Sonetos de Fernando Pessoa
A Criança Que Ri na Rua
A CRIANÇA que ri na rua,
A música que vem no acaso,
A tela absurda, a estátua nua,
A bondade que não tem prazo -
Tudo isso excede este rigor
Que o raciocínio dá a tudo,
E tem qualquer cousa de amor,
Ainda que o amor seja mudo
"Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
(...)Toda gente que conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida.
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma covardia!
Não, são todos o Ideal, se os ouço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos
Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?..."
in Poema Em Linha Reta
A Criança que Fui Chora na Estrada
A criança que fui chora na estrada.
Deixei-a ali quando vim ser quem sou;
Mas hoje, vendo que o que sou é nada,
Quero ir buscar quem fui onde ficou.
Ah, como hei-de encontrá-lo? Quem errou
A vinda tem a regressão errada.
Já não sei de onde vim nem onde estou.
De o não saber, minha alma está parada.
Se ao menos atingir neste lugar
Um alto monte, de onde possa enfim
O que esqueci, olhando-o, relembrar,
Na ausência, ao menos, saberei de mim,
E, ao ver-me tal qual fui ao longe, achar
Em mim um pouco de quando era assim.
O Amor
O amor, quando se revela,
Não se sabe revelar.
Sabe bem olhar p'ra ela,
Mas não lhe sabe falar.
Nada me explica. Nada me pertence
E sobre tudo a lua alheia verte
A luz que tudo dissipa e nada vence.
Não tenho ambições nem desejos
Ser poeta não é uma ambição minha
É a minha maneira de estar sozinho.
Irrita-me a felicidade de todos estes homens que não sabem que são infelizes. A sua vida humana é cheia de tudo quanto constituiria uma série de angústias para uma sensibilidade verdadeira. Mas, como a sua verdadeira vida é vegetativa, o que sofrem passa por eles sem lhes tocar na alma, e vivem uma vida que se pode comparar somente à de um homem com dor de dentes que houvesse recebido uma fortuna — a fortuna autêntica de estar vivendo sem dar por isso, o maior dom que os deuses concedem, porque é o dom de lhes ser semelhante, superior como eles (ainda que de outro modo) à alegria e à dor.
Por isto, contudo, os amo a todos. Meus queridos vegetais!
“Quando eu quis
tirar a máscara
ela estava pregada à cara.
Quando enfim tirei
e me vi no espelho
já tinha envelhecido muito”.
(Mar Português)
Fiquei doido, fiquei tonto...
Meus beijos foram sem conto,
Apertei-a contra mim,
Aconcheguei-a em meus braços,
Embriaguei-me de abraços...
Fiquei tonto e foi assim...
Sua boca sabe a flores,
Bonequinha, meus amores,
Minha boneca que tem
Bracinhos para enlaçar-me,
E tantos beijos p'ra dar-me
Quantos eu lhe dou também.
Ah que tontura e que fogo!
Se estou perto dela, é logo
Uma pressa em meu olhar,
Uma música em minha alma,
Perdida de toda a calma,
E eu sem a querer achar.
Dá-me beijos, dá-me tantos
Que, enleado nos teus encantos,
Preso nos abraços teus,
Eu não sinta a própria vida,
Nem minha alma, ave perdida
No azul-amor dos teus céus.
Não descanso, não projecto
Nada certo, sempre inquieto
Quando te não beijo, amor,
Por te beijar, e se beijo
Por não me encher o desejo
Nem o meu beijo melhor.
(Fernando Pessoa)
"Sonhar mesmo que seja impossível
Lutar mesmo que o inimigo seja invencível
Suportar a dor, mesmo que seja insuportável
Correr, mesmo onde o bravo não ouse ir
Transformar no bem o que é mal,
mesmo que o caminho seja de mil milhas
Amar o puro e o inocente,
mesmo que seja insistente
Persistir, mesmo quando
o corpo não mais resista
E, afinal, tocar aquela estrela,
mesmo que seja impossível."
-Fernando Pessoa-
A loucura, longe de ser uma anomalia, é a condição normal humana. Não ter consciência dela, e ela não ser grande, é ser homem normal. Não ter consciência dela e ela ser grande, é ser louco. Ter consciência dela e ela ser pequena é ser desiludido. Ter consciência dela e ela ser grande é ser gênio.
(Aforismos e afins)
DÁ-ME A VERDADE:dou-te a vida.
A vida esquece como a água PASSA,
E é coisa morta a coisa que é esquecida.
Dá-me a verdade!
Como o que nunca foi, a vida esvoaça.
Ter o que é certo nas incertas mãos!
Saber bem o que nunca pode ser!
Tudo isto nos faz ermos e irmãos
No nada que nós somos.
Dá-me poder sentir, saber querer!
Instante inútil entre ser e estar,
Momento vácuo entre sonhar ou não,
Tudo isto pode ser e não ficar.
Dá-me a verdade!
Mas deixa-me a mentira ao coração!
(Fernando Pessoa)
Passei por ti sem que te visse
Vi-te depois de ti não ver
O lembrar traz à superfície
O que o olhar deixa perder.
Quer pouco: terás tudo.
Quer nada: serás livre.
O mesmo amor que tenham
Por nós, quer-nos, oprime-nos.
Ah, meu maior amigo, nunca mais
Na paisagem sepulta desta vida
Encontrarei uma alma tão querida
Às coisas que em meu ser são as reais.
Há qualquer coisa
de longínquo em mim neste momento.
Estou de facto à varanda da vida,
mas não é bem desta vida.
(...)
Sou todo eu uma vaga saudade,
nem do passado,
nem do futuro:
sou uma saudade do presente,
anônima,
prolixa e incompreendida.