Trechos Clarice Lispector
As almas fracas como você são facilmente levadas a qualquer loucura com um olhar apenas por almas fortes como a minha.
Eu sonho acordada, mesmo como uma mocinha de quinze anos. É o que se chama de sonho estéril. Imagino conversas, imagino situações e cenas – pareço nunca ter tido nenhuma experiência.
O ar tinha gosto de sábado. E de súbito os dois eram raros, a raridade no ar. Eles se sentiam raros, não fazendo parte das mil pessoas que andavam pelas ruas. Os dois às vezes eram coniventes, tinham uma vida secreta porque ninguém os compreenderia. E mesmo porque os raros são perseguidos pelo povo que não tolera a insultante ofensa dos que se diferenciavam.
Não sou pretensiosa. Escrevo para mim, para que eu sinta a minha alma falando e cantando, às vezes chorando...
A solução
Chamava-se Almira e engordara demais. Alice era a sua maior amiga. Pelo menos era o que dizia a todos com aflição, querendo compensar com a própria veemência a falta de amizade que a outra lhe dedicava.
Alice era pensativa e sorria sem ouvi-la, continuando a bater à máquina.
À medida que a amizade de Alice não existia, a amizade de Almira mais crescia. Alice era de rosto oval e aveludado. O nariz de Almira brilhava sempre. Havia no rosto de Almira uma avidez que nunca lhe ocorrera disfarçar: a mesma que tinha por comida, seu contato mais direto com o mundo.
Por que Alice tolerava Almira, ninguém entendia. Ambas eram datilógrafas e colegas, o que não explicava. Ambas lanchavam juntas, o que não explicava. Saíam do escritório à mesma hora e esperavam condução na mesma fila. Almira sempre pajeando Alice. Esta, distante e sonhadora, deixando-se adorar. Alice era pequena e delicada. Almira tinha o rosto muito largo, amarelado e brilhante: com ela o batom não durava nos lábios, ela era das que comem o batom sem querer.
Gostei tanto do programa da Rádio Ministério da Educação, dizia Almira procurando de algum modo agradar. Mas Alice recebia tudo como se lhe fosse devido, inclusive a ópera do Ministério da Educação.
Só a natureza de Almira era delicada. Com todo aquele corpanzil, podia perder uma noite de sono por ter dito uma palavra menos bem dita. E um pedaço de chocolate podia de repente ficar-lhe amargo na boca ao pensamento de que fora injusta. O que nunca lhe faltava era chocolate na bolsa, e sustos pelo que pudesse ter feito. Não por bondade. Eram talvez nervos frouxos num corpo frouxo.
Na manhã do dia em que aconteceu, Almira saiu para o trabalho correndo, ainda mastigando um pedaço de pão. Quando chegou ao escritório, olhou para a mesa de Alice e não a viu. Uma hora depois esta aparecia de olhos vermelhos. Não quis explicar nem respondeu às perguntas nervosas de Almira. Almira quase chorava sobre a máquina.
Afinal, na hora do almoço, implorou a Alice que aceitasse almoçarem juntas, ela pagaria.
Foi exatamente durante o almoço que se deu o fato.
Almira continuava a querer saber por que Alice viera atrasada e de olhos vermelhos. Abatida, Alice mal respondia. Almira comia com avidez e insistia com os olhos cheios de lágrimas.
– Sua gorda! disse Alice de repente, branca de raiva. Você não pode me deixarem paz?!
Almira engasgou-se com a comida, quis falar, começou a gaguejar. Dos lábios macios de Alice haviam saído palavras que não conseguiam descer com a comida pela garganta de Almira G. de Almeida.
– Você é uma chata e uma intrometida, rebentou de novo Alice. Quer saber o que houve, não é? Pois vou lhe contar, sua chata: é que Zequinha foi embora para Porto Alegre e não vai mais voltar! agora está contente, sua gorda?
Na verdade Almira parecia ter engordado mais nos últimos momentos, e com comida ainda parada na boca.
Foi então que Almira começou a despertar. E, como se fosse uma magra, pegou o garfo e enfiou-o no pescoço de Alice. O restaurante, ao que se disse no jornal, levantou-se como uma só pessoa. Mas a gorda, mesmo depois de feito o gesto, continuou sentada olhando para o chão, sem ao menos olhar o sangue da outra.
Alice foi ao Pronto-Socorro, de onde saiu com curativos e os olhos ainda arregalados de espanto. Almira foi presa em flagrante.
Algumas pessoas observadoras disseram que naquela amizade bem que havia dente de coelho. Outras, amigas da família, contaram que a avó de Almira, dona Altamiranda, fora mulher muito esquisita. Ninguém se lembrou de que os elefantes, de acordo com os estudiosos do assunto, são criaturas extremamente sensíveis, mesmo nas grossas patas.
Na prisão Almira comportou-se com docilidade e alegria, talvez melancólica, mas alegria mesmo. Fazia graças para as companheiras. Finalmente tinha companheiras. Ficou encarregada da roupa suja, e dava-se muito bem com as guardiãs, que vez por outra lhe arranjavam uma barra de chocolate. Exatamente como para um elefante no circo.
E Macabéa, com medo de que o silêncio já significasse uma ruptura, disse ao recém-namorado:
– Eu gosto tanto de parafuso e prego, e o senhor?
Não façamos esforços inúteis, pois o amor nasce ou não espontaneamente, mas nunca por força de imposição. Às vezes é inútil esforçar-se demais... nada se consegue; outras vezes, nada damos e o amor se rende a nossos pés. Os sentimentos são sempre uma surpresa. Nunca foram uma caridade mendigada, uma compaixão ou um favor concedido.
Nós ainda somos moços, podemos perder algum tempo sem perder a vida inteira.
Como começar pelo início, se as coisas acontecem antes de acontecer?
O esquecimento das coisas é minha válvula de escape. Esqueço muito por necessidade.
Já que se há de escrever, que ao menos não se esmaguem com palavras as entrelinhas.
(Para não esquecer)
O melhor ainda não foi escrito. O melhor está nas entrelinhas.
(Água viva)
Parece que às vezes sou espontânea demais e isso me torna engraçada.
E eu impávida finjo que não tenho dono. Pontas de cigarro apagadas eu recebo. Um dia vou pegar fogo. De noite fico sozinha no escuro, vazia, pousada num canto do chão. Meu silêncio fede. Ai de mim, que sou o receptáculo da morte das coisas.
Que o Deus me ajude a conseguir o impossível, só o impossível me importa.
Sou o que se chama de pessoa impulsiva. Como descrever? Acho que assim: vem-me uma ideia ou um sentimento e eu, em vez de refletir sobre o que me veio, ajo quase que imediatamente. O resultado tem sido meio a meio: às vezes acontece que agi sob uma intuição dessas que não falham, às vezes erro completamente, o que prova que não se tratava de intuição, mas de simples infantilidade. Trata-se de saber se devo prosseguir nos meus impulsos. E até que ponto posso controlá-los. Há um perigo: se reflito demais, deixo de agir. E muitas vezes prova-se depois que eu deveria ter agido. Estou num impasse.
Não tenho nenhuma saudade de mim – o que já fui não mais me interessa!
Se meu desejo mais antigo é o de pertencer, por que então nunca fiz parte de clubes ou de associações? Porque não é isso o que eu chamo de pertencer. O que eu queria, e não posso, é por exemplo que tudo o que me viesse de bom de dentro de mim eu pudesse dar àquilo que eu pertencesse. Mesmo minhas alegrias, como são solitárias às vezes. E uma alegria solitária pode se tornar patética. É como ficar com um presente todo embrulhado com papel enfeitado de presente nas mãos – e não ter a quem dizer: tome, é seu, abra-o! Não querendo me ver em situações patéticas e, por uma espécie de contenção, evitando o tom de tragédia, então raramente embrulho com papel de presente os meus sentimentos.
Estou sentindo uma clareza tão grande que me anula como pessoa atual e comum: é uma lucidez vazia, como explicar? assim como um cálculo matemático perfeito do qual, no entanto, não se precise.
Estou com saudade de mim. Ando pouco recolhida, atendo demais ao telefone, escrevo depressa, vivo depressa. Onde está eu?