Poetas Portugueses

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A superioridade do sonhador consiste em que sonhar é muito mais prático que viver, e em que o sonhador extrai da vida um prazer muito mais vasto e muito mais variado do que o homem de ação. Em melhores e mais diretas palavras, o sonhador é que é o homem de ação.

A vida... e a gente põe-se a pensar em quantas maravilhosas teorias os filósofos arquitectaram na severidade das bibliotecas, em quantos belos poemas os poetas rimaram na pobreza das mansardas, ou em quantos fechados dogmas os teólogos não entenderam na solidão das celas. Nisto, ou então na conta do sapateiro, na degradação moral do século, ou na triste pequenez de tudo, a começar por nós.

Mas a vida é uma coisa imensa, que não cabe numa teoria, num poema, num dogma, nem mesmo no desespero inteiro dum homem.

A vida é o que eu estou a ver: uma manhã majestosa e nua sobre estes montes cobertos de neve e de sol, uma manta de panasco onde uma ovelha acabou de parir um cordeiro, e duas crianças — um rapaz e uma rapariga — silenciosas, pasmadas, a olhar o milagre ainda a fumegar.

Miguel Torga
TORGA, M., Diário

Os deuses são deuses por que não se pensam

Só tu, meu bem, me arrebatas
A vontade, o pensamento;
Vivo de ver-te e de amar-te,
E detesto o fingimento.

O guardador de rebanhos

Eu nunca guardei rebanhos,
Mas é como se os guardasse.
Minha alma é como um pastor,
Conhece o vento e o sol
E anda pela mão das Estações
A seguir e a olhar.
Toda a paz da Natureza sem gente
Vem sentar-se a meu lado.
Mas eu fico triste como um pôr de sol
Para a nossa imaginação,
Quando esfria no fundo da planície
E se sente a noite entrada
Como uma borboleta pela janela.

Mas a minha tristeza é sossego
Porque é natural e justa
E é o que deve estar na alma
Quando já pensa que existe
E as mãos colhem flores sem ela dar por isso.

Como um ruído de chocalhos
Para além da curva da estrada,
Os meus pensamentos são contentes.
Só tenho pena de saber que eles são contentes,
Porque, se o não soubesse,
Em vez de serem contentes e tristes,
Seriam alegres e contentes.

Pensar incomoda como andar à chuva
Quando o vento cresce e parece que chove mais.

Não tenho ambições nem desejos
Ser poeta não é uma ambição minha
É a minha maneira de estar sozinho.

E se desejo às vezes
Por imaginar, ser cordeirinho
(Ou ser o rebanho todo
Para andar espalhado por toda a encosta
A ser muita cousa feliz ao mesmo tempo),

É só porque sinto o que escrevo ao pôr do sol,
Ou quando uma nuvem passa a mão por cima da luz
E corre um silêncio pela erva fora.

Nada se sabe, tudo se imagina.
Circunda-te de rosas, ama, bebe
E cala. O mais é nada.

Fernando Pessoa

Nota: Trecho de poema de Fernando Pessoa

Liberdade, onde estás? Quem te demora?
Quem faz que o teu influxo em nós não Caia?
Porque (triste de mim!) porque não raia

Já na esfera de Lísia a tua aurora?
Da santa redenção é vinda a hora
A esta parte do mundo que desmaia.
Oh! Venha... Oh! Venha, e trémulo descaia

Despotismo feroz, que nos devora!
Eia! Acode ao mortal, que, frio e mudo,
Oculta o pátrio amor, torce a vontade,
E em fingir, por temor, empenha estudo.

Movam nossos grilhões tua piedade;
Nosso númen tu és, e glória, e tudo,
Mãe do génio e prazer, oh Liberdade!

Os sentimentos que mais doem, as emoções que mais pungem, são os que são absurdos – a ânsia de coisas impossíveis, precisamente porque são impossíveis, a saudade do que nunca houve, o desejo do que poderia ter sido, a mágoa de não ser outro, a insatisfação da existência do mundo.

Vozes Do Mar

Quando o sol vai caindo sobre as águas
Num nervoso delíquio d’oiro intenso,
Donde vem essa voz cheia de mágoas
Com que falas à terra, ó mar imenso?…

Tu falas de festins, e cavalgadas
De cavaleiros errantes ao luar?
Falas de caravelas encantadas
Que dormem em teu seio a soluçar?

Tens cantos d’epopeias?Tens anseios
D’amarguras? Tu tens também receios,
Ó mar cheio de esperança e majestade?!

Donde vem essa voz,ó mar amigo?…
… Talvez a voz do Portugal antigo,
Chamando por Camões numa saudade!

Florbela Espanca
Trocando olhares

A voz da Tília

Diz-me a tília a cantar: “Eu sou sincera,
Eu sou isto que vês: o sonho, a graça;
Deu ao meu corpo, o vento, quando passa,
Este ar escutultural de bayadera…

E de manhã o sol é uma cratera,
Uma serpente de oiro que me enlaça…
Trago nas mãos as mãos da Primavera…
E é para mim que em noites de desgraça

Toca o vento Mozart, triste e solene,
E à minha alma vibrante, posta a nu,
Diz a chuva sonetos de Verlaine…”

E, ao ver-me triste, a tília murmurou;
“Já fui um dia poeta como tu…
Ainda hás-de ser tília como eu sou…”

Florbela Espanca
Livro de Mágoas

Há barcos para muitos portos, mas nenhum para a vida não doer.
Nem há desembarque onde se esqueça.

E que fresco e feliz horror o de não haver ali ninguém! Nem
nós, que por ali íamos, ali estávamos. . . Porque nós não éramos
ninguém. Nem mesmo éramos coisa alguma.. . Não tínhamos
vida que a morte precisasse para matar. Éramos tão tênues e
rasteirinhos que o vento do decorrer nos deixara inúteis e a hora
passava por nós acariciando-nos como uma brisa pelo cimo de
uma palmeira.
Não tínhamos época nem propósito. Toda a finalidade das
coisas e dos seres ficara-nos à porta daquele paraíso de ausência.
Imobilizar-se, para nos sentir senti-la, a alma rugosa dos
troncos, a alma estendida das folhas, a alma núbil das flores, a
alma vergada dos frutos. . .
E assim nós morremos a nossa vida, tão atentos separadamente
a morrê-la que não reparamos que éramos um só, que cada
um de nós era uma ilusão do outro, e cada um, dentro de si, o
mero eco do seu próprio ser. . .
Zumbe uma mosca, incerta e mínima. . .
Raiam na minha atenção vagos ruídos, nítidos e dispersos, que
enchem de ser já dia a minha consciência do nosso quarto...
Nosso quarto? Nosso de que dois, se eu estou sozinho? Não sei.
Tudo se funde e só fica, fingindo, uma realidade-bruma em que
a minha incerteza soçobra e o meu compreender-me, embalado
de ópios, adormece. . .
A manhã rompeu, como uma queda, do cimo pálido da Hora.
. . Acabaram de arder, meu amor, na lareira da nossa vida,
as achas dos nossos sonhos.. .
Desenganemo-nos da esperança, porque trai, do amor, porque
cansa, da vida, porque farta, e não sacia, e até da morte, porque
traz mais do que se quer e menos do que se espera.
Desenganemo-nos, ó Velada, do nosso próprio tédio, porque
se envelhece de si próprio e não ousa ser toda a angústia que é.
Não choremos, não odiemos, não desejemos. . .
Cubramos, ó silenciosa, com um lençol de linho fino o perfil
hirto da nossa Imperfeição. . .

Sonho. Não sei quem sou neste momento.
Durmo sentindo-me. Na hora calma
Meu pensamento esquece o pensamento,

Minha alma não tem alma.
Se existo é um erro eu o saber. Se acordo
Parece que erro. Sinto que não sei.
Nada quero nem tenho nem recordo.


Não tenho ser nem lei.
Lapso da consciência entre ilusões,
Fantasmas me limitam e me contêm.
Dorme insciente de alheios corações,
Coração de ninguém.

Fernando Pessoa, 6-1-1923

Alvejava de neve outrora a rosa,
Nem como agora, doce recendia;
Baixo voava Amor sem tento um dia,
E na rama espinhosa
De sua flor virgínea se feria.
Do sangue divina! gota amorosa
Da ligeira ferida lhe corria,
E as flores da roseira onde caía
Tomavam do encarnado a cor lustrosa.
Agora formosa
A rúbida flor
Recorda de Amor
A chaga ditosa.

Para os braços da mãe voou chorando;
Um beijo lhe acalmou penas e ardores:
E tão doce o remédio achou das dores,
Que Amor só desejou de quando em quando
Que assim penando,
Com seus clamores
Novos favores
Fosse alcançando.

Súbito voa, pelos ares fende;
As rosas viu de sua dor trajadas,
E que só de suas glórias namoradas
Nada dissessem com razão se ofende:
A mão lhe estende,
E delicioso
Cheiro amoroso
Nelas recende.

Vós que as rosas gentis buscais, amantes,
Nos jardins do prazer,
E, em vez da flor, espinhos penetrantes
Só chegais acolher,
Resignados sofrei, sede constantes,
Que a desventura,
Que a mágoa e dor
Sempre em doçura
Converte Amor.

Vaidosa
Cesário Verde

Dizem que tu és pura como um lírio
E mais fria e insensível que o granito,
E que eu que passo por aí por favorito
Vivo louco de dor e de martírio.

Contam que tens um modo altivo e sério,
Que és muito desdenhosa e presumida,
E que o maior prazer da tua vida,
Seria acompanhar-me ao cemitério

Chamam-te a bela imperatriz das fátuas,
A déspota, a fatal, o figurino,
E afirmam que és um molde alabastrino,
E não tens coração, como as estátuas.

E narram o cruel martirológio
Dos que são teus, ó corpo sem defeito,
E julgam que é monótono o teu peito
Como o bater cadente dum relógio.

Porém eu sei que tu, que como um ópio
Me matas, me desvairas e adormeces
És tão loira e doirada como as messes
E possuis muito amor…
Muito amor-próprio!

Qualquer música, guitarra.
Viola, harmônio, realejo.
Um canto que se desgarra.
Um sonho em que nada vejo.

Enfim, o que há de ser há de ser, e tem muita força.
Consolado com este tão verdadeiro quanto elegante provérbio, levantei o ânimo à altura da situação e resolvi fazer prova de homem forte e suportador de trabalhos. (Viagens na minha Terra)

Viagens na minha Terra


Poetas em ano de Prosa!

Pois este é século para poetas? Ou temos nós poetas para este século?

O luar enche a terra de miragens
E as coisas têm hoje uma alma virgem,
O vento acordou entre as folhagens
Uma vida secreta e fugitiva,
Feita de sombra e luz, terror e calma,
Que é o perfeito acorde da minha alma.

⁠O silêncio edifica nosso olhar sobre todas as coisas, tem o poder de descongelar nossas emoções, movimentando nossa vida em momentos mais harmoniosos, conduzindo-nos para favoráveis e maduras manifestações.