Trechos Clarice Lispector
O maior obstáculo para eu ir adiante: eu mesma. Tenho sido a maior dificuldade no meu caminho. É com enorme esforço que consigo me sobrepor a mim mesma.
Quando criança, e depois adolescente, fui precoce em muitas coisas. Em sentir um ambiente, por exemplo, em apreender a atmosfera íntima de uma pessoa. Por outro lado, longe de precoce, estava em incrível atraso em ralação a outras coisas importantes. Continuo aliás atrasada em muitos terrenos. Nada posso fazer: parece que há em mim um lado infantil que não cresce jamais.
Minha história é de uma escuridão tranquila, de raiz adormecida na sua força, de odor que não tem perfume.
Estrelas são os olhos de Deus vigiando para que corra tudo bem. Para sempre. E, como se sabe, sempre não acaba nunca.
Sem um pensamento: apenas corpo se movimentando calmo, rosto pleno de uma suave esperança que ninguém dá e ninguém tira.
Às duas horas da madrugada, enfim, nasceu ela, a ideia.
Sempre procuro reter, como as rédeas de um cavalo, minha tendência ao excessivo.
A verdade não faz sentido, a grandeza do mundo me encolhe.
De repente as coisas não precisam mais fazer sentido. Satisfaço-me em ser. Tu és? Tenho certeza que sim.
Ninguém sabia que ela estava sendo infeliz a ponto de precisar buscar a vida. (...) Ela só sabia viver.
O que é preciso é não ir demais contra a onda. A gente faz como quando toma banho de mar: procura subir e descer com a onda. Isso é uma forma de lutar: esperar, ter paciência, perdoar, amar os outros. E cada dia aperfeiçoar o dia. Tudo isso está parecendo idiota... Mas até que não é.
Uns dias, cheia de tédio, enervada e triste. Outros, lânguida como uma gata, embriagando-se com os menores acontecimentos. Uma folha caindo, um grito de criança, e pensava: mais um momento e não suportarei tanta felicidade.
(A bela e a fera – trecho da crônica Gertrudes pede um conselho)
E depois ando meio bonita, sem o menor pudor: vem do bem-estar.
(A descoberta do mundo – trecho da crônica Facilidade repentina)
Chorou livremente, como se esta fosse a solução.
Nada a retinha, nem o medo. Mas mesmo que agora se aproximasse a morte, mesmo a vileza, a esperança ou de novo a dor. Parara simplesmente. Estavam cortadas as veias que a ligavam às coisas vividas, reunidas num só bloco longínquo, exigindo uma continuação lógica, mas velhas, mortas. Só ela própria sobrevivera, ainda respirando. E à sua frente um novo campo, ainda sem cor a madrugada emergindo. Atravessar suas brumas para enxergá-lo. Não poderia recuar, não sabia por que recuar.
Refugio-me nas rosas, nas palavras. Pobre consolação. Estou inflacionada. Não valho nada.
Ela era muito satisfatona: tinha tudo o que seu pouco anseio lhe dava. E havia nela um desafio que se resumia em “ninguém manda em mim”.
Uma história é feita de muitas histórias. E nem todas posso contar.
E o que não posso e não quero exprimir fica sendo o mais secreto dos meus segredos.