Trechos Clarice Lispector
Ficar sem fazer nada é a nudez final.
De algum modo cada um de nós oferecia sua vida a uma impossibilidade. Mas era verdade também que a impossibilidade terminava por ficar mais perto de nossos dedos que nós mesmos, pois a realidade pertence a Deus.” Martim pensou depois que temos um corpo e uma alma e um querer e os nossos filhos – e no entanto o que verdadeiramente somos é aquilo que o impossível cria em nós.
Há muita coisa a dizer que não sei como dizer. Faltam as palavras. Mas recuso-me a inventar novas: as que existem já devem dizer o que se consegue dizer e o que é proibido. E o que é proibido eu adivinho. Se houver força. Atrás do pensamento não há palavras: é-se. Minha pintura não tem palavras: fica atrás do pensamento. Nesse terreno do é-se sou puro êxtase cristalino. É-se. Sou-me. Tu te és.
Eu antes vivia de um mundo humanizado, mas o puramente vivo derrubou a moralidade que eu tinha? É que um mundo todo vivo tem a força de um Inferno.
Não se preocupe comigo. Eu sou muito feliz.
Para não se traírem eles ignoravam que hoje era ontem e haveria amanhã.
E morre-se, sem ao menos uma explicação. E o pior – vive-se, sem ao menos uma explicação.
Por que quero fazer de mim um herói? Eu na verdade sou anti-heroica. O que me atormenta é que tudo é "por enquanto", nada é "sempre".
É porque sempre tento chegar pelo meu modo. É porque ainda não sei ceder. É porque no fundo eu quero amar o que eu amaria – e não o que é.
Redondo sem início e sem fim, eu sou o ponto antes do zero e do ponto final.
Com exceção de uns poucos, todos têm medo de mim como se eu mordesse.
Mesmo para os descrentes há a pergunta duvidosa: e depois da morte? Mesmo para os descrentes há o instante de desespero: que Deus me ajude. Neste mesmo instante estou pedindo que Deus me ajude. Estou precisando. Precisando mais do que a força humana. E estou precisando de minha própria força. Sou forte mas também destrutiva. Autodestrutiva. E quem é autodestrutivo também destrói os outros. Estou ferindo muita gente. E Deus tem que vir a mim, já que eu não tenho ido a Ele. Venha, Deus, venha. Mesmo que eu não mereça, venha. Ou talvez os que menos merecem precisem mais. Só uma coisa a favor de mim eu posso dizer: nunca feri de propósito. E também me dói quando percebo que feri. Mas tantos defeitos tenho. Sou inquieta, ciumenta, áspera, desesperançosa. Embora amor dentro de mim eu tenha. Só que não sei usar amor: às vezes parecem farpas. Se tanto amor dentro de mim recebi e continuo inquieta e infeliz, é porque preciso que Deus venha. Venha antes que seja tarde demais.
Toda a parte mais inatingível de minha alma e que não me pertence – é aquela que toca na minha fronteira com o que já não é eu, e à qual me dou. Toda a minha ânsia tem sido esta proximidade inultrapassável e excessivamente próxima. Sou mais aquilo que em mim não é. E eis que a mão que eu segurava me abandonou. Não, não. Eu é que larguei a mão porque agora tenho que ir sozinha.
Se eu conseguir voltar do reino da vida tornarei a pegar a tua mão, e a beijarei grata porque ela me esperou, e esperou que meu caminho passasse, e que eu voltasse magra, faminta e humilde: com fome apenas do pouco, com fome apenas do menos.
(...) assim como se eu tivesse perdido uma terceira perna que até então me impossibilitava de andar mas que fazia de mim um tripé estável.
Sei que somente com duas pernas é que posso caminhar. Mas a ausência inútil da terceira me faz falta e me assusta, era ela que fazia de mim uma coisa encontrável por mim mesma, e sem sequer precisar me procurar. Estou desorganizada porque perdi o que não precisava? (...)
Não sei o que fazer da aterradora liberdade que pode me destruir. (...) havia, aquela coisa latejando, a que eu estava tão habituada que pensava que latejar era ser uma pessoa.
As pessoas que se comprazem no sofrimento, que gostam de sentir-se infelizes e fazer os outros infelizes, jamais poderão orgulhar-se de sua beleza. O mau humor, o sentimento de frustração, a amargura marcam a fisionomia, apagam o brilho dos olhos, cavam sulcos na face mais jovem, enfeiam qualquer rosto. Essa é a razão por que a mulher, que cultiva a beleza, deve esforçar-se para ser feliz. Felicidade é estado de alma, é atmosfera interior, não depende de fatos ou circunstâncias externas.
Um aperto de mão comovido foi o nosso adeus no aeroporto. Sabíamos que não nos veríamos mais, senão por acaso. Mais que isso: que não queríamos nos rever. E sabíamos também que éramos amigos. Amigos sinceros.
Mas era como uma pessoa que, tendo nascido cega e não tendo ninguém a seu lado que tivesse tido visão, essa pessoa não pudesse sequer formular uma pergunta sobre a visão: ela não saberia que existia ver. Mas, como na verdade existia a visão, mesmo que essa pessoa em si mesma não a soubesse e nem tivesse ouvido falar, essa pessoa estaria parada, inquieta, atenta, sem saber perguntar sobre o que não sabia que existe – ela sentiria falta do que deveria ser seu.
Levo uma vida diária vazia e agitada. Passo o tempo todo pensando – não raciocinando, não meditando mas pensando, pensando sem parar. E aprendendo, não sei o quê, mas aprendendo. E com a alma mais sossegada (não estou totalmente certa). Sempre quis “jogar alto”, mas parece que estou aprendendo que o jogo alto está numa vida diária pequena, em que uma pessoa se arrisca muito mais profundamente, com ameaças maiores. Com tudo isso, parece que estou perdendo um sentimento de grandeza que não veio nunca de livros nem de influência de pessoas, uma coisa muito minha e que desde pequena deu a tudo, aos meus olhos, uma verdade que não vejo mais com tanta frequência. Disso tudo, restam nervos muito sensíveis e uma predisposição séria para ficar calada. Mas aceito tanto agora. Nem sempre pacificamente, mas a atitude é de aceitar.
Eu ainda não sei controlar meu ódio mas já sei que meu ódio é um amor irrealizado, meu ódio, é uma vida ainda nunca vivida. Pois vivi tudo – menos a vida. E é isso o que não perdoo em mim, e como não suporto não me perdoar, então não perdoo aos outros. A este ponto cheguei: como não consegui a vida, quero matá-la. A minha cólera – que é ela senão reivindicação? – a minha cólera, eu sei, eu tenho que saber neste minuto raro de escolha, a minha cólera é o reverso de meu amor; se eu quiser escolher finalmente me entregar sem orgulho à doçura do mundo, então chamarei minha ira de amor.
Sinto que viver é inevitável.