Textos sobre Livros
Casamento de Cláudia
A igreja estava preparada, a noiva bordada do fio de cabelo
aos sapatos pontiagudos. O noivo pronto, embrulhado para ser somente ator coadjuvante, os violinos afinados para chorar e os pais ansiosamente educados.
Convidados paramentados, outros salivando a festa, flores aprumadas à passagem de quem tinha fita no cabelo e queria se casar e já podia se casar.
Todo casamento vibra em um só acorde: o emocionante que escorre das pedrarias até as lágrimas dos mais íntimos.
Lágrimas escorridas talvez nesta única vez aos sons musicais.
Promessas sacudidas, retumbadas, vibradas e ecoadas ao pé direito do Altíssimo de todas as igrejas. Amarrando intenções de amor, de muito amor, amor que transforma, modifica a cada dia, face a face ao espelho.
O sacerdote pergunta a todos:
– Quem acha que se casou com o mesmo homem/mulher que há 30 anos?
Murmúrios... e continuou.
– Se acharem que são os mesmos, estão todos mentindo, não são, todos mudam. Vocês se enganaram, equivocaram e acham que permanecem felizes.
Rita assustou-se, soluçou, escorreu lágrimas e Rosa abriu a magia de toda bolsa e lhe deu maquiagem para representar e atuar.
Na festa, surpresas do talher, ao som que empurra pares a sacudir o que lhes fora ofertado: bebidas geladas em copos suados.
Madrugada, a noiva não desiste, joga o “bouquet” com golpe de astúcia para que todos alcancem e apreciem a sua vitória.
Alguém alcança, transpirada, e mostra a todos que ela também tem chance.
Na saída, o café perfumado, a montanha dos “bem casados”
empilhados à espera.
Rita apreciou, tinha que levar todos; eram bem casados, na bolsa ficariam espremidos e escolheu o decote como esconderijo.
Encheu, contornou os seios do que era mais doce, os “bemcasados”.
Na saída, a champanhe borbulhou em sua cabeça, o salto agarrou em alguma greta, caiu de ponta, espremeu “bem-casados” contra o peito.
Amarrotados, não restou nenhum para que pudesse degustar, amassaram-se e esborracharam.
E todos foram socorrer a vítima transbordando doce de leite.
Mas toda boa intenção também é doce.
Rita só queria ser bem casada.
“QUEM QUER CASAR COM D. BARATINHA? QUE TEM FITA NO CABELO E DINHEIRO NA CAIXINHA?”
Livro Pó de Anjo
Autora: Rosana Fleury
Vestida de palavras
Era uma vez... (e toda vez, nas difusas da imaginação,
começa assim) um quarto, e ele guardava um espelho grande que se agarrava à parede revelando as verdades.
Do lado impertinente e absoluto, descansado sobre a cômoda, um relógio quieto, mas veloz.
Sobre a cama, derramando intensidade, um vestido vermelho
que o tempo do relógio desbotou, mas o espelho mostrava que ele tinha ainda encanto guardado em lembranças.
Hesitante, perambulando pelo quarto, a mulher ia, de um
lado, ao outro, querendo enganar o relógio, fingindo sua aparente angústia ao espelho que apreciava o vestido, e ele se incumbia de carregar sonhos.
Frente ao espelho descortinou sua nudez, sua brancura. Abriu a lateral do criado-mudo e retirou um pote de creme. Espalhou sobre sua pele para acetinar o trincado do tempo a disfarçar e enganar o espelho por minutos naquele dia.
Recolheu o vestido sobre a cama e se cobriu dele. VERMELHO corajoso ajustado em seu corpo, abraçando os parágrafos de suas curvas, sem brigar por espaço.
Olhou para o relógio, o tempo, ele sim, brigava com ela,
apertava sua alma, não a largava nem um minuto sozinha para decidir e refletir.
Enérgicas são as horas, mostram o compasso.
Ela se mirou vestida ao espelho, olhou o pote abandonado sobre a mesa de cabeceira.
Abriu a porta e saiu do seu mundo, pôs na bolsa a sua
fantasia e decidiu acima das horas, dos segundos e minutos e não enganou a si mesma.
Lembrou-se de alguma frase, riu, saboreou, se revestiu dele,
Fernando Pessoa:
“Mas eu não tenho problemas, tenho só mistérios.”
Livro Pó de Anjo
Autora: Rosana Fleury
Quando
Quando morrer, não me espetem de flores, porque representam a vida e sua resplandecência é rápida: florescem, envelhecem e morrem.
Me alfinetem de palavras que sejam somente substantivo abstrato: felicidade, sucesso, angústia, desejo, prazer, cumplicidade, compromisso, inocência, perdão, amor, confissão.
Confesso que o perfume das flores paira no ar, mas as palavras perfuram e permanecem interpretadas por quem não tem preconceito, mas sonha.
Quero deixar esta herança.
Sonhos.
Sonhe e o os sonhos são proféticos, eternos como os céus e as estrelas que nos cobrem.
Cubra-se somente de sonhos.
E sonhe somente seus sonhos.
Livro: Não Cortem Meus Cabelos
Autora: Rosana Fleury
“Cozinhando”
Tinha cheiro perfumado
de cardamomo moído
no ar
nosso jeito de amar
Vermelho
Rubro
Intencional
Despido
Tomates descascados
despelados
refogados
sufocados no azeite
ferviam
esparramando desejos
Não dava para esperar
ervas benziam
alecrim
tomilho
mangericão
coentro
hortelã
para acalmar o mar de dentro
Esperei...
Abri um vinho...
Ele não chegou
MEU DEUS !...
Para AMAR
COZINHAR
Basta o Sal
do mar
e das lágrimas
Livro Pó de Anjo
Autora: Rosana Fleury
Meu amor de ontem
Ele havia chegado.
Foram 25 cinco anos de sertão. Barba por fazer, desodorante faltando, mal-cheiro falando.
Português capenga, só ficava rachando lenha, trabalho braçal mesmo. Verbalizar algumas palavras somente depois de uns goles de pinga.
Até que morava bem, num “igarapé” fresquinho às margens do Rio das Mortes, uns 100 quilômetros da cidade, na seca. Na chuva nem tiro ideia. Ventilação só do vento nos buritis.
Lugar bonito por lá. Tem duas estações: a seca e as águas. Ouvi dizer que vendem perfumaria nos alagados.
Vizinhança próxima, toda sorte de animais silvestres e rastejantes.
Ele me explicou bem como era feliz. E fez esta viagem com proposta de sermos mais unidos.
Na verdade fiquei embasbacada e pensando se o banheiro
tinha lixa de pé e “bidê”.
Olhei sua camisa de um algodão rústico e desbotado, seus pelos agora também descoloridos saindo revoltos entre os botões.
O vento derrubou meu chapéu panamá e ele não se inclinou para pegá-lo.
Disse que tinha hóspedes e muita pressa.
Saí da conversa com um calor sufocante e uma pergunta im- pertinente.
“Será ele o mesmo que tanto amei ?”
Ele virou Anhanguera e não o reconheci.
Lembranças, às vezes, é um lugar confortável.
Livro Pó de Anjo
Autora: Rosana Fleury
A última carta de amor
Sinto sua falta e as areias sopradas pelo vento frio batem em
meu rosto e acordo com as lembranças.
A chuva fina penetra em meu corpo e penso em seus beijos
tão quentes como ares do Equador.
Meu demônio infernal que arrasta meus dias em desejos
queimantes e fico cega.
Chamá-lo de meu amor é tão vulgar e abstrato e meu pensamento
se dirige a ti de forma tão concreta que sinto e quero sua
presença.
Fica tudo tão distante. Meu corpo, meu desejo, que nem as
cartas cobrem esta ausência.
Dizem que amores não tem corpo, mas do que é feito sua
intensidade sem seus contornos físicos,
perfumes perdidos sem seu cheiro?
E o vento apaga as palavras neste deserto de solidão e gasto
tanta pena e tinta e nem sei se verbos atravessam oceanos e intempéries.
Mas fica a força de meus punhos grafados, para contornar
seu corpo nesta carta.
“Enfurnada”
Sou subtraída do profundo das águas calcárias e cristalinas de Furnas
Enfurnada entre montanhas Alinhadas de pés de café.
Lugar de cheiro doce
Da floragem cafeeira vestida de noiva do moka
Que se enfeitam de flores brancas e sementeiras vermelhas
Ano a ano Dia pós dias
Sou as sacas cheias da safra
Que despolpa líquida nas xícaras E cobre o paladar e os ares
Sou das minas verdes Sul de Minas Perfurmada Aromatizada
Cheiro de café Ser gerado
Das Minas Gerais
Livro Pó de Anjo
Autora: Rosana Fleury
Mulher:
Musa dos olhos
Olhos que brilhavam mesmo no escuro
Um belo vestido carmesim
Corpo escultural
Dona de tua atenção
Coroa na cabeça e um doce coração
Teu sorriso nu espairece a delicada ferida de seu peito.
Seu choro parece de alegria, seu olhar apaixonado, a doçura de teus lábios
Lábios que se encontraram com um rapaz que fez dela tudo capaz
Se apaixonou pelo desejo, pela lua e pela rua
Aprendeu a amar a dançar, o canto, os segredos, o romantismo, ora, ela não era romântica.
Oh sim! Havia encontrado seu príncipe e nada a fazia mais feliz do que acreditar nessa história.
História criada por ela, ilusória, sem dor nem lágrimas, um final feliz.
Tinha o direito de ter uma, não?
9 meses se passaram, uma vida havia sido criada
Tua dor gritava
Suas cesárias são necessárias
Para não sofrer, não se arrepender.
Não queria chorar, murmurar.
Mas não podia evitar, sentia que havia sido um erro se deixar levar.
Você é forte.
Envolvida por uma armadura
Príncipes não existem. É tudo um conto de fadas. Aliás, nem elas existem.
A vida é dolorosa.
Beijos apaixonados são conversa fiada.
Se agarrou na ilusão de amar e estava caída.
Uma bebida, uma pessoa ultrajada de ignorância.
Um tapa, dois, um soco, gritos
Segure sua lágrimas!
Não deixe ele ver que você sente dor, está fraca.
Receio de chegar perto, medo do fim do relacionamento.
Se reclamar é pior.
Um filho pra criar.
Um pai pra suportar.
Um marido violento.
Lá no fundo ainda o amava.
Porque mulher é assim.
Apaixonada e machucada.
Criada para ser amada, não para sofrer, Mulher é pintura a óleo de Deus
A rosa mais delicada do jardim
A jóia mais preciosa de sua mina
O vaso mais caro do mundo
O melhor dia da semana, o sábado!
É um coração que está prestes a se quebrar a qualquer momento
Cuidado, não faça besteira!
Aprenda a perceber
Ela pode te impressionar, te surpreender, te ensinar a ver.
Que mulher é tudo!
A noite
O sol havia recuado. Se escondido.
Fugiu da noite com receio de não ser a única especial
Se despedia com um lindo rastro de cores que pintavam a tela.
E as estrelas portanto, uma a uma começava a aparecer
E a noite bordava as estrelas no céu com medo de serem apagadas
Esquecidas pela manhã
De não serem notadas
Pela ignorância humana.
Cada uma brilhava como se fosse o próprio sol
Encantando o céu
Se apaixonando pela lua
A excêntrica luz do luar
Esta iluminando as suas ruas empoeiradas e solitárias
Enquanto que os corpos celestes tocavam como um piano
Numa canção de cigarras e animais noturnos
Ao encontrar as estrelas no chão, de terem caído do céu
Queriam experimentar a sensação de escutar a noite cantar sozinha.
Permitindo que ela tocasse a harpa da vida
Enquanto ainda havia tempo
Para pensar, para sonhar, para lembrar
Que a noite não pode cantar sozinha.
Que a vida se deve a chances.
Que os sonhos podem ser conquistados.
Que as pessoas mudam.
Que o abismo da humanidade está na verdade em sua mente.
Responsável por viver, sonhar, mudar
A noite merece ser lembrada
E enquanto houver noite, haverá sonhos.
Outono
Chegaste ao outono
Da vida.
Na primavera me mostraste
Os campos de
Teu perfume.
Abandonaste-me no inverno
E meu coração
Congelou.
Restou o mapa de sua nação
De nossas intenções
Tatuado
Maculado em meus seios.
Hoje sou lagarta
Sem verão
À procura de seu coração
Para
Fazer
Transformação.
Chegaste ao outono da vida
Mostraste-me a primavera
Nos campos de teu perfume
Abandonaste no inverno de incertezas
Meu coração, este inverno.
Inferno congelado
Não acha o verão.
Chegaste ao outono da vida
Mostraste-me
Na primavera
Os campos de seu perfume
Um território que eu desconhecia.
Livro Pó de Anjo
Autora: Rosana Fleury
Adverso
Em cada verso
Em cada verso
Que escrevo
Você existe
Em cada página
Que viro
Você permanece
Em cada lágrima
Que corre
Você escorre
Em cada sopro
Do vento
Que bate em
Meu rosto
Você se reinventa e
Reescreve
Em cada vírgula
Que para, pausa
Você resiste
Em cada dia
Que apaga
Você afaga em
Lembranças
Em cada soluço
Que tropeço
Você navega
Nas lágrimas
Em cada palavra
Que escrevo
Você finge e corre
Em cada rima
Que descrevo
Você é o fim
Em cada final
Que você existe
Eu fico
Feliz
Escorre
Delicadamente
Em cada dia que amanhece
Assim
Eu adereço
O seu jeito de ser
Em cada tempero
Que eu verso
Você compõe
Em cada perfume
Em que fico
Você se banha
E o passado
Permanece
Inalterável
Como presença
Peço ao tempo imperar
Transmutação
Até virar
Dia pó
Areia
Pós dia
Poeira
Sujeira
De um verso
Do avesso
Exausto
De ser
Execrável
Cafajeste
De rimar
Ordinário
Em cada tormento
Que me afronta
Eu escrevo
Rimo
Componho
Crucificação com
Libertação
Alforriado
Em paz
Livro Pó de Anjo
Autora: Rosana Fleury
Vazio
Não há nada
Somente vazio
Um copo sem fundo
Um corpo que quer vida
Não há verbos
Para decifrar
A cegueira
De nossos movimentos
Não há dicionário
Para encapar
Os meus,
O seu,
Os nossos
Sentimentos
Não há energia
Nem transcendência do viver
Não há nada
No olhar
Não sobrou coisa nenhuma
Mas há
Você navegando
Em mim.
Livro Pó de Anjo
Autora: Rosana Fleury
Frio
Frio
Adivinha minha alma
Percorra
Sinta
Perceba
A saudade
Frio
Fale
Amargue
Congele
Apague
Tudo
Frio
Endureça
A minha vontade
Congele
Meus dedos
Vire pedra
Para que
Eu nunca
Atire no destino
A quem interessar
Congelou
Minha alma
Frio
Abrace-me
Necrose
Apodreça
Para que nada aconteça
Frio
Não me leve
Não me enterre
Não me deixe
Quero
Arrepiar
Não só de frio
Mas de
Clamor
De um frio absoluto
De amar.
Livro Pó de Anjo
Autora: Rosana Fleury
De que lugar
Onde anda você?
Em que parágrafo você acorda?
Em que capítulo você se despe?
Com que asas você voa?
Em que céus devo te procurar?
Em que estação você floresce?
Em que águas devo te recolher?
Qual o recado que vai enviar?
Em que nuvem vai escrever.....
Livro Pó de Anjo
Autora: Rosana Fleury
O Tapa
Ele pertencia a alguma tribo.
Havia nascido mirrado, moreno, gritava feito indomado e era de gênio irascível.
Donde surgiu isto?
Criatura tão imprevisível, veio ao mundo onde todos só desejavam o aprazível.
Ele era tenente, contente e soberbo, dono de si mesmo.
Era do mundo.
A mãe gritava,
Se irritava.
E ele não se alterava.
Até que um dia...
Sem data...
Sem tempo...
A paciência navegou e naufragou na violência, e a mãe deu um tapa na cara do herdeiro, vomitando sua raiva com raça, na face da criança que ela mesma gerou!
Mas... o pescoço dele virou e ficou assim errado, de
cara virada, nas costas, vendo o mundo afastado.
A mãe gritou e se apavorou e não houve ciência e cientista
que desvirasse o virado.
E ele se criou, num mundo onde ele próprio assistia às aulas de pescoço virado, nas costas.
Mas tirou vantagem!
A mãe tinha trabalho.
Tudo de costas, num mundo que só conta as horas prá frente.
Tinha bom ouvido, porque os olhos nos traem, o olfato nos engana e a verve nos veste de lama mas, ele ganhou na percepção.
O menino, agora homem, cresceu, se profissionalizou e arrasou em tudo.
Até nas conquistas!
Mas, de costas?
Sim de costas.
Como?
Foi assim: ela passou, ele de pescoço virado ignorou; ela se virou e piscou e ele se apaixonou!
Se casaram de data marcada, convite confirmado, com balada ensaiada e festa preparada.
Mas. como seria a entrada?
Ele de costas para a nave central, onde o padre ministrava os sacramentos?
Ela o amava e resolveu:
Vou entrar com ele de cara virada, de braço dado.
Ninguém perdeu!
A Igreja encheu.
Ela desceu do carro, frente aos curiosos,
Feliz!!!
No patamar, à porta, ele a esperava, de pescoço virado.
Ela na certeza de que o amava...
...o beijou... e o pescoço d’ele, desvirou.
O trauma estancou e ela mais se encantou!
E entraram assim:
Ela, elegante, e ele de pescoço desvirado, na grande mágica que o AMOR faz na vida.
Livro: Não Cortem Meus Cabelos
Autora: Rosana Fleury
Índice Poético
Meu Deus,
Me perdoe
Porque o vinho que bebi em dezenas
Me deu um tapa
E pela madrugada
Em metamorfose
Eu vi o corredor
E entrei nele de cabelos longos
E o dragão que habitava nele
Chamuscou meus fios
E eu
Em transformação
Fui à vidente
Para decifrar as linhas
E ela nada me disse
E virei vatapá
Mistura
E no compasso de tudo
Num vôo sem direção
Eu fiquei envidraçada
E a partir de um todo
A verdade
Se perdeu
Em uma história sem fim,
Dentro de uma taça
Onde escorre a vida
E tudo é
Refluxo
Do que vivemos.
Livro: Não Cortem Meus Cabelos
Autora: Rosana Fleury
Metamorfose da Solidão
Ele havia morrido.
Rosa Augusta deitou-se silenciosamente aos pés da cama.
Emudecida, anestesiada pelo sofrimento. Não havia soluços, desespero, nem pranto incontrolável.
Somente seus pensamentos voavam e cerravam todas as portas do casarão, avisando a todos, que, naquele instante se encerrava uma história, uma vida. Dali em diante, somente abrindo as alas da morte para conhecer o outro lado.
Não era feriado, dia santo e o comércio não parou. Somente ela vestiu-se de negro. Aprumou seu coque, dobrou o lenço de linho miúdo e colocou-o no punho da manga e recebeu os... “sentimentos”...
Numa noite clara de luar, pessoas iam e vinham, aconchegadas, quentes, acalentando Rosa Augusta que escondia os pés doídos de frio e solidão, debaixo das barbatanas e anáguas.
Seus pés gelados trincaram e se despedaçaram pela sala como pedras soltas...
Ela ficou inerte, sobre os cotos, sem dor, esperando que a alma dele lhe desse asas para voar.
As pedras despedaçaram, derreteram e escorreram pela sala. Ninguém entendia o porque de tantas poças d'água já que a casa era toda forrada e de Rosa Augusta não desprendia uma lágrima sequer.
Ela, num gesto de consolo a si própria, descobriu a face do amado, emoldurado pelo fino filó, passou o lenço pela sua testa como se ele vivesse e transpirasse sua existência ali inerte.
Neste instante, ao recolher o lenço, este caiu sobre as poças do chão-molhado, encharcou-se de emoção nas águas caídas, aumentou de tamanho, desdobrou suas formas e transformou-se em asas que Rosa Augusta vestiu e voou... acreditando que a vida é uma grande “METAMORMOSE!
Livro: Não Cortem Meus Cabelos
Autora: Rosana Fleury
A pérola do Poeta
A poesia é uma pérola gerada pelo transtorno que um sentimento nos causa depois de entrar com tudo em nossa vida. Ao mesmo tempo que nos engrandece por dentro nos perturba por fora, porque é de um valor inestimável, e não queremos que ninguém o tire de nós. Porque ele quem nos tornou valorizados na terra. De fato, é impressionante o que acontece quando um pequenino grão de areia consegue entrar dentro de uma pequena ostra. Ambos se tornam grandes aos olhos de Deus e dos humanos por causa do perfeito atrito entre os dois.
Para Ana
Não leve
Os móveis que são tão herméticos
e não cabem dentro deles
Toda sua imaginação
Não leve
Os pratos e as louças tão frágeis!
Você é lutadora.
Não leve
Os anéis, tão vadios
Que vão dedos em dedos
Pois você é determinada.
Leve
As palavras, as lembranças,
as risadas
As presenças cheias de saudades
os conselhos
as críticas filtradas
Leve
Os desejos e os sonhos
que são suas pernas
e a realidade
de todos os dias
que formatam
toda sua existência.
Leve
As lembranças
A trança
de todos seus amigos
que foram plateia
de suas angústias
E te recolheram
quando a coreografia não estava no
compasso
e se calaram
Leve
O respeito
pela lágrima
que escorre
a qualquer hora
E pense:
Se tudo não aconteceu
conforme suas verdades
não são fracassos
São os anjos que desviaram
do seu caminho
aquilo que nunca poderia
viver e entender
Porque não existem fracassos
mas intervalos
para pensar
reestruturar
Mudar
Livro Pó de Anjo
Autora: Rosana Fleury
Agosto
Vou tomar um banho
Longo
Para espalhar seu cheiro
Vou sentar-me à janela
Mirar o mar
Amar os momentos que passamos
Vou beber um rosé
Leve
Embebedar-me da
Sua ausência
Vou cultivar cada frase
Reescrevê-las em
Minha memória
E perguntar-me qual
É a urgência
Vou resolver minha criatura
E nesta curva
Fazer uma declaração
A um fantasma.
Vou acabar flutuando
Sobre a noite
Curvar-me
Entre o beijo e o amanhecer
E neste breve espaço
Sem mistérios dizer
O quanto te amei.
Livro Pó de Anjo
Autora: Rosana Fleury