Só Queria dizer que te Amo carta Filho

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Eu só conheço mulher louca. Pense em qualquer uma que você conhece e me diga se ela não tem ao menos três dessas qualificações: exagerada, dramática, verborrágica, maníaca, fantasiosa, apaixonada, delirante. Pois então. Também é louca. E fascinante.
Todas as mulheres estão dispostas a abrir a janela, não importa a idade que tenham. Nossa insanidade tem nome: chama-se Vontade de Viver até a Última Gota. Só as cansadas é que se recusam a levantar da cadeira para ver quem está chamando lá fora. E santa, fica combinado, não existe. Uma mulher que só reze, que tenha desistido dos prazeres da inquietude, que não deseje mais nada? Você vai concordar comigo: só sendo louca de pedra.

Martha Medeiros
MEDEIROS, M. Doidas e Santas. Porto Alegre: L&PM, 2008.

Nota: Trecho da crônica "Doidas e Santas"

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Só Você

Relembrar uma injustiça sofrida
Esperando que a outra pessoa sofra
Sempre fará você mesmo sofrer
Só você não consegue esquecer, já passou
Estar comentando o tempo todo
Não deixa que você esqueça
Tudo acontece dentro da sua cabeça
Importância demasiada ao que aconteceu
Momento algum lhe deixará feliz
Esperar que o outro reconhecesse que errou
Não vai acontecer ele vai só esquecer
Tudo a sua volta pode melhorar
Onde só depende de você perdoar.

Não só quem nos odeia ou nos inveja
Nos limita e oprime; quem nos ama
Não menos nos limita.
Que os deuses me concedam que, despido
De afetos, tenh a fria liberdade
Dos píncaros sem nada.
Quem quer pouco, tem tudo; quem quer nada
É livre; quem não tem, e não deseja,
Homem, é igual aos deuses.

"Ele é só um cara...

É só um cara.Não o ‘denso lago de mistérios gozosos onde você mergulhou e ainda não submergiu’.Nem o ‘sustentáculo de todos os ossos de seu corpo’, tampouco ‘o mármore onde está gravada a suprema razão de sua existência’.É só um cara.

E quer mesmo saber?É um cara como todos os outros caras.

Esse que te perguntou as horas no meio da rua – podia ter sido ele e você nem ligou.O mendigo, o ginecologista, o padre, o dealer.Ele estava ali o tempo todo.E ele não estava.Ele é só um deles.Vários.Uma legião.E ninguém.

É só um cara.E não a sua vida.E não todos os dias da sua história.E não todas as suas lágrimas juntas em um único sábado solitário.Ele não é o destino.É um cara.Existem muitos destinos.

Ele é só um cara que mal sabe escolher os próprios perfumes.Não sabe sangrar.Não sabe que nome daria a um filho.Não pode ficar mais tempo. Ele é só um cara perdido como muitos outros caras que você encontrou. E perdeu.

Ele é só um cara.E você já esqueceu outro caras antes."

Ele não é só um cara, esse sim, esse esquenta as suas mãos e escuta os seus impropérios e gracinhas com o mesmo apego.

Faz perguntas, faz suas unhas, faz comida, te leva o mundo numa bandeja quando você acorda. Ele não te deixou apodrecendo ali onde você não pudesse incomodar, não não: ele chegou meia hora antes e trouxe flores cor de laranja. Depois ainda te levou para algum lugar cheio de estrelas e pernilongos. E te avisou que quando seus olhos borraram do rímel.

Ele é diferente de tudo o que é errado em seu mundo e em outros mundos. Não te poupou, porque sabe que você é esperta. Você diria que ele salvou sua vida se não soasse tão dramático. E se isso não fosse mentira – a sua vida velha não merecia ser salva e ele te trouxe uma vida nova que inventou só pra você.

Ele te faz sofrer muito, porque sofrer é importante. Ele não faz planos ou promessas, só surpresas. Te ensinou a gostar de surpresas, a esperar, ele te deixa esperando, não deixa nada muito claro, você voltou a roer unhas, você nunca sabe, mas a verdade é que ele está sempre ali, ou logo adiante.

Ele é diferente. Ele não é só um cara. Ele te ouve como se te entendesse, fala como quem soubesse o que dizer e não diz nada muitas vezes, porque ele entende os silêncios. Ele mente pra não te chatear e não te deixa descobrir. Ele existe. Você sabe que seriam bons amigos, bons parceiros, bons inimigos, mas você prefere ser a ´
garota dele. E que serão importantes na história um do outro para sempre, independentemente de tudo que estiver pra acontecer.

Porque ele não é só um cara. Você não quer mais só um cara. E ele é tudo que você quer hoje.

Spinoza escreveu: "Percebi que todas as coisas que temia e receava só continham algo de bom ou de mau na medida em que o ânimo se deixava afetar por elas."
O filósofo tem razão. A alegria ou a tristeza só poderão continuar dentro de nós à medida que nos deixamos afetar por suas causas. É questão de escolha. Dura, eu sei. Difícil, reconheço. Mas ninguém nos prometeu que seria fácil.
Se hoje a vida lhe apresenta motivos para sofrer, ouse olhá-los de uma forma diferente. Não aceite todo este contexto de vida como causa já determinada para o seu fracasso. Não, não precisa ser assim.
Deixe-se afetar de um jeito novo por tudo isso que já parece tão velho. Sofrimentos não precisam ser estados definitivos. Eles podem ser apenas pontes, locais de travessia. Daqui a pouco você já estará do outro lado; modificado, amadurecido.
Certa vez, um velho sábio disse ao aluno que, ao longo de sua vida, ele descobriu ter dentro de si dois cães - um bravo e violento, e o outro manso, muito dócil.
Diante daquela pequena história o aluno resolveu perguntar - E qual é o mais forte? O sábio respondeu - o que eu alimentar.

Amor
Eu orei por você
Esperei por esse dia
Eu sempre acreditei em nós dois
Eu falei só pra Deus
Sobre tudo que eu sentia
Por você, meu amor
Te amo, é tudo que eu quero te dizer
E a minha vida inteira eu vou viver
Pra Deus, pra você
Vou te amar
Dividir os meus segredos com você
Eu quero ser somente uma mulher
Segundo o coração de Deus
Seremos um, uma só carne, uma família, mais um milagre nas mãos de Deus.
Na alegria ou na dor, na saúde ou na enfermidade
Aconteça o que for eu vou te amar
Com mais poder do que palavras podem dizer!

XLVIII

Dois amantes ditosos fazem um só pão,
uma só gota de lua na erva,
deixam andando duas sombras que se reúnem,
deixam um só sol vazio numa cama.

De todas as verdades escolheram o dia:
não se ataram com fios senão com um aroma,
e não despedaçaram a paz nem as palavras.
A ventura é uma torre transparente.

O ar, o vinho vão com os dois amantes,
a noite lhes oferta suas ditosas pétalas,
tem direito a todos os cravos.

Dois amantes felizes não tem fim nem morte,
nascem e morrem muitas vezes enquanto vivem,
tem da natureza a eternidade.

Pablo Neruda
Cem Sonetos de Amor

Eu não preciso controlar a vida, meus hormônios, meu futuro, os outros, minha felicidade. Eu só preciso levar a vida, eu só preciso desfocar do sonho que me deixa míope e enxergar além, ou melhor: enxergar o que está na minha cara. Ver o quanto o resto todo já é perfeito e está lá, eu já conquistei, é meu.
Antes de dormir rezei, mas dessa vez não pedi o moço de cavalo branco... apenas agradeci por estar me sentindo tão inteira, feliz, em paz e, principalmente, por não precisar de ninguém ao meu lado para estar bem.

'Sou minha própria paisagem; Assisto à minha passagem, diverso, móbil e só, não sei sentir-me onde estou.
Por isso, alheio, vou lendo como páginas, meu ser. O que segue não prevendo, o que passou a esquecer. Noto à margem do que li o que julguei que senti.
Releio e digo : "Fui eu ?"
Deus sabe, porque o escreveu.'

Você quer brincar de amor
Eu quero só te amar
Você quis por um momento
E eu sempre quis ficar
Mas em nossas diferenças
Nada é mais igual
Do que nós dois
Da certeza desse amor
Eu nunca duvidei
Porque tudo era bonito
Eu eu me acostumei
Às palavras de amor que eu nunca
Acreditei mas aceitei...

Ah! Você tem coisas tão difíceis de entender
Um jeito ausente tão presente no olhar
Como quem ama e sente medo de gostar
Ah! Eu não entendo esta paixão
Que eu vivo com você
Que esquece o tempo e deixa a cama por fazer
E esse ciúme que eu não queria ter
Ah! Você tem coisas tão...

Carta para além do muro

Olha, estou escrevendo só pra dizer que se você tivesse telefonado hoje eu ia dizer tanta, mas tanta coisa. Talvez mesmo conseguisse dizer tudo aquilo que escondo desde o começo, um pouco por timidez, por vergonha, por falta de oportunidade, mas principalmente porque todos me dizem sempre que sou demais precipitado, que coloco em palavras todo meu processo mental (processo mental: é exatamente assim que eles dizem, e eu acho engraçado) e que isso assusta as pessoas, e que é preciso disfarçar, jogar, esconder, mentir. Eu não queria que fosse assim. Eu queria que tudo fosse muito mais limpo e muito mais claro, mas eles não me deixam, você não me deixa. Hoje eu achei que ia conseguir, que ia conseguir dizer, quero dizer, dizer tudo aquilo que escondo desde a primeira vez que vi você, não me lembro quando, não lembro onde. Hoje havia calma, entende? Eu acho que as coisas que ficam fora da gente, essas coisas como o tempo e o lugar, essas coisas influem muito no que a gente vai dizer, entende? Pois por fora, hoje, havia chuva e um pouco de frio: essa chuva e esse frio parece que empurram a gente mais para dentro da gente mesmo, então as pessoas ficam mais lentas, mais verdadeiras, mais bonitas. Hoje eu estava assim: mais lento, mais verdadeiro, mais bonito até. Hoje eu diria qualquer coisa se você telefonasse. Por dentro também eu estava preparado para dizer, um pouco porque eu não agüento mais ficar esperando toda hora você telefonar ou aparecer, e quando você telefona ou aparece com aquelas maças eu preciso me cuidar para não assustar você e quando você pergunta como estou, mordo devagar uma das maçãs que você me traz e cuido meus olhos para não me trairem e não te assustarem e não ficarem querendo entrar demais no de dentro dos teus olhos, então eu cuido devagar tudo que digo e todo movimento, porque eu quero que você venha outras vezes e eles dizem que se eu me mostrar como realmente sou você vai ficar apavorado e nunca mais vai aparecer nem telefonar — eu não agüento mais não me mostrar como sou. Hoje de manhã acordei bem cedo, e depois de conversar com eles consegui permissão para caminhar sozinho no jardim, eu disfarcei muito conversando com eles porque queria muito caminhar sozinho no jardim. Àquela hora ainda não estava chovendo, ou estava, não me lembro, ou havia chovido ontem à noite, não, acho que não estava chovendo não, porque eu lembro que as folhas estavam limpas e molhadas e a terra tinha um cheiro de terra molhada: eu comecei a lembrar, lembrar, lembrar e o meu pensamento parecia um parafuso sem fim, afundando na memória, eu não suportava mais lembrar de tudo o que se perdeu, tudo o que perdi, não fui e não fiz, mas não conseguia parar. Então comecei a gritar no meio do jardim molhado com as duas mãos segurando a cabeça para que não estourasse. Aí eles vieram e disseram que não tinha jeito e que estavam arrependidos de terem me deixado sair sozinho e que aquela era a última vez e que eu disfarçava muito bem mas não conseguiria mais enganá-los. Eu disse que não tinha culpa do meu pensamento disparar daquele jeito, mas acho que eles não acreditaram, eles não acreditam que eu não consigo controlar pensamento. Então me deram uma daquelas injeções e eu afundei num sono pesado e sem saída como este espaço dentro desses quatro muros brancos. Foi depois que acordei, não sei se hoje ou amanhã ou ontem, eu te escrevo dizendo hoje só para tornar as coisas mais fáceis, foi depois que acordei que perguntei se você não tinha vindo nem telefonado, e eles disseram que você não viera nem telefonara. É provável que estivessem mentindo, eles dizem que eu preciso aceitar mais a realidade das coisas, a dureza das coisas, e às vezes penso que tornam de propósito as coisas mais duras do que realmente são, só pra ver se eu reajo, se eu enfrento. Mas não reajo nem enfrento. A cada dia viver me esmaga com mais força. Não sei se eles escondem de mim a sua visita, se não me chamam quando você telefona, se dizem que já fui embora, que já estou curado, não sei se você não vem mesmo e não telefona mais, não sei nada de ninguém que viva atrás daqueles muros brancos, você era a única pessoa lá de fora que entrava aqui dentro de vez em quando. É verdade que eles todos moram lá fora, mas é diferente, eles vivem tanto aqui dentro que não consigo acreditar que sejam iguais aos lá de fora, como você. Você, sim, era completamente lá de fora. Digo era porque faz muito tempo que você não vem, sei do tempo que você não vem porque guardei no meio das minhas roupas um pedaço daquela maçã que você me trouxe da última vez, e aquele pedaço escureceu, ficou com cheiro ruim, encheu de bichos, até que eles me obrigaram a jogar fora. Acho que os pedaços da maçã só se enchem de bichos depois de muito tempo, não sei. Parei um pouco de escrever, roí as unhas, preciso roer as unhas porque eles não me deixam fumar, reli o começo da carta, mas não consegui entender direito o que eu pretendia dizer, sei que pretendia dizer alguma coisa muito especial a você, alguma coisa que faria você largar tudo e vir correndo me ver ou telefonar e, se fosse preciso, trazer a polícia aqui para obrigá-los a deixarem você me ver. Eu sei que você quer me ver. Eu sei que você fica os dias inteiros caminhando atrás daqueles muros brancos esperando eu aparecer. Eles não deixam, acho que você sabe que eles não deixam. Não vão deixar nem esta carta chegar às suas mãos, ou vão escrever outra dizendo que eu não gosto de você, que eu não preciso de você. Mas é mentira, você tem que sabtr que é mentira, acho que era isso que eu queria dizer preciso escrever depressa antes que eu me esqueça do que eu queria dizer era isso eu preciso muito muito de você eu quero muito muito você aqui de vez em quando nem que seja muito de vez em quando você nem precisa trazer maçãs nem perguntar se estou melhor você não precisa trazer nada só você mesmo você nem precisa dizer alguma coisa no telefone basta ligar e eu fico ouvindo o seu silêncio juro como não peço mais que o seu silêncio do outro lado da linha ou do outro lado da porta ou do outro lado do muro ou do outro lado.
Parei um pouco de escrever para olhar pela janela e principalmente para ver se eu conseguia deter o parafuso entrando no pensamento. Acho que consegui. Porque quando começo assim não consigo mais parar, e não quero que eles me dêem aquela injeção, não quero ouvir eles dizendo que não tem remédio, que eu não tenho cura, que você não existe. Eu acho graça e penso em como você também acharia graça se soubesse como eles repetem que você não existe. Depois eu paro de achar graça e fico olhando a porta por onde não entra o telefone por onde você não fala e me lembro do pedaço apodrecido daquela maçã e então penso que talvez eles tenham razão, que talvez você não venha mais, e com dificuldade consigo até pensar que talvez você não exista mesmo. Mas não é possível, eu sei que não é possível: se estou escrevendo para você é porque você existe. Tenho certeza que você existe porque escrevo para você, mesmo que o telefone não toque nunca mais, mesmo que a porta não abra, mesmo que nunca mais você me traga maçãs e sem as suas maçãs eu me perca no tempo, mesmo que eu me perca. Vou terminar por aqui, só queria pedir uma coisa, acho que não é difícil, é só isso, uma coisa bem simples: quando você voltar outra vez veja se você me traz uma maçã bem verde, a mais verde que você encontrar, uma maçã que leve tanto tempo para apodrecer que quando você voltar outra vez ela ainda nem tenha amadurecido direito.

Uma vontade de chegar perto, de só chegar perto, te olhar sem dizer nada, talvez recitar livros, quem sabe só olhar estrelas… dizer que te considero. E muito.
Talvez bastasse qualquer coisa, como chegar muito perto de você, passar a mão no teu cabelo e te chamar de amigo. Ou sorrir, só sorrir...

Como no palco o ator que é imperfeito
Faz mal o seu papel só por temor,
Ou quem, por ter repleto de ódio o peito
Vê o coração quebrar-se num tremor,

Em mim, por timidez, fica omitido
O rito mais solene da paixão;
E o meu amor eu vejo enfraquecido,
Vergado pela própria dimensão.

Seja meu livro então minha eloqüência,
Arauto mudo do que diz meu peito,
Que implora amor e busca recompensa

Mais que a língua que mais o tenha feito.
Saiba ler o que escreve o amor calado:
Ouvir com os olhos é do amor o fado.

Adiamento

Depois de amanhã, sim, só depois de amanhã...
Levarei amanhã a pensar em depois de amanhã,
E assim será possível; mas hoje não...
Não, hoje nada; hoje não posso.
A persistência confusa da minha subjetividade objetiva,
O sono da minha vida real, intercalado,
O cansaço antecipado e infinito,
Um cansaço de mundos para apanhar um elétrico...
Esta espécie de alma...
Só depois de amanhã...
Hoje quero preparar-me,
Quero preparar-rne para pensar amanhã no dia seguinte...
Ele é que é decisivo.
Tenho já o plano traçado; mas não, hoje não traço planos...
Amanhã é o dia dos planos.
Amanhã sentar-me-ei à secretária para conquistar o mundo;
Mas só conquistarei o mundo depois de amanhã...
Tenho vontade de chorar,
Tenho vontade de chorar muito de repente, de dentro...

Não, não queiram saber mais nada, é segredo, não digo.
Só depois de amanhã...
Quando era criança o circo de domingo divertia-rne toda a semana.
Hoje só me diverte o circo de domingo de toda a semana da minha infância...
Depois de amanhã serei outro,
A minha vida triunfar-se-á,
Todas as minhas qualidades reais de inteligente, lido e prático
Serão convocadas por um edital...
Mas por um edital de amanhã...
Hoje quero dormir, redigirei amanhã...
Por hoje, qual é o espetáculo que me repetiria a infância?
Mesmo para eu comprar os bilhetes amanhã,
Que depois de amanhã é que está bem o espetáculo...
Antes, não...
Depois de amanhã terei a pose pública que amanhã estudarei. Depois de amanhã serei finalmente o que hoje não posso nunca ser.
Só depois de amanhã...
Tenho sono como o frio de um cão vadio.
Tenho muito sono.
Amanhã te direi as palavras, ou depois de amanhã...
Sim, talvez só depois de amanhã...

O porvir...
Sim, o porvir...

Fernando Pessoa

Nota: Poema escrito pelo heterônimo Álvaro de Campos

Casa Velha em Ruínas

Da distância que estávamos, só era possível distinguir entre o verde pedaços soltos de telhas já amarelas que pareciam flutuar sobre a vegetação que cercara a casa.
Com dificuldade tentamos nos aproximar mais alguns metros, mas as plantas daninhas que ali moravam pareciam ter vida própria e uma vontade de aprisionar com seus galhos e folhas tudo que se aproximasse delas.
Tentamos a foice. E a luta foi lenta e árdua, o verde resistindo aos golpes que cortavem sua vida, mas conseguimos.
Não havia mais porta: apenas uma placa de madeira inclinada na parede onde estava telhado o nome daquele engenho. Quase não havia parede, só tijolos que ainda sobreviviam mas que, como o resto, cedo virariam pó.
A escuridão nos impedia de continuar. Tivemos de quebar as telhas que ainda estavam penduradas no alto, para que fosse possível a entrada da luz do sol que não brilharia por mais tempo.
No chão de madeira as ervas já começavam a surgir. Não havia móveis ou qualquer objeto que indicasse que havido gente morando naquela casa no passado.
Nem animais. Só o verde, intruso e vitorioso.
Em um dos quartos encontramos livros jogados no chão, uma cadeira, uma mesa e um copo de vidro quebrado. E também um retrato torto, pendurado na parede torta, cheirando a mofo e a pó, a unica indicação do passado naquela casa.
O resto era ruínas que, por contradição, não lembravam o passado e sim a decadência atual.
Começou a escurecer e tivemos de voltar.
E o verde, silencioso, seguiu em sua marcha lenta, para cima e para os lados, até fazer o velho engenho morto submergir de vez.

Pra Rua Me Levar

Não vou viver
Como alguém que só espera um novo amor
Há outras coisas no caminho onde eu vou
Às vezes ando só trocando passos com a solidão
Momentos que são meus e que não abro mão

Já sei olhar o rio por onde a vida passa
Sem me precipitar e nem perder a hora
Escuto no silêncio que há em mim e basta
Outro tempo começou pra mim agora

Vou deixar a rua me levar
Ver a cidade se acender
A lua vai banhar esse lugar
E eu vou lembrar você

É, mas tenho ainda muita coisa pra arrumar
Promessas que me fiz e que ainda não cumpri
Palavras me aguardam o tempo exato pra falar
Coisas minhas talvez você nem queira ouvir

Ana Carolina
Álbum "Estampado"

Nota: Música composta por Ana Carolina e Totonho Villeroy

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Obrigado por ter me oferecido doces e ter sentado ao meu lado quando eu estava só
Obrigado por ter me ajudado a carregar as malas,
por ter aberto a porta, por ser sempre tão gentil.
Obrigado por ter me cuidado com os olhos enquanto eu partia
Obrigado por sempre me receber com um sorriso quando eu chego!

Sons que confortam

Eram quatro horas da manhã quando seu pai sofreu um colapso cardíaco. Só estavam os três em casa: o pai, a mãe e ele, um garoto de doze anos. Chamaram o médico da família. E aguardaram. E aguardaram. E aguardaram. Até que o garoto escutou um barulho lá fora. É ele que conta, hoje, adulto: “Nunca na vida ouvira um som mais lindo, mais calmante, do que os pneus daquele carro amassando as folhas de outono empilhadas junto ao meio-fio.”
Inesquecível, para o menino, foi ouvir o som do carro do médico se aproximando, o homem que salvaria seu pai. Na mesma hora que li esse relato, imaginei um sem-número de sons que nos confortam. A começar pelo choro na sala de parto. Seu filho nasceu. E o mais aliviante para pais que possuem adolescentes baladeiros: o barulho da chave abrindo a fechadura da porta. Seu filho voltou.
E pode parecer mórbido para uns, masoquismo para outros, mas há quem mate a saudade assim: ouvindo pela enésima vez o recado na secretária eletrônica de alguém que já morreu.
Deixando a categoria dos sons magnânimos para a dos sons cotidianos: a voz no alto-falante do aeroporto dizendo que a aeronave já se encontra em solo, e que o embarque será feito dentro de poucos minutos.
O sinal, dentro do teatro, avisando que as luzes serão apagadas e o espetáculo irá começar.
O telefone tocando exatamente no horário que se espera, conforme o combinado. Até a musiquinha que antecede a chamada a cobrar pode ser bem-vinda, se for grande a ansiedade para se falar com alguém distante.
O barulho da chuva forte no meio da madrugada, quando você está quentinho na sua cama.
Uma conversa em outro idioma na mesa ao lado da sua, provocando a falsa sensação de que você está viajando, de férias em algum lugar estrangeiro. E estando em algum lugar estrangeiro, ouvir o seu idioma natal sendo falado por alguém que passou, fazendo você lembrar que o mundo não é tão vasto assim.
O toque to interfone quando se aguarda ansiosamente a chegada do namorado. Ou mesmo a chegada da pizza.
O aviso sonoro de que entrou um torpedo no seu celular.
A sirene da fábrica anunciando o fim de mais um dia de trabalho.
O sinal da hora do recreio.
A música que você mais gosta tocando no rádio do carro. Aumente o volume.
O aplauso depois que você, nervoso, falou em público para dezenas de desconhecidos.
O primeiro eu te amo dito por quem você também começou a amar.
E, em tempos de irritantes vuvuzelas, o mais raro de todos: o silêncio absoluto.

Martha Medeiros

Nota: Crônica escrita na Revista O Globo em 27 de Junho de 2010

Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio

Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio.
Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos
Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas.
(Enlacemos as mãos.)

Depois pensemos, crianças adultas, que a vida
Passa e não fica, nada deixa e nunca regressa,
Vai para um mar muito longe, para ao pé do Fado,
Mais longe que os deuses.

Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos.
Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio.
Mais vale saber passar silenciosamente
E sem desassosegos grandes.

Sem amores, nem ódios, nem paixões que levantam a voz,
Nem invejas que dão movimento demais aos olhos,
Nem cuidados, porque se os tivesse o rio sempre correria,
E sempre iria ter ao mar.

Amemo-nos tranquilamente, pensando que podíamos,
Se quiséssemos, trocar beijos e abraços e carícias,
Mas que mais vale estarmos sentados ao pé um do outro
Ouvindo correr o rio e vendo-o.

Colhamos flores, pega tu nelas e deixa-as
No colo, e que o seu perfume suavize o momento —
Este momento em que sossegadamente não cremos em nada,
Pagãos inocentes da decadência.

Ao menos, se for sombra antes, lembrar-te-ás de mim depois
Sem que a minha lembrança te arda ou te fira ou te mova,
Porque nunca enlaçamos as mãos, nem nos beijamos
Nem fomos mais do que crianças.

E se antes do que eu levares o óbolo ao barqueiro sombrio,
Eu nada terei que sofrer ao lembrar-me de ti.
Ser-me-ás suave à memória lembrando-te assim — à beira-rio,
Pagã triste e com flores no regaço.

Ricardo Reis
Odes de Ricardo Reis

E é só colocar o dedo no teclado (ou a caneta no papel), que o relógio instantaneamente dá seu click. A imagem descongela. A página em branco toma vida. E a história começa – sutilmente – a se desenrolar. (Mesmo que dentro de mim).
Não tem jeito. Palavras ditam minha ordem. Moldam meus capítulos. Me mostram quem sou. (E quem, na verdade, eu poderia ser). Ao escrever, tudo torna-se possível. É meu reino imaginário, onde vez por outra encontro traços reais de mim mesma.
Em palavras, eu me encontro. É a hora onde eu me sinto mais livre. Mais completa. E descubro as minhas diversas faces. Fases. E frases.
Em versos, percebo meus lados incertos. Inversos. Minhas dúvidas, devaneios e reticências... E, mesmo que me assustem, estou ali: escrita. Pronta para me ler. Reler. E me editar.