Sonetos de Fernando Pessoa
A morte é a curva da estrada,
Morrer é só não ser visto.
Se escuto, eu te ouço a passada
Existir como eu existo.
A terra é feita de céu.
A mentira não tem ninho.
Nunca ninguém se perdeu.
Tudo é verdade e caminho.
Esta espécie de loucura
Que é pouco chamar talento
E que brilha em mim, na escura
Confusão do pensamento.
Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.
Essência musical dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-me como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.
O milagre é a preguiça de Deus, ou, antes, a preguiça que Lhe atribuímos, inventando o milagre. Bernardo Soares
(extraído do livro em PDF: Aforismo e Afins)
Tendo visto com que lucidez e coerência lógica certos loucos justificam, a si próprios e aos outros, as suas ideias delirantes, perdi para sempre a segura certeza da lucidez da minha lucidez. Bernardo Soares
(extraído do livro em PDF: Aforismo e Afins)
“Pobres das flores dos canteiros dos jardins regulares.
Parecem ter medo da polícia...
Mas tão boas que florescem do mesmo modo”...
(trecho extraído do livro em PDF: Poemas de Alberto Caeiro)
Quadras
Morto hei de estar ao teu lado
sem o sentir nem saber
mesmo assim isso me basta
para ver um bem em morrer
Quando passo o dia inteiro
sem ver o meu amorzinho
corre um frio de janeiro
no junho do meu carinho
Teus olhos tristes parados
coisa nenhuma a fitar
ah meu amor,meu amor
se eu fora nenhum lugar
Adivinhei o que pensas
só por saber que não era
qualquer das coisas imensas
que a minha alma de ti espera
Vai alta a nuvem que passa
vai alto meu pensamento
que é escravo da tua alma]
como a lua o é do vento
Ambos á beira do poço
achamos que é muito fundo
deita-se a pedra e o que ouço
teu olhar que é meu mundo
todas as coisas que dizem
afinal não são verdades
mas se nos fazem felizes
isso é felicidade
ADEUS...
ADEUS…
O navio vai partir, sufoco o pranto
Que na alma faz nascer cruel saudade;
Só me punge a lembrança que em breve há-de
Fugir ao meu olhar o teu encanto.
Não mais ao pé de ti, fruindo santo
Amor em sonho azul; nem a amizade
De amigos me dará felicidade
Igual à que gozei contigo tanto.
Dentro do peito frio meu coração
Ardendo está co'a força da paixão,
Qual mártir exilado em gelo russo...
Vai largando o navio p'ra largo giro:
Eu meu «adeus» lhe envio n'um suspiro,
Ela um adeus me envia n'um soluço.
Quando Eu Não Te Tinha
Quando eu não te tinha
Amava a Natureza como um monge calmo a Cristo.
Agora amo a Natureza
Como um monge calmo à Virgem Maria,
Religiosamente, a meu modo, como dantes,
Mas de outra maneira mais comovida e próxima...
Vejo melhor os rios quando vou contigo
Pelos campos até à beira dos rios;
Sentado a teu lado reparando nas nuvens
Reparo nelas melhor –
Tu não me tiraste a Natureza...
Tu mudaste a Natureza...
Trouxeste-me a Natureza para o pé de mim,
Por tu existires vejo-a melhor, mas a mesma,
Por tu me amares, amo-a do mesmo modo, mas mais,
Por tu me escolheres para te ter e te amar,
Os meus olhos fitaram-na mais demoradamente
Sobre todas as coisas.
Não me arrependo do que fui outrora
Porque ainda o sou.
CONSELHO
Cerca de grandes muros quem te sonhas.
Depois, onde é visível o jardim
Através do portão de grade dada,
Põe quantas flores são as mais risonhas,
Para que te conheçam só assim.
Onde ninguém o vir não ponhas nada.
Faze canteiros como os que outros têm,
Onde os olhares possam entrever
O teu jardim como lho vais mostrar.
Mas onde és teu, e nunca o vê ninguém
Deixa as flores que vêm do chão crescer
E deixa as ervas naturais medrar.
Faze de ti um duplo ser guardado;
E que ninguém, que veja e fite, possa
Saber mais que um jardim de quem tu és —
Um jardim ostensivo e reservado,
Por trás do qual a flor nativa roça
A erva tão pobre que nem tu a vês...
ULYSSES
O mytho é nada que é tudo.
É o mesmo sol que abre os céus.
É um mytho brilhante e mudo —
O corpo morto de Deus,
Vivo e desnudo.
Este, que aqui aportou,
Foi por não ser existindo.
Sem existir nos bastou.
Por não ter vindo foi vindo
E nos criou.
Assim a lenda se escorre
A entrar na realidade,
E a fecundá-la decorre.
Em baixo, a vida, metade
De nada, morre.
(Mensagem)
Mas para que me comparo com uma flor, se eu sou eu
E a flor é a flor?
Mas o que faz rir a valer é que nós pensamos sempre noutra coisa,
E vivemos vadios da nossa realidade.
E estamos sempre fora dela porque estamos aqui.
Houve um dia em que subi esta rua pensando alegremente no futuro.
Pois Deus dá licença que o que não existe seja fortemente iluminado.
Hoje, descendo esta rua, nem no passado penso alegremente.
Quando muito, nem penso...
Tenho a impressão que as duas figuras se cruzaram na rua, nem então nem agora,
Mas aqui mesmo, sem tempo a perturbar o cruzamento.
Olhámos indiferentemente um para o outro.
E eu o antigo lá subi a rua imaginando um futuro girassol.
E eu o moderno lá desci a rua não imaginando nada.
Guardo ainda, como um pasmo
Em que a infância sobrevive,
Metade do entusiasmo
Que tenho porque já tive.
Quase às vezes me envergonho
De crer tanto em que não creio.
É uma espécie de sonho
Com a realidade ao meio.
Girassol do falso agrado
Em torno do centro mudo
Fala, amarelo, pasmado
Do negro centro que é tudo.
Quando te vi, amei-te já muito antes.
Tornei a achar-te quando te encontrei.
Nasci pra ti antes de haver o mundo.
Não há coisa feliz ou hora alegre
Que eu tenha tido pela vida fora,
Que não o fosse porque te previa,
Porque dormias nela tu futuro,
E com essas alegrias e esse prazer
Eu viria depois a amar-te.
O inexplicável horror
De saber que esta vida é verdadeira.
Quando as crianças brincam
E eu as oiço brincar,
Qualquer coisa em minha alma
Começa a se alegrar.
E toda aquela infância
Que não tive me vem,
Numa onda de alegria
Que não foi de ninguém.
Se quem fui é enigma,
E quem serei visão,
Quem sou ao menos sinta
Isto no coração.
Fiquei doido, fiquei tonto...
Meus beijos foram sem conto,
Apertei-a contra mim,
Aconcheguei-a em meus braços,
Embriaguei-me de abraços...
Fiquei tonto e foi assim...
Sua boca sabe a flores,
Bonequinha, meus amores,
Minha boneca que tem
Bracinhos para enlaçar-me,
E tantos beijos p'ra dar-me
Quantos eu lhe dou também.
Ah que tontura e que fogo!
Se estou perto dela, é logo
Uma pressa em meu olhar,
Uma música em minha alma,
Perdida de toda a calma,
E eu sem a querer achar.
Dá-me beijos, dá-me tantos
Que, enleado nos teus encantos,
Preso nos abraços teus,
Eu não sinta a própria vida,
Nem minha alma, ave perdida
No azul-amor dos teus céus.
Não descanso, não projecto
Nada certo, sempre inquieto
Quando te não beijo, amor,
Por te beijar, e se beijo
Por não me encher o desejo
Nem o meu beijo melhor.