Reflexões de Mário Quintana
Crimes passionais
Os verdadeiros crimes passionais são os sonetos de amor.
Eu me esqueci no armário.
Pensei estar vivendo,
estudando, trabalhando, sendo!
Pensei ter amado e odiado,
aprendido e ensinado,
fugido e lutado,
confundido e explicado.
Mas hoje, surpreso,
me vi no armário embutido
calado, sozinho, perdido, parado.
O SILÊNCIO
O mundo, às vezes, fica-me tão insignificativo
Como um filme que houvesse perdido de repente o som.
Vejo homens, mulheres: peixes abrindo e fechando a boca
[num aquário
Ou multidões: macacos pula-pulando nas arquibancadas dos
[estádios...
Mas o mais triste é essa tristeza toda colorida dos carnavais
Como a maquilagem das velhas prostitutas fazendo trottoir.
Ás vezes eu penso que já fui um dia um rei, imóvel no seu
[palanque,
Obrigado a ficar olhando
Intermináveis desfiles, torneios, procissões, tudo isso...
Oh! decididamente o meu reino não é deste mundo!
Nem do outro...
Pequeno poema didático
O tempo é indivisível. Dize,
Qual o sentido do calendário?
Tombam as folhas e fica a árvore,
Contra o vento incerto e vário.
A vida é indivisível. Mesmo
A que se julga mais dispersa
E pertence a um eterno diálogo
A mais inconsequente conversa.
Todos os poemas são um mesmo poema,
Todos os porres são o mesmo porre,
Não é de uma vez que se morre...
Todas as horas são horas extremas…
E todos os encontros são adeuses!
Jardim interior
Todos os jardins deviam ser fechados,
com altos muros de um cinza muito pálido,
onde uma fonte
pudesse cantar
sozinha
entre o vermelho dos cravos.
O que mata um jardim não é mesmo
alguma ausência
nem o abandono...
O que mata um jardim é esse olhar vazio
de quem por eles passa indiferente.
Há duas espécies de livros: uns que os leitores esgotam, outros que esgotam os leitores.
Sonhar é acordar-se para dentro:
de súbito me vejo em pleno sonho
e no jogo em que todo me concentro
mais uma carta sobre a mesa ponho.
Mais outra! É o jogo atroz do Tudo ou Nada!
E quase que escurece a chama triste...
E, a cada parada uma pancada,
o coração – exausto, ainda insiste.
Insiste em quê? Ganhar o quê? De quem?
O meu parceiro... eu vejo que ele tem
um riso silencioso a desenhar-se
numa velha caveira carcomida.
Mas eu bem sei que a morte é seu disfarce...
Como também disfarce é a minha vida!
Que esta minha amada paz e este meu
amado silêncio
Não iludam a ninguém
Não é a paz de uma cidade
bombardeada e deserta
Nem tampouco a paz compulsoria
dos cemitérios
Em mim, na minha alma,
Pressinto que vou ter um terremoto
Antes, todos os caminhos iam.
Agora todos os caminhos vêm.
A casa é acolhedora, os livros poucos.
E eu mesmo preparo o chá para os fantasmas.
Família desencontrada
O verão é um senhor gordo sentado na varanda reclamando cerveja. O inverno é o vovozinho tiritante. O outono, um tio solteirão. A primavera, em compensação, é uma menina pulando corda.
Mas quando surges és tão outra,
e múltipla e imprevista...
que nunca te pareces com o teu retrato!
E eu tenho de fechar meus olhos,
para ver-te!
Coexistência pacífica
Amai-vos uns aos outros é muito forte para nós: o mais que podemos fazer, dentro da imperfeição humana, é suportarmo-nos uns aos outros.
Não tenho vergonha de dizer que estou triste,
Não dessa tristeza ignominiosa dos que, em vez de se matarem, fazem poemas:
Estou triste por que vocês são burros e feios
E não morrem nunca…
Minha alma assenta-se no cordão da caçada
E chora,
Olhando as poças barrentas que a chuva deixou.
Eu sigo adiante. Misturo-me a vocês. Acho vocês uns amores.
Na minha cara há um vasto sorriso pintado a vermelhão.
E trocamos brindes,
Acreditamos em tudo o que vem nos jornais.
Somos democratas e escravocratas.
Nossas almas? Sei lá!
Mas como são belos os filmes coloridos!
(Ainda mais os de assuntos bíblicos…)
Desce o crepúsculo
E, quando a primeira estrelinha ia refletir-se em todas as poças d'água,
Acenderam-se de súbito os postes de iluminação!
Das ilusões
Meu saco de ilusões, bem cheio tive-o.
Com ele ia subindo a ladeira da vida.
E, no entretanto, após cada ilusão perdida...
Que extraordinária sensação de alívio!