
É preciso não ter medo de criar.
Deus, o que nos prometeis em troca de morrer? Pois o céu e o inferno nós já os conhecemos - cada um de nós em segredo quase de sonho já viveu um pouco do próprio apocalipse. E a própria morte.
Parece-me que eu vagamente sentia que, enquanto sofresse fisicamente de um modo tão insuportável, isso seria a prova de estar vivendo ao máximo.
E, se atravessara o amor e o seu inferno, penteava-se agora diante do espelho, por um instante sem nenhum mundo no coração.
Porque enquanto eu amar a um Deus só porque não me quero, serei um dado marcado, e o jogo de minha vida maior não se fará. Enquanto eu inventar Deus, Ele não existe.
Inclusive mais amor inclui uma alerteza maior para achar bonito o que nem mesmo bonito é.
O que os outros recebem de mim reflete-se então de volta para mim, e forma a atmosfera do que se chama: eu.
Quero exigentemente que acreditem em mim. Quero que acreditem em mim até quando minto.
Hoje compreendo-o. Tudo lhe perdoo, tudo perdoo aos que não sabem se prender, aos que se fazem perguntas. Aos que procuram motivos para viver, como se a vida por si mesma não se justificasse.
Era um pouco de febre, sim. Se existisse pecado, ela pecara. Toda a sua vida fora um erro, ela era fútil. Onde estava a mulher da voz? Onde estavam as mulheres apenas fêmeas? E a continuação do que ela iniciara quando criança? Era um pouco de febre.
Estou atrás do que fica atrás do pensamento. Inútil querer me classificar: eu simplesmente escapulo.
Por que ela estava tão ardente e leve, como o ar que vem do fogão que se destampa?