Poetas Portugueses

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Sim, sou eu, eu mesmo, tal qual resultei de tudo,
Espécie de acessório ou sobresselente próprio,
Arredores irregulares da minha emoção sincera,
Sou eu aqui em mim, sou eu.
Quanto fui, quanto não fui, tudo isso sou.
Quanto quis, quanto não quis, tudo isso me forma.
Quanto amei ou deixei de amar é a mesma saudade em mim.
E ao mesmo tempo, a impressão, um pouco inconsequente,
Como de um sonho formado sobre realidades mistas,
De me ter deixado, a mim, num banco de carro eléctrico,
Para ser encontrado pelo acaso de quem se lhe ir sentar em cima.
E, ao mesmo tempo, a impressão, um pouco longínqua,
Como de um sonho que se quer lembrar na penumbra a que se acorda,
De haver melhor em mim do que eu.
Sim, ao mesmo tempo, a impressão, um pouco dolorosa,
Como de um acordar sem sonhos para um dia de muitos credores,
De haver falhado tudo como tropeçar no capacho,
De haver embrulhado tudo como a mala sem as escovas,
De haver substituído qualquer coisa a mim algures na vida.
Baste! É a impressão um tanto ou quanto metafísica,
Como o sol pela última vez sobre a janela da casa a abandonar,
De que mais vale ser criança que querer compreender o mundo —
A impressão de pão com manteiga e brinquedos,
De um grande sossego sem Jardins de Prosérpina,
De uma boa vontade para com a vida encostada de testa à janela,
Num ver chover com som lá fora
E não as lágrimas mortas de custar a engolir.
Baste, sim baste! Sou eu mesmo, o trocado,
O emissário sem carta nem credenciais,
O palhaço sem riso, o bobo com o grande fato de outro,
A quem tinem as campainhas da cabeça
Como chocalhos pequenos de uma servidão em cima.
Sou eu mesmo, a charada sincopada
Que ninguém da roda decifra nos serões de província.
Sou eu mesmo, que remédio!...

Fernando Pessoa

Nota: Versão adaptada de poema de Álvaro de Campos, heterônimo de Fernando Pessoa

Gosto de dizer. Direi melhor: gosto de palavrar. As palavras são para mim corpos tocáveis, sereias visíveis, sensualidades incorporadas. Talvez porque a sensualidade real não tem para mim interesse de nenhuma espécie - nem sequer mental ou de sonho -, transmudou-se-me o desejo para aquilo que em mim cria ritmos verbais, ou os escuta de outros. Estremeço se dizem bem. Tal página de Fialho, tal página de Chateaubriand, fazem formigar toda a minha vida em todas as veias, fazem-me raivar tremulamente quieto de um prazer inatingível que estou tendo. Tal página, até, de Vieira, na sua fria perfeição de engenharia sintáctica, me faz tremer como um ramo ao vento, num delírio passivo de coisa movida.

Como todos os grandes apaixonados, gosto da delícia da perda de mim, em que o gozo da entrega se sofre inteiramente. E, assim, muitas vezes, escrevo sem querer pensar, num devaneio externo, deixando que as palavras me façam festas, criança menina ao colo delas. São frases sem sentido, decorrendo mórbidas, numa fluidez de água sentida, esquecer-se de ribeiro em que as ondas se misturam e indefinem, tornando-se sempre outras, sucedendo a si mesmas. Assim as ideias, as imagens, trémulas de expressão, passam por mim em cortejos sonoros de sedas esbatidas, onde um luar de ideia bruxuleia, malhado e confuso.

Não choro por nada que a vida traga ou leve. Há porém páginas de prosa que me têm feito chorar. Lembro-me, como do que estou vendo, da noite em que, ainda criança, li pela primeira vez numa selecta o passo célebre de Vieira sobre o rei Salomão. «Fabricou Salomão um palácio...» E fui lendo, até ao fim, trémulo, confuso: depois rompi em lágrimas, felizes, como nenhuma felicidade real me fará chorar, como nenhuma tristeza da vida me fará imitar. Aquele movimento hierático da nossa clara língua majestosa, aquele exprimir das ideias nas palavras inevitáveis, correr de água porque há declive, aquele assombro vocálico em que os sons são cores ideais - tudo isso me toldou de instinto como uma grande emoção política. E, disse, chorei: hoje, relembrando, ainda choro. Não é - não - a saudade da infância de que não tenho saudades: é a saudade da emoção daquele momento, a mágoa de não poder já ler pela primeira vez aquela grande certeza sinfónica.

Não tenho sentimento nenhum político ou social. Tenho, porém, num sentido, um alto sentimento patriótico. Minha pátria é a língua portuguesa. Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal, desde que não me incomodassem pessoalmente. Mas odeio, com ódio verdadeiro, com o único ódio que sinto, não quem escreve mal português, não quem não sabe sintaxe, não quem escreve em ortografia simplificada, mas a página mal escrita, como pessoa própria, a sintaxe errada, como gente em que se bata, a ortografia sem ípsilon, como o escarro directo que me enoja independentemente de quem o cuspisse.

Sim, porque a ortografia também é gente. A palavra é completa vista e ouvida. E a gala da transliteração greco-romana veste-ma do seu vero manto régio, pelo qual é senhora e rainha.

Fernando Pessoa
PESSOA, F. Livro do Desassossego por Bernardo Soares. Lisboa: Ática. 1982

O Mal em MimNão sou capaz de explicar a sensação do mal em mim; representava, nesse período da minha vida de que falo, a fonte de uma angústia inexprimível. Os homens constroem teorias estranhas sobre o bem e o mal, sobre os castigos e as recompensas; procuram assim a verdade que nunca em vida poderão saber.
Foi muito bom para mim e para a minha família o facto de eu ter sempre ficado em casa e conservado sem esforço o meu antigo modo de ser calmo até aos quinze anos. Nessa altura, porém, mandaram-me para uma escola longe da minha casa, onde o ser latente em mim que tanto temia despertou e começou a agir e a insinuar-se na vida humana.
Quando digo que sentia haver muito mal dentro de mim, não quero dizer que estivesse desde sempre condenado a uma vida de infâmia ou de vício. Quero dizer, porém, isto — que havia em mim uma forte atracção por todas as coisas censuráveis que assediam o homem: podia controlar ou podia satisfazer esta atracção, mas uma vez satisfeita, mesmo só um pouco, era provável que eu nunca mais me pudesse controlar. Resolvi satisfazer essa atracção, e a partir desse momento, dava-me um prazer enorme explorar sempre novas espécies de mal.

Fernando Pessoa- manuscrito, original em Inglês (1904-1908)

Procurar o Sonho é Procurar a VerdadeA única realidade para mim são as minhas sensações. Eu sou uma sensação minha. Portanto nem da minha própria existência estou certo. Posso está-lo apenas daquelas sensações a que eu chamo minhas.
A verdade? É uma coisa exterior? Não posso ter a certeza dela, porque não é uma sensação minha, e eu só destas tenho a certeza. Uma sensação minha? De quê?
Procurar o sonho é pois procurar a verdade, visto que a única verdade para mim, sou eu próprio. Isolar-se tanto quanto possível dos outros é respeitar a verdade.

Fernando Pessoa, 'Textos Filosóficos'

Na véspera de não partir nunca, ao menos não há que se arrumar malas
Fernando Pessoa

Eu ...

eu sou a que no mundo anda perdida,
eu sou a que na vida nao tem norte,
sou a irmã do sonho, e desta sorte
sou a crucificada ... a dolorida ...

Sombra de névoa tênue e esvaecida,
e que o destino amargo , triste e forte,
impele brutalmente para a morte !
alma de luto sempre incompreendida !...

sou aquela que passa e ninguém vê ...
sou a que chamam de triste sem o ser ...
sou a que chora sem saber por quê ...

sou talvez a visão que alguém sonhou,
alguém que veio ao mundo pra me ver,
e que nunca na vida me encontrou !

Nada sou, nada posso, nada sigo.
Trago, por ilusão, meu ser comigo.
Não compreendo compreender, nem sei
Se hei de ser, sendo nada, o que serei.

Fora disto, que é nada, sob o azul
Do lato céu um vento vão do sul
Acorda-me e estremece no verdor.
Ter razão, ter vitória, ter amor.

Murcharam na haste morta da ilusão.
Sonhar é nada e não saber é vão.
Dorme na sombra, incerto coração.

A frouxidão no amor é uma ofensa,
Ofensa que se eleva a grau supremo;
Paixão requer paixão, fervor e extremo;

Com extremo e fervor se recompensa.
Vê qual sou, vê qual és, vê que diferença!
Eu descoro, eu praguejo, eu ardo, eu gemo;
Eu choro, eu desespero, eu clamo, eu tremo;

Em sombras a razão se me condensa.
Tu só tens gratidão, só tens brandura,
E antes que um coração pouco amoroso
Quisera ver-te uma alma ingrata e dura.

Talvez me enfadaria aspecto iroso,
Mas de teu peito a lânguida ternura
Tem-me cativo e não me faz ditoso.

Liberdade querida e suspirada,
Que o Despotismo acérrimo condena;
Liberdade, a meus olhos mais serena,

Que o sereno clarão da madrugada!
Atende à minha voz, que geme e brada
Por ver-te, por gozar-te a face amena;
Liberdade gentil, desterra a pena

Em que esta alma infeliz jaz sepultada;
Vem, oh deusa imortal, vem, maravilha,
Vem, oh consolação da humanidade,
Cujo semblante mais que os astros brilha;

Vem, solta-me o grilhão da adversidade;
Dos céus descende, pois dos Céus és filha,
Mãe dos prazeres, doce Liberdade!

Laura Dantas

Quero só mais um minuto antes de ir voar, Laura Dantas,
Eu me encontro sonhando quando você esta comigo
Eu me sinto em paz, então, você tem que ir embora
e eu fico aqui com um sorrisinho de quem foi vencido.

Quando o tempo insiste em brisas e calmarias
Dizem que tudo já foi visto e experimentado
tenho constantes confusões sensoriais, Laura Dantas,
e eu te beijo tentando não esquecer seu cheiro.
Laura Dantas, quando você vai vir me salvar?
eu me ajoelharia mas sinto uma dor no tornozelo
E eu agradeço aos homens e as sua tecnologia,
que me permitem ver que ainda posso ser verde.
E mesmo assim, eu te amo Laura Dantas – pelo menos por esta tarde.
E eu alvejo a mim mesmo com fé e balas de prazeres passageiros

Quando os deuses se escondem de nossas criações
Você percebe que a vida é um passo após o outro e nada te toca mais:
O negocio é insistir com coisas do passado,
e espremer os limões para fazer bebidas doces a tarde.

Mas agora eu percebo que sou ignorante
pois não entendo de canto, nem de melodias , nem de beleza musical
Contudo fui capaz de amar-te uma vez mais Laura Dantas,
Por toda a extensão da tarde
Pois sua imagem de mulher me veio preciosa
Numa chama queimando leve e preguiçosa
Laura Dantas: sonho místico ao entardecer.

Chegamos a mais um final e você tem que ir voar,
E eu sou capaz de te amar uma vez mais
Pelo simples motivo de ter te visto passar
Em um movimento, através de sua voz.

Por isso na orla morena da praia calada e só,
Tenho a alma feita pequena, livre de mágoa e de dó;
Sonho sem quase já ser, perco sem nunca ter tido,
E comecei a morrer muito antes de ter vivido.

O teu silêncio que me embala é a idéia de naufragar.

Que um fraco Rei faz fraca a forte gente.

Luís de Camões
CAMÕES, L. de. Os lusíadas . Edição comentada. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1980

Estas coisas fazem sofrer, mas o
sofrimento passa. Se a vida,
que é tudo, passa por fim,
como não hão de passar o amor e a dor,
e todas as mais coisas, que não são
mais que partes da vida?
[...]

Todo o prazer é um vício, porque buscar o prazer é o que todos fazem na vida, e o único vício negro é fazer o que toda a gente faz.

Fernando Pessoa, in Livro do desassossego

O mundo quer-me mal porque ninguém tem asas como eu tenho...

Os amigos

Amigos cento e dez, e talvez mais,
Eu já contei. Vaidades que eu sentia!
Supus que sobre a terra não havia
Mais ditoso mortal entre os mortais.

Amigos cento e dez, tão serviçais,
Tão zelosos das leis da cortesia,
Que eu, já farto de os ver, me escapulia
Às suas curvaturas vertebrais.

Um dia adoeci profundamente.
Ceguei. Dos cento e dez houve um somente
Que não desfez os laços quase rotos.

- Que vamos nós (diziam) lá fazer?
Se ele está cego, não nos pode ver…
Que cento e nove impávidos marotos!

Quando reflito sobre quão reais e verdadeiras são para o louco as coisas da sua loucura, não posso deixar de concordar com a essência da declaração de Protágoras de que 'o homem é a medida de todas as coisas'.

vivo por que vivo, mas com a certeza que amanha sera um dia melhor

E assim sou, fútil e sensível, capaz de impulsos violentos e absorventes, maus e bons, nobres e vis, mas nunca de um sentimento que subsista, nunca de uma emoção que continue, e entre para a substância da alma. Tudo em mim é a tendência para ser a seguir outra coisa: uma impaciência da alma consigo mesma, como com uma criança inoportuna; um desassossego sempre crescente e sempre igual. Tudo me interessa e nada me prende. Atendo a tudo sonhando sempre; fixo os mínimos gestos faciais de com quem falo, recolho as entoações milimétricas dos seus dizeres expressos; mas ao ouvi-lo, não o escuto, estou pensando noutra coisa, e o que menos colhi da conversa foi a noção do que nela se disse, da minha parte ou da parte de com quem falei. Assim, muitas vezes, repito a alguém o que já lhe repeti, pergunto-lhe de novo aquilo a que ele já me respondeu; mas posso descrever, em quatro palavras fotográficas, o semblante muscular com que ele disse o que me não lembra, ou a inclinação de ouvir com os olhos com que recebeu a narrativa que me não recordava ter-lhe feito. Sou dois, e ambos têm a distância – irmãos siameses que não estão pegados.