Sentido
O frio surpreendeu-a ao sair do carro.
A claridade não chegou propriamente a verificar-se e a neve desembaraçava-se para além da invernal primavera.
Levantou a gola do casaco e puxou-a, tentando não sentir a temperatura que caía a pique.
Um homem olhou-a e fixou-a com as pupilas penetrantemente recortadas. Evitou o olhar ostensivo e apressou o passo com uma facilidade impressionante.
Sorriu à sua própria sombra.
Fizera bem em ir.
O canto dos anjos invadia e adensava o seu pensamento.
Sentada frente à televisão, com um gelado na mão, fechei os olhos para fugir às imagens que não absorvia.
Da primeira vez chorei. As lágrimas, uma a uma, haviam fendido a minha visão, avolumando-se no reduzido espaço das minhas pupilas, fazendo-me encolher e engolir em seco. Chorei, sim. Mas não sei se por ela, se por mim, ou se por ambas. O meu pasmo fora de tal forma doloroso que o mundo me parecera estranho. A voz que me passava as palavras mortíferas deixou, a partir de certo momento, de soar perto, para se distanciar numa amplidão longínqua que batia na minha alma e a fazia gritar silenciosamente, como se os portões do mundo se tivessem fechado na minha cara. Um ingénuo espanto de um sentimento enraizado e perdido e nunca iniciado. Ele havia partido. Não de mim, mas para bem mais longe de mim.
Agora, de olhos fechados, com as palavras novamente a ressoarem dentro da minha cabeça, repetidas e sublinhadas outra vez pela mesma voz, permaneço quieta e numa paz inexplicável, esquecida da minha dor e recusando-me a acreditar que ele a havia deixado para trás. De alguma maneira, como num milagre, sinto-o perto dela, confortando-a e apoiando-a, ele, um menino feito homem que necessita tanto de amor como ela. E esta é a verdade que guardo no meu pequeno coração, aquela que li no dele quando a minha alma invadiu a sua e em Deus a reconheceu. Esta é a minha verdade. E nada a pode tornar uma mentira.
Quem corre à tua frente não te valoriza.
Quem anda à tua retaguarda não te merece.
Quem caminha contigo é digno do que tens dentro de ti e de ti.
Foram várias e incansáveis as oportunidades que te dei. Umas seguindo-se a outras. Quanto mais eu corri, mais tu fugiste. Perdoo. Claro que sim. Sem vacilar. Perdoo a ti e a todos os que contigo fugiram. Mas sobretudo perdoo a mim mesma. Por me ter negado à tua negação. Não te lamentes. Não perto de mim. Eu sou minha. E só Deus sabe o que necessito. Mesmo guardando-te no coração, quem não corre mais atrás sou eu. Nem de ti. Nem de ninguém. Seja por amor. Seja por amizade. NUNCA MAIS. Não o quiseste magoar? Mas fizeste-o. Peço a Deus que ninguém magoe o teu. Sê feliz. Não deixo de acreditar no amor, mas, se o amanhã existir e se nesse amanhã precisares de mim, talvez eu esteja já cansada demais e talvez eu já me encontre muito para além do teu inequívoco alcance. Mesmo nunca tendo sido, perdeste-me aos poucos. Procurei-te durante tanto tempo e em tantos outros espaços, no mundo e na vida, amantes de outras existências esquecidas e agora reencontradas. Mas… entende. Quem ama quer estar, não quer ir, não precisa de tempo, não promove a distância e nem vive de incertezas. Quem ama procura o abraço que faltou e o sorriso que nunca chegou a acontecer. Quem ama sabe o que quer e quando quer.
Existem questionamentos que não adianta perguntar qual é a resposta porque ela estará dentro de você.
Se te faz sentir, então é porque faz sentido,
Lentamente, muito lentamente, mil guiões de mil possibilidades infinitas me propulsionam na conquista de novas alegrias.
Ninguém imagina como é doloroso descer ao fundo do poço e, de coragem molhada, sair dele sempre a sorrir.
Saí do carro e vi o Sol rasar o topo das árvores. A tarde volatizava-se morna. Sacudi a cabeça, com a luz a ferir-me os olhos, e, sem querer, recordei uma velha canção. Uma sensação estranha percorreu-me o corpo, como se o meu coração adormecesse numa espécie de formigueiro, num daqueles segundos em que se sabe que não há retorno. Os meus lábios sorriram. De tanto perder, a verdade iluminada impede-nos de errar. Senti-me o extremo, querendo, de alguma forma surpreendente e nova, a seiva das árvores e o percurso da terra.
Distraída como sou, nem me apercebi, mas se considerar a dor e o amor, reconheço que permaneci demasiado tempo entre uma e o outro, perdida entre o não e o sim, intercalada entre o inferno e o paraíso. E, no entanto – rio de mim própria – transformou-se no livro não lido mais lindo da minha vida. Apesar de o ter conhecido pouco, sei que não me enganei, que o seu sorriso era bondoso e que, ao mesmo tempo que me matava sem barulho, também me salvava com deleite. Está bem, Deus. Eu aprendi. E perdoei. Então, deixa-o ser feliz. Deixa-o ir. Liberta-o. Lava-o. É o mais puro que posso desejar e a forma mais bonita que eu própria possuo para ficar bem e poder sentir, na sua plenitude, a paz infinita que dentro de mim começa a despontar.
Não tenho um dever obsessivo para comigo própria. Não gosto da perfeição. Erro sem parar, mas liberto-me trabalhando para ser uma pessoa cada vez melhor para mim, para os outros e para o mundo. Não gosto do que é morno. Sou tranquila, mas adoro molhar os pés no mar, de sentir a turbulência do vento e de me molhar na chuva viva, quente e fria, aceitando a adversidade e o amor. Não gosto de linhas retas. Não sou melhor nem pior, muito menos infalível, sou silenciosamente humilde, mas intensamente efervescente com a vida e pela vida.
Quero um abraço aconchegado, uma gargalhada solta, mãos dadas, uma flor do campo e ficar olhando o mar.
Não gosto de drama e muito menos de me obrigar a simpatizar com quem não simpatiza comigo, assim como de ser simpática o tempo inteiro. A aprovação exterior não me amolece e dispenso explicações. Gosto, sim, é de me sentir em paz e de viver todos os dias rotineiros com gratidão e deleite, respeitando as diferenças e convivendo com as divergências. No final, o que me interessa, é a poesia de saber que fiz tudo o devia ser feito e que, com fé e paciência, o meu saldo foi positivo e o meu coração permanece tranquilo.