Mensagens de Rubem Alves
A existência da água e do ar, a alternância entre o dia e a noite, a composição do ácido sulfúrico e o ponto de congelamento da água em nada dependem da vontade do homem. Ainda que ele nunca tivesse existido, a natureza estaria aí, passando muito bem, talvez melhor...
Aqueles que duvidam ou propõem novos
sistemas de ideias, ou são loucos ou são ignorantes, ou são iconoclastas irreverentes
Perde a natureza sua aura sagrada. Nem os céus proclamam a glória de Deus, como
acreditava Kepler, e terra anuncia o seu amor. Céus e terra não são o poema de um ser supremo invisível. E é por isto que não existe nenhum interdito, nenhuma
proibição, nenhum tabu a cercá-los. A natureza é nada mais que uma fonte de
matérias-primas, entidade bruta, destituída de valor. O respeito pelo rio e pela fonte.
Há certas situações em que as palavras deixam de significar, abandonam o mundo
da verdade e da falsidade, e passam a existir ao lado das coisas.
Nascemos fracos e indefesos; incapazes de sobreviver como indivíduos isolados; recebemos da sociedade um nome e
uma identidade; ( ... ) É compreensível que ela seja o Deus que todas as religiões adoram...
Este mundo ignora os elementos espirituais. Salários e preços não são estabelecidos nem pela religião e nem pela ética.
A riqueza se constrói por meio de uma lógica duramente material: a lógica do lucro, que não conhece a compaixão.
E, da mesma forma como é inútil tentar apagar o fogo assoprando a fumaça,
também é inútil tentar mudar as condições de vida pela crítica da religião. A
consciência da fumaça nos remete ao incêndio de onde ela sai. De forma idêntica, a
consciência da religião nos força a encarar as condições materiais que a produzem.
o trabalho não é atividade
que dá prazer, mas atividade que dá sofrimento. O homem trabalha porque não tem
outro jeito. Trabalho forçado. Seu maior ideal: a aposentadoria. O prazer, ele irá
encontrar fora do trabalho. E é por isto que ele se submete ao trabalho e ao pago do
salário.
É o mundo capitalista, regido pela lógica do dinheiro. E o que ocorre é
que o mundo estabelecido pela lógica do lucro — que inclui de devastações ecológicas
até a guerra — está totalmente alienado, separado dos desejos das pessoas, que
prefeririam talvez coisas mais simples. . . Assim, as áreas verdes são entregues à
especulação imobiliária, os índios perdem suas terras porque gado é melhor para a
economia que índio, as terras vão-se transformando em desertos de cana, enquanto que
rios e mares viram caldos venenosos, e os peixes bóiam, mortos...
Isto é a realidade: homens trabalhando, em relações uns com os outros, sob
condições que eles não escolheram, fazendo com seus corpos um mundo que não
desejam.. . E é disto que surgem ecos, sonhos, gritos e gemidos, poemas, filosofias,
utopias, critérios estéticos, leis, constituições, religiões.. .
Sobre o fogo, a fumaça,
sobre a realidade as vozes,
sobre a infra-estrutura a superestrutura,
sobre a vida a consciência. . .
De fato, quando o pobre/oprimido, das profundezas do seu sofrimento, balbucia:
"É a vontade de Deus", cessam todas as razões, todos os argumentos, as injustiças se
transformam em mistérios de desígnios insondáveis e a sua própria miséria, uma
provação a ser suportada com paciência,na espera da salvação eterna de sua alma. E os
poderosos usam as mesmas palavras sagradas e invocam os poderes da divindade
como cúmpli-
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cês da guerra e da rapina. E os habitantes originais deste continente e suas
civilizações foram massacrados em nome da cruz, e a expansão colonial levou
consigo para a África e a Ásia o Deus dos brancos, e constituições se escrevem
invocando a vontade de Deus, e um representante de Deus vai ao lado daquele que
foi condenado a morrer. . . Nada se altera, nada se transforma, mas sobre todas as
coisas dos homens se espalha o perfume do incenso. . .
"A exigência de que se abandonem as ilusões sobre uma determinada situação, é
a exigência de que se abandone uma situação que necessita de ilusões."
A religião é nada mais que o sol ilusório que gira em torno do homem, na medida em que ele não gira em torno de si mesmo.
Marx antevê o fim da religião. Ela só existe numa situação marcada pela alienação.
Desaparecida a alienação, numa sociedade livre, em que não haja opressores, não
importa que sejam capitalistas, burocratas ou quem quer que ostente algum sinal de
superioridade hierárquica, desaparecerá também a religião. A religião é fruto da
alienação. E com isto os religiosos mais devotos concordariam também. Nem no
Paraíso e nem na Cidade Santa se e/nitem alvarás para a construção de templos. ..
Foi assim que aconteceu: a ciência empalhou a religião, tirando dela verdades
muito diferentes daquelas que a própria religião viva cantava. Acontece que as pessoas
religiosas, ao dizer os nome sagrados, realmente crêem num "lá fora" e é deste mundo
invisível que suas esperanças se alimentam. Tudo tão distante, tão diferente da
sabedoria científica.. .
A ciência nos coloca num mundo glacial e mecânico,
matematicamente preciso e tecnicamente manipulável, mas vazio de significações
humanas e indiferente ao nosso amor. Bem dizia Max Weber que a dura lição que
aprendemos da ciência é que o sentido da vida não pode ser
encontrado ao fim da análise científica, por mais completa que seja. E nos
descobrimos expulsos do paraíso, ainda com os restos do fruto do conhecimento em
nossas mãos...
O sentido da vida: não há pergunta que se faça com maior angústia e parece que
todos são por ela assombrados de vez em quando. Valerá a pena viver? A gravidade da
pergunta se revela na gravidade da resposta. Porque não é raro vermos pessoas
mergulhadas nos abismos da loucura, ou optarem voluntariamente pelo abismo do
suicídio por terem obtido uma resposta negativa. Outras pessoas, como observou
Camus, se deixam matar por ideias ou ilusões que lhes dão razões para viver: boas razões
para viver são também boas razões para morrer.
Se a pretensão da religião terminasse aqui, tudo estaria bem. Porque não há leis que
nos proíbam de sentir o que quisermos.