Poetas Brasileiros
Se reflito demais, deixo de agir.
Como pois inaugurar agora em mim o pensamento? e talvez só o pensamento me salvasse, tenho medo da paixão.
E apesar da hostilidade entre ambos se tornar gradativamente mais intensa, como mãos que estão perto e não se dão, eles não podiam se impedir de se procurar.
Posso de repente entender e não sentir.
Que importa o sentido? O sentido sou eu.
Sede assim qualquer coisa serena, isenta, fiel. Não como o resto dos homens.
Nota: Trecho do poema "Sugestão": Link
...MaisE nós sabemos Deus. E o que precisamos Dele, extraímos. (Não sei o que chamo de Deus, mas assim pode ser chamado.) Se só sabemos muito pouco de Deus, é porque precisamos pouco: só temos Dele o que fatalmente nos basta, só temos de Deus o que cabe em nós. (A nostalgia não é do Deus que nos falta, é a nostalgia de nós mesmos que não somos bastante; sentimos falta de nossa grandeza impossível – minha atualidade inalcançável é o meu paraíso perdido.)
Eu fora obrigada a entrar no deserto para saber com horror que o deserto é vivo, para saber que uma barata é a vida. Havia recuado até saber que em mim a vida mais profunda é antes do humano – e para isso eu tivera a coragem diabólica de largar os sentimentos. Eu tivera que não dar valor humano à vida para poder entender a largueza, muito mais que humana, do Deus. Havia eu pedido a coisa mais perigosa e proibida? arriscando a minha alma, teria eu ousadamente exigido ver Deus?
E agora eu estava como diante Dele e não entendia – estava inutilmente de pé diante Dele, e era de novo diante do nada. A mim, como a todo o mundo, me fora dado tudo, mas eu quisera mais: quisera saber desse tudo. E vendera a minha alma para saber. Mas agora eu entendia que não a vendera ao demônio, mas muito mais perigosamente: a Deus. Que me deixara ver. Pois Ele sabia que eu não saberia ver o que visse: a explicação de um enigma é a repetição do enigma. O que És? e a resposta é: És. O que existes? e a resposta é: o que existes. Eu tinha a capacidade da pergunta, mas não a de ouvir a resposta.
A barata e eu somos infernalmente livres porque a nossa matéria viva é maior que nós, somos infernalmente livres porque minha própria vida é tão pouco cabível dentro de meu corpo que não consigo usá-la. Minha vida é mais usada pela terra do que por mim, sou tão maior do que aquilo que eu chamava de “eu” que, somente tendo a vida do mundo, eu me teria.
Mas como me reviver? Se não tenho uma palavra natural a dizer. Terei que fazer a palavra como se fosse criar o que me aconteceu?
Vou criar o que me aconteceu. Só porque viver não é relatável. Viver não é vivível. Terei que criar sobre a vida. E sem mentir. Criar sim, mentir não. Criar não é imaginação, é correr o grande risco de se ter a realidade. Entender é uma criação, meu único modo. Precisarei com esforço traduzir sinais de telégrafo - traduzir o desconhecido para uma língua que desconheço, e sem sequer entender para que valem os sinais. Falarei nessa linguagem sonâmbula que se eu estivesse acordada não seria linguagem.
Até criar a verdade do que me aconteceu. Ah, será mais um grafismo que uma escrita, pois tento mais uma reprodução do que uma expressão. Cada vez preciso menos me exprimir. Também isto perdi? Não, mesmo quando eu fazia esculturas eu já tentava apenas reproduzir, e apenas com as mãos.
A criação não é uma compreensão, é um novo mistério.
O pior é que ela poderia riscar tudo o que pensara. Seus pensamentos eram, depois de erguidos, estátuas no jardim e ela passava pelo jardim olhando e seguindo o seu caminho.
Estava alegre nesse dia, bonita também. Um pouco de febre também. Por que esse romantismo: um pouco de febre? Mas a verdade é que tenho mesmo: olhos brilhantes, essa força e essa fraqueza, batidas desordenadas do coração. Quando a brisa leve, a brisa de verão, batia no seu corpo, todo ele estremecia de frio e calor. E então ela pensava muito rapidamente, sem poder parar de inventar. É porque estou muito nova ainda e sempre que me tocam ou não me tocam, sinto – refletia.
O resultado disso tudo é que vou ter que criar um personagem – mais ou menos como fazem os novelistas, e através da criação dele para conhecer. Porque eu sozinho não consigo: a solidão, a mesma que existe em cada um, me faz inventar. E haverá outro modo de salvar-se? senão o de criar as próprias realidades? Tenho força para isso como todo o mundo – é ou não é verdade que nós terminamos por criar uma frágil e doida realidade que é a civilização? essa civilização apenas guiada pelo sonho. Cada invenção minha soa-me como uma prece leiga – tal é a intensidade de sentir, escrevo para aprender.
Este ao que suponho será um livro feito aparentemente por destroços de livro. Mas na verdade trata-se de retratar rápidos vislumbres meus e rápidos vislumbres de meu personagem Ângela. Eu poderia pegar cada vislumbre e dissertar durante páginas sobre ele. Mas acontece que no vislumbre é às vezes que está a essência da coisa. Cada anotação tanto no meu diário como no diário que eu fiz Ângela escrever, levo um pequeno susto. Cada anotação é escrita no presente. O instante já é feito de fragmentos. Não quero dar um falso futuro a cada vislumbre de um instante. Tudo se passa exatamente na hora em que está sendo escrito ou lido. Este trecho aqui foi na verdade escrito em relação à sua forma básica depois de ter relido o livro porque no decorrer dele eu não tinha bem clara a noção do caminho a tomar. No entanto, sem dar maiores razões lógicas, eu me aferrava exatamente em manter o aspecto fragmentário tanto em Ângela quanto em mim.
Minha vida é feita de fragmentos e assim acontece com Ângela. A minha própria vida tem enredo verdadeiro. Seria a história da casca de uma árvore e não da árvore. Um amontoado de fatos em que só a sensação é que explicaria. Vejo que, sem querer, o que escrevo e Ângela escreve são trechos por assim dizer soltos, embora dentro de um contexto de...
É assim que desta vez me ocorre o livro. E, como eu respeito o que vem de mim para mim, assim mesmo é que eu escrevo.
Estou dentro dos grandes sonhos da noite: pois o agora-já é de noite. E canto a passagem do tempo: sou ainda a rainha dos medas e dos persas e sou também a minha lenta evolução que se lança como uma ponte levadiça em um futuro cujas névoas leitosas já respiro hoje. Minha aura é mistério de vida. Eu me ultrapasso abdicando de mim e então sou o mundo: sigo a voz do mundo, eu mesma de súbito com voz única.
– O que é que se consegue quando se fica feliz?, sua voz era uma seta clara e fina.
A professora olhou para Joana. – Repita a pergunta...?
Silêncio. A professora sorriu arrumando os livros.
– Pergunte de novo, Joana, eu é que não ouvi.
– Queria saber: depois que se é feliz o que acontece? O que vem depois? – repetiu a
menina com obstinação.
A mulher encarava-a surpresa.
– Que ideia! Acho que não sei o que você quer dizer, que ideia! Faça a mesma
pergunta com outras palavras...
– Ser feliz é para se conseguir o quê?
Se nunca nasceste de ti mesmo, dolorosamente, na concepção de um poema... estás enganado: para os poetas não existe parto sem dor.
Porque no impossível é que está a realidade.