Porque você Mentiu pra Mim

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Eu sei o que você pensa quando olha pra mim. Talvez se eu fosse mais comportada, falasse mais baixo e não chamasse tanta atenção. Talvez se eu bebesse um pouco menos, te desse menos trabalho e não fosse tão do agora. Talvez se eu não tivesse chegado tão perto, nem te tocado tão fundo, nem sido tão eu... talvez haveria alguma possibilidade.

Tão carente que só o amor de todo o universo por mim poderia me consolar e me cumular.

Clarice Lispector
A paixão segundo G.H. Rio de Janeiro: Rocco, 2009.

Quando ela mente; Não sei se ela deveras sente; O que mente pra mim
Amores serão sempre amáveis
Só vim te convencer; Que eu vim pra não morrer; De tanto te esperar
Hoje lembrando-me dela; Me vendo nos olhos dela; Sei que o que tinha de ser se deu; Porque era ela; Porque era eu
Outra noite; Outro sono; Como se eu sonhasse o sonho de outro dono
Foi um sonho bom; De sonhar porque; Me sonhava com você
Quem sou eu para falar de amor; Se de tanto me entregar nunca fui minha
Hoje lembrando-me dela; Me vendo nos olhos dela; Sei que o que tinha de ser se deu; Porque era ela; Porque era eu

Fiz de mim o que não soube,
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.

Fernando Pessoa
Poesias de Álvaro de Campos. Lisboa: Ática, 1944.

Nota: Trecho do poema Tabacaria.

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Livro de Horas

Aqui, diante de mim,
Eu, pecador, me confesso
De ser assim como sou.
Me confesso o bom e o mau
Que vão ao leme da nau
Nesta deriva em que vou.

Me confesso
Possesso
De virtudes teologais,
Que são três,
E dos pecados mortais,
Que são sete,
Quando a terra não repete
Que são mais.

Me confesso
O dono das minhas horas.
O das facadas cegas e raivosas,
E o das ternuras lúcidas e mansas.
E de ser de qualquer modo
Andanças
Do mesmo todo.

Me confesso de ser charco
E luar de charco, à mistura.
De ser a corda do arco
Que atira setas acima
E abaixo da minha altura.

Me confesso de ser tudo
Que possa nascer em mim.
De ter raízes no chão
Desta minha condição.
Me confesso de Abel e de Caim.

Me confesso de ser Homem.
De ser um anjo caído
Do tal Céu que Deus governa;
De ser um monstro saído
Do buraco mais fundo da caverna.

Me confesso de ser eu.
Eu, tal e qual como vim
Para dizer que sou eu
Aqui, diante de mim!

Miguel Torga
TORGA, M., O Outro Livro de Job, 1936

Estou com saudade de mim. Ando pouco recolhida, atendo demais ao telefone, escrevo depressa, vivo depressa. Onde está eu?

Clarice Lispector
A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.

Nota: Trecho da crônica É preciso parar.

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- Ele gosta de mim, sei que gosta de mim. É claro que costumo lisonjeá-lo de uma maneira horrível. Tenho um estranho prazer em dizer-lhe certas coisas, mesmo sabendo que vou arrepender-me de as ter dito. Em regra, ele é encantador comigo, e ficamos no estúdio a falar de mil e
uma coisas. Às vezes, porém, ele é terrivelmente irreflectido e parece ter um enorme prazer em me fazer sofrer. E então, sinto que entreguei toda a minha alma a alguém que a trata como se fosse uma flor para colocar na lapela, um ornamento para deleite da sua vaidade, um enfeite para um dia de Verão.

Não tenho nenhuma saudade de mim – o que já fui não mais me interessa!

Clarice Lispector
Um sopro de vida. Rio de Janeiro: Rocco, 2015.

As quadras dele (II)


Digo pra mim quando oiço
O teu lindo riso franco,
"São seus lábios espalhabdo,
As folhas dun lírio branco..."

Perguntei às violetas
Se não tinham coração,
Se o tinham, porque 'scondidas
Na folhagem sempre estão?!

Responderam-me a chorar,
Com voz de quem muito amou:
Sabeis que dor os desfez,
Ou que traição os gelou?

Meu coração, inundado
Pela luz do teu olhar,
Dorme quieto como um lírio,
Banhado pelo luar.

Quando o ouvido vier
Teu amor amortalhar,
Quero a minha triste vida,
Na mesma cova, enterrar.

Eu sei que me tens amor,
Bem o leio no teu olhar,
O amor quando é sentido
Não se pode disfarçar.

Os olhos são indiscretos;
Revelam tudo que sentem,
Podem mentir os teus lábios,
Os olhos, esses, não mentem.

Bendita seja a desgraça,
Bendita a fatalidade,
Bendito sejam teus olhos
Onde anda a minha saudade.

Não há amor neste mundo
Como o que eu sinto por ti,
Que me ofertou a desgraça
No momento em que te vi.

O teu grande amor por mim,
Durou, no teu coração,
O espaço duma manhã,
Como a rosa da canção.

Quando falas, dizem todos:
Tem uma voz que é um encanto
Só falando, faz perder
Todo juízo a um santo.

Enquanto eu longe de ti
Ando, perdida de zelos,
Afogam-se outros olhares
Nas ondas dos teus cabelos.

Dizem-me que te não queira
Que tens, nos olhos, traição.
Ai, ensinem-me a maneira
De dar leis ao coração!

Tanto ódio e tanto amor
Na minha alma contenho;
Mas o ódio inda é maior
Que o doido amor que te tenho.

Odeio teu doce sorriso,
Odeio teu lindo olhar,
E ainda mais a minh'alma
Por tanto e tanto te amar!

Quando o teu olhar infindo
Poisa no meu, quase a medo,
Temo que alguém advinhe
O nosso casto segredo.

Logo minh'alma descansa;
Por saber que nunca alguém
Pode imaginar o fogo
Que o teu frio olhar contém.

Quem na vida tem amores
Não pode viver contente,
É sempre triste o olhar
Daquele que muito sente.

Adivinhar o mistério
Da tua alma quem me dera!
Tens nos olhos o outono,
Nos lábios a primavera...

Enquanto teus lábios cantam
Canções feitas de luar,
Soluça cheio de mágua
O teu misterioso olhar...

Com tanta contradição,
O que é que a tua alma sente?
És alegre como a aurora,
E triste como um poente...

Desabafa no meu peito
Essa amargura tão louca,
Que é tortura nos teus olhos
E riso na tua boca!

Os teus dente pequeninos
Na tua boca mimosa,
São pedacitos de neve
Dentro de um cálix de rosa.

O lindo azul do céu
E a amargura infinita
Casaram. Deles nasceu
A tua boca bendita!

"Por que eu deveria me importar com a posteridade? Ela nunca fez nada por mim."

O duro ofício de escritor

Para mim, o ato de escrever é muito difícil e penoso, tenho sempre de corrigir e reescrever várias vezes. Basta dizer, como exemplo, que escrevi 1.100 páginas datilografadas para fazer um romance, no qual aproveitei pouco mais de 300.

"Não sei o que esperar, e nem me importo.
Estou indo.
Quero mesmo é gostar de mim no balanço do fim do dia.
Preciso acontecer.”

Devia ser sábado, passava da meia-noite. Ele sorriu para mim. E perguntou:
- Você vai para a Liberdade?
- Não, eu vou para o Paraíso.
Ele sentou-se ao meu lado. E disse:
- Então eu vou com você.

Quando eu morrer não chores mais por mim
Do que hás de ouvir triste sino a dobrar
Dizendo ao mundo que eu fugi enfim
Do mundo vil pra com os vermes morar.
E nem relembres, se estes versos leres,
A mão que os escreveu, pois te amo tanto
Que prefiro ver de mim te esqueceres
Do que o lembrar-me te levar ao pranto.
Se leres estas linhas, eu proclamo,
Quando eu, talvez, ao pó tenha voltado,
Nem tentes relembrar como me chamo:
Que fique o amor, como a vida, acabado.
Para que o sábio, olhando a tua dor,
Do amor não ria, depois que eu me for.

Eu sou a pedra no meio do meu caminho.
gostaria de esquecer que vivo tropeçando em mim:
ao invés de olhar por onde ando,
tentando me desviar de comigo,
olharia o horizonte, bem lá adiante,
onde ainda não cheguei pra me atravessar o caminho.

Eu já sofri muito com os desamores. Me apaixonei por pessoas erradas, me perdi de mim, culpei pessoas por uma infelicidade que morava no meu peito. Que bobagem, o que é nosso é nosso, é maldade jogar nas costas do outro uma coisa que te pertence.

Mas para mim não importava o que se fora. Queria o passo à frente.

Eu me perdi de mim também.
Perdi no mundo o que era o mundo meu.

Nando Reis

Nota: Trecho da letra da música "Conta"

Noções

Entre mim e mim, há vastidões bastantes
para a navegação dos meus desejos afligidos.

Descem pela água minhas naves revestidas de espelhos.
Cada lâmina arrisca um olhar, e investiga o elemento que a atinge.

Mas, nesta aventura do sonho exposto à correnteza,
só recolho o gosto infinito das respostas que não se encontram.

Virei-me sobre a minha própria experiência, e contemplei-a.
Minha virtude era esta errância por mares contraditórios,
e este abandono para além da felicidade e da beleza.

Ó meu Deus, isto é minha alma:
qualquer coisa que flutua sobre este corpo efêmero e precário,
como o vento largo do oceano sobre a areia passiva e inúmera...

Estou cansada de fazer pelas pessoas o que jamais elas fariam por mim.