Textos de Anaïs Nin
Um homem jamais pode entender o tipo de solidão que uma mulher experimenta. Um homem se deita sobre o útero da mulher apenas para se fortalecer, ele se nutre desta fusão, se ergue e vai ao mundo, a seu trabalho, a sua batalha, sua arte. Ele não é solitário. Ele é ocupado. A memória de nadar no líquido aminótico lhe dá energia, completude. A mulher pode ser ocupada também, mas ela se sente vazia. Sensualidade para ela não é apenas uma onda de prazer em que ela se banhou, uma carga elétrica de prazer no contato com outra. Quando o homem se deita sobre o útero dela, ela é preenchida, cada ato de amor, ter o homem dentro dela, um ato de nascer e renascer, carregar uma criança e carregar um homem. Toda vez que o homem deita em seu útero se renova no desejo de agir, de ser. Mas para uma mulher, o climax não é o nascimento, mas o momento em que o homem descansa dentro dela.
Sou a mulher mais cansada do mundo. Fico cansada assim que me levanto. A vida requer um esforço de que me sinto incapaz. Por favor passa-me esse livro pesado. Preciso de pôr qualquer coisa pesada sobre a cabeça. Necessito constantemente de pôr os meus pés sob almofadas para que consiga continuar na terra. De outro modo sinto-me partir, partir a uma velocidade tremenda, tão leve me sinto. Sei que estou morta. Logo que pronuncio uma frase a sinceridade morre e torna-se numa mentira cuja frieza me gela. Não me digas nada, vejo que me entendes, mas tenho receio dessa compreensão, tenho medo de encontrar alguém semelhante a mim e ao mesmo tempo desejo-o. Sinto-me tão definitivamente só, mas tenho tanto medo que o isolamento seja violado e eu não seja mais o cérebro e a lei do meu universo. Sinto-me no grande terror do teu entendimento, meio por que penetras no meu mundo; e que, sem véus, tenha então que partilhar o meu reino.
Estou doente da persistência de imagens, reflexos e espelhos. Eu sou uma mulher com olhos de gato siamês que por detrás das palavras mais sérias sorri sempre troçando da minha própria intensidade. Sorrio porque presto atenção ao OUTRO e acredito no OUTRO. Sou marioneta movida por dedos inexperientes, desmantelada, deslocada sem harmonia; um braço inerte, outro remexendo-se a meia altura. Rio-me, não quando o riso se adapta ao meu discurso, mas porque ele se implica nas correntes subjacentes do que eu digo.
Imaginei por um momento um mundo sem Henry. E jurei que no dia que perder Henry, eu matarei minha vulnerabilidade, minha capacidade para o verdadeiro amor, meus sentimentos, com a devassidão mais frenética. Depois de Henry não quero mais amor. {…} Depois de não ver Henry por cinco dias por causa de mil obrigações, não pude suportar. Pedi a ele para se encontrar comigo durante uma hora entre dois compromissos. Conversamos por um momento, então fomos para um quarto do hotel mais próximo. Que necessidade profunda dele. Só quando estou em seus braços as coisas parecem direitas. Depois de uma hora com ele, pude continuar o meu dia, fazendo coisas que não quero fazer, vendo pessoas que não me interessam.
Secaram as sementes no silêncio da rocha e mineral. As palavras que não chegamos a gritar, as lágrimas retidas, as pragas que se engolem, a frase que se encurta, o amor que matamos, tudo isso transformado em minério magnético, em turmalina, em ágata, o sangue congelado em cinábrio, sangue calcinado tornado galena, oxidado, aluminizado, sulfatado, calcinado, o brilho mineral de meteoros mortos e sóis exaustos numa floresta de árvores secas e desejos mortos.
Conheço apenas o medo, é verdade, tanto medo que me sufoca, que me deixa a boca aberta mas sem fôlego, como alguém a quem falta o ar; ou noutras alturas, deixo de ouvir e fico subitamente surda para o mundo. Bato os pés e não ouço nada. Grito e não percebo nem mesmo um pouco do meu grito. E também às vezes, quando estou deitada o medo volta a assaltar-me, o terror profundo do silêncio e do que poderá sair desse silêncio para me atingir e bata nas paredes das minhas têmporas, um grande, sufocante pavor. Eu então bato nas paredes, no chão, para acabar com o silêncio. Bato, canto, assobio com persistência até mandar o medo embora
Quero cruzadas e martírio. O mundo é demasiado pequeno para mim. O mundo é pequeno demais. Estou cansada de tocar guitarra, fazer malha, passear, parir crianças. Os homens são pequenos e as paixões são curtas. Irritam- me as escadas, as portas, as paredes, irrita-me o dia a dia que interfere na continuidade do êxtase. Existe pois o martírio - tensão, febre, da continuidade da vida - firmamento em perpétuo movimento e brilho total. Nunca se viram estrelas empalidecer ou cair. Nunca adormecem.
O amor nunca morre de morte natural. Añais Nin estava certa.
Morre porque o matamos ou o deixamos morrer.
Morre envenenado pela angústia. Morre enforcado pelo abraço. Morre esfaqueado pelas costas. Morre eletrocutado pela sinceridade. Morre atropelado pela grosseria. Morre sufocado pela desavença.
Mortes patéticas, cruéis, sem obituário e missa de sétimo dia.
Mortes sem sangramento. Lavadas. Com os ossos e as lembranças deslocados.
O amor não morre de velhice, em paz com a cama e com a fortuna dos dedos.
Morre com um beijo dado sem ênfase. Um dia morno. Uma indiferença. Uma conversa surda. Morre porque queremos que morra. Decidimos que ele está morto. Facilitamos seu estremecimento.
O amor não poderia morrer, ele não tem fim. Nós que criamos a despedida por não suportar sua longevidade. Por invejar que ele seja maior do que a nossa vida.
O fim do amor não será suicídio. O amor é sempre homicídio. A boca estará estranhamente carregada.
Repassei os olhos pelos meus namoros e casamentos. Permiti que o amor morresse. Eu o vi indo para o mar de noite e não socorri. Eu vi que ele poderia escorregar dos andares da memória e não apressei o corrimão. Não avisei o amor no primeiro sinal de fraqueza. No primeiro acidente. Aceitei que desmoronasse, não levantei as ruínas sobre o passado. Fui orgulhoso e não me arrependi. Meu orgulho não salvou ninguém. O orgulho não salva, o orgulho coleciona mortos.
No mínimo, merecia ser incriminado por omissão.
Mas talvez eu tenha matado meus amores. Seja um serial killer. Perigoso, silencioso, como todos os amantes, com aparência inofensiva de balconista. Fiz da dor uma alegria quando não restava alegria.
Mato; não confesso e repito os rituais. Escondo o corpo dela em meu próprio corpo. Durmo suando frio e disfarço que foi um pesadelo. Desfaço as pistas e suspeitas assim que termino o relacionamento. Queimo o que fui. E recomeço, com a certeza de que não houve testemunhas.
Mato porque não tolero o contraponto. A divergência. Mato porque ela conheceu meu lado escuro e estou envergonhado. Mato e mudo de personalidade, ao invés de conviver com minhas personalidades inacabadas e falhas.
Mato porque aguardava o elogio e recebia de volta a verdade.
O amor é perigoso para quem não resolveu seus problemas. O amor delata, o amor incomoda, o amor ofende, fala as coisas mais extraordinárias sem recuar. O amor é a boca suja. O amor repetirá na cozinha o que foi contado em segredo no quarto. O amor vai abrir o assoalho, o porão proibido, fazer faxina em sua casa. Colocar fora o que precisava, reintegrar ao armário o que temia rever.
O amor é sempre assassinado. Para confiarmos a nossa vida para outra pessoa, devemos saber o que fizemos antes com ela.
Eu não quero ser o líder. Eu me recuso a ser o líder. Eu quero viver obscuramente e ricamente em minha feminilidade. Eu quero um homem deitado em cima de mim, sempre em cima de mim. Sua vontade, seu prazer, seu desejo, sua vida, seu trabalho, sua sexualidade a pedra de toque, o comando, meu pivô. Eu não me importo de trabalhar, segurando a minha terra intelectualmente, artisticamente, mas como uma mulher, oh, Deus, como uma mulher que eu quero ser dominada.
Eu sou uma pessoa excitável que só entende vida liricamente,
musicalmente, em quem sentimentos são muito mais fortes que a razão.
Eu estou tão sedenta para o maravilhoso que só o maravilhoso tem poder sobre mim.
Qualquer coisa que eu não possa transformar em algo maravilhoso, eu deixo ir.
Realidade não me impressiona. Eu só acredito em intoxicação, em êxtase,
e quando vida ordinária me algemar, eu escapo, de uma maneira ou de outra.
Nenhum muro mais.
Na manhã em que me levantei para começar este livro tossi. Algo estava a sair-me da garganta, a estrangular-me. Rasguei o cordão que o retinha e arranquei-o. Voltei para a cama e disse: Acabo de cuspir o coração.
Existe um instrumento chamado quena que é feito de ossos humanos. Tem origem no culto que um índio dedicou à sua amante. Quando ela morreu ele fez dos seus ossos uma flauta. A quena tem um som mais penetrante, mais persistente do que a flauta vulgar.
Aqueles que escrevem sabem o processo. Pensei nisto enquanto cuspia o coração. Só que eu não estou à espera da morte do meu amor.
É o papel de Fred, inconscientemente, envenenar minha felicidade. Ele enfatiza as incongruências do amor de Henry. Eu não mereço um amor pela metade, diz ele. Mereço coisas extraordinárias. Mas o meio amor de Henry vale mais para mim do que todos os amores de mil homens.
Imaginei por um momento um mundo sem Henry. E jurei que no dia que perder Henry, eu matarei minha vulnerabilidade, minha capacidade para o verdadeiro amor, meus sentimentos, com a devassidão mais frenética. Depois de Henry não quero mais amor. Só foder, por um lado, e solidão e trabalho, por outro. Nada mais de mágoa.
Depois de não ver Henry por cinco dias por causa de mil obrigações, não pude suportar. Pedi a ele para se encontrar comigo durante uma hora entre dois compromissos. Conversamos por um momento, então fomos para um quarto do hotel mais próximo. Que necessidade profunda dele. Só quando estou em seus braços as coisas parecem direitas. Depois de uma hora com ele, pude continuar o meu dia, fazendo coisas que não quero fazer, vendo pessoas que não me interessam.
Um quarto de hotel, para mim, tem a implicação de voluptuosidade, furtiva, fugaz. Talvez o fato de não ver Henry tenha aumentado a minha fome. Eu me masturbo frequentemente, com luxúria, sem remorso ou repugnância. Pela primeira vez eu sei o que é comer. Ganhei dois quilos. Fico desesperadamente faminta, e a comida que como me dá um prazer duradouro. Nunca comi desta maneira profunda e carnal. Só tenho três desejos agora: comer, dormir e foder. Os cabarés me excitam. Quero ouvir música rouca, ver rostos, roçar-me em corpos, beber um Benedictine ardente. Belas mulheres e homens atraentes provocam desejos em mim. Quero dançar. Quero drogas. Quero conhecer pessoas perversas, ser íntima delas. Nunca olho para rostos inocentes. Quero morder a vida e ser despedaçada por ela. Henry não me dá tudo isso. Eu despertei o seu amor. Maldito seja o seu amor. Ele sabe foder como ninguém, mas eu quero mais que isso.
Eu vou para o inferno, para o inferno, para o inferno.
Selvagem, selvagem, selvagem.
Quero ouvir música rouca, ver rostos, a escova contra corpos. Mulheres bonitas e homens bonitos despertam desejos ferozes em mim. Eu quero dançar, quero drogas, quero conhecer pessoas perversas, ser íntima com eles. Eu nunca olho para o rosto ingênuo. Quero morder a vida, para ser rasgada por ele - Estou indo para o inferno, para o inferno, para o inferno - selvagem, selvagem, selvagem.
O que chamamos de nosso destino é verdadeiramente nosso caráter, e esse caráter pode ser mudado. O conhecimento de que somos responsáveis por nossas ações e atitudes não precisa ser desanimador, porque também significa que somos livres para mudar esse destino. Não somos cativos do passado. Podemos mudá-lo se tivermos a coragem de examinar como ele nos formou. Podemos mudar a química desde que tenhamos coragem de dissecar os elementos.
O novo Cristo declarou: nasci sem pele. Um dia sonhei que estava nu num jardim e que cuidadosa e completamente me tiravam a pele como a um fruto. Não ficou nem um resto de pele no meu corpo. Foi toda mas toda retirada com cuidado e só depois me disseram para andar, viver e correr. A princípio movimentei-me devagar, o jardim era tremendamente macio e eu sentia de uma forma precisa o jardim- doçura, não na superfície do corpo, mas atravessando- me o ar doce e os perfumes, como agulhas penetrando todos os meus poros em sangue. Todos os poros estavam abertos e respiravam calor, doçura e cheiros. O corpo totalmente invadido, penetrado, reagindo, a mais pequena célula e poros vivos respirando e tremendo com prazer. Gritei de dor. Corri. E ao correr o vento chicoteava-me e as vozes das pessoas eram chicotes dirigidos a mim. Ser tocado! Acaso sabem vocês o que é ser tocado por um ser humano?
Eu percebo onde eu posso encontrar o meu navio novamente, as minhas viagens: só no sonho, nas drogas, na criação e na perversidade. Eu decidi ser imprudente, para fazer e tentar de tudo, porque nada me detém sobre a terra, e eu não tenho medo de morrer.
Vou viver a minha febre, intoxicar-me com as pessoas, a vida, o barulho, movimento, trabalho, criação, e tudo o que, de saber e sentir, vou tentar.
Nós não crescemos de forma absoluta, cronologicamente. Nós crescemos às vezes em uma dimensão, e não em outra; de forma irregular. Nós crescemos parcialmente. Somos relativos. Somos maduros numa esfera, infantil em outra. O passado, presente e futuro se misturam e nos puxam para trás, para frente, ou nos fixa no presente. Nós somos constituídos de camadas, células, constelações.
Eu caminho esquecendo-me em lembranças de Henry como seu rosto se parece em determinados momentos, sua boca travessa, o som exato de sua voz, às vezes áspera, o aperto firme de sua mão, como ele ficou no casaco verde usado de Hugo, seu riso no cinema. Ele não faz um movimento que não reverbere em meu corpo. Tem a mesma altura que eu. Nossas bocas ficam no mesmo nível. Ele esfrega as mãos quando está excitado, repete palavras, sacode a cabeça como um urso. Tem um olhar sério e casto quando trabalha. Numa multidão, sinto sua presença antes de vê-lo.