Poetas Brasileiros

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O amor comeu até os dias ainda não anunciados nas folhinhas. Comeu os minutos de adiantamento de meu relógio, os anos que as linhas de minha mão asseguravam. Comeu o futuro grande atleta, o futuro grande poeta. Comeu as futuras viagens em volta da terra, as futuras estantes em volta da sala.

O amor comeu minha paz e minha guerra. Meu dia e minha noite. Meu inverno e meu verão. Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte.

Primeiro Motivo da Rosa

Vejo-te em seda e nácar,
e tão de orvalho trêmula,
que penso ver, efêmera,
toda a Beleza em lágrimas
por ser bela e ser frágil.

Meus olhos te ofereço:
espelho para a face
que terás, no meu verso,
quando, depois que passes,
jamais ninguém te esqueça.

Então, de seda e nácar,
toda de orvalho trêmula,
serás eterna. E efêmero
o rosto meu, nas lágrimas
do teu orvalho... E frágil.

Cecília Meireles
MEIRELES, C. Antologia Poética. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2001.

Que é que eu posso escrever? Como recomeçar a anotar frases? A palavra é o meu meio de comunicação. Eu só poderia amá-la. Eu jogo com elas como se lançam dados: acaso e fatalidade. A palavra é tão forte que atravessa a barreira do som. Cada palavra é uma ideia. Cada palavra materializa o espírito. Quantas mais palavras eu conheço, mais sou capaz de pensar o meu sentimento. Devemos modelar nossas palavras até se tornarem o mais fino invólucro dos nossos pensamentos.

Clarice Lispector
Borelli, Olga. Clarice Lispector: esboço para um possível retrato. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981.
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Preso à minha classe e a algumas roupas,Vou de branco pela rua cinzenta.

Melancolias, mercadorias espreitam-me.

Devo seguir até o enjôo? Posso, sem armas, revoltar-me'?

Olhos sujos no relógio da torre:

Não, o tempo não chegou de completa justiça.

O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.

O tempo pobre, o poeta pobrefundem-se no mesmo impasse.

Em vão me tento explicar, os muros são surdos.

Sob a pele das palavras há cifras e códigos.

O sol consola os doentes e não os renova.As coisas.

Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase.

Vomitar esse tédio sobre a cidade.

Quarenta anos e nenhum problema resolvido, sequer colocado.

Nenhuma carta escrita nem recebida.

Todos os homens voltam para casa.

Estão menos livres mas levam jornaise soletram o mundo, sabendo que o perdem.

Crimes da terra, como perdoá-los?

Tomei parte em muitos, outros escondi.

Alguns achei belos, foram publicados.

Crimes suaves, que ajudam a viver.

Ração diária de erro, distribuída em casa.

Os ferozes padeiros do mal.Os ferozes leiteiros do mal.

Pôr fogo em tudo, inclusive em mim.

Ao menino de 1918 chamavam anarquista.

Porém meu ódio é o melhor de mim.

Com ele me salvoe dou a poucos uma esperança mínima.

Uma flor nasceu na rua!

Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.

Uma flor ainda desbotada

ilude a polícia, rompe o asfalto.

Façam completo silêncio, paralisem os negócios,

garanto que uma flor nasceu.

Sua cor não se percebe.

Suas pétalas não se abrem.

Seu nome não está nos livros.

É feia. Mas é realmente uma flor.

Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde

e lentamente passo a mão nessa forma insegura.

Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.

Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico.

É feia.

Mas é uma flor.

Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.

Talvez eu me ache delicada demais apenas porque não cometi os meus crimes. Só porque contive os meus crimes, eu me acho de amor inocente.

Clarice Lispector
Felicidade clandestina. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1998.

Nota: Trecho do conto Perdoando Deus.

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Também é ser, deixar de ser assim. (...)
Eu deixo aroma até nos meus espinhos,
ao longe, o vento vai falando de mim.
E por perder-me é que me vão lembrando,
por desfolhar-me é que não tenho fim.

Cecília Meireles

Nota: Versão adaptada do poema ""4º Motivo da Rosa": Link

Dela havia aos poucos emergido para descobrir que também sem a felicidade se vivia.

Clarice Lispector
Laços de família. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

Nota: Trecho do conto Amor.

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O futuro é meu enquanto eu viver.

Clarice Lispector
Todos os contos. Rio de Janeiro: Rocco, 2016.

Nota: Trecho do conto Tempestade de almas.

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TEU CORPO

O teu corpo muda
Independente de ti
não te pergunta
se deve engordar.

É um ser estranho
que tem o teu rosto
ri em teu riso
e goza com teu sexo.
Lhe dás de comer
e ele fica quieto.
Penteias-lhe os cabelos
como se fossem teus.

Num relance, achas
que apenas estás
nesse corpo.
Mas como, se nele
nasceste e sem ele
não és?

Ao que tudo indica
tu és esse corpo
-que a cada dia
mais difere de ti.

E até já tens medo
De olhar no espelho:
Lento como nuvem
o rosto que eras
vai virando outro.

E a erupção no queixo?
Vai sumir? Alastrar-se
feito impingem, câncer?
Poderás detê-la
com Dermobenzol?
Ou terás que chamar
o corpo de bombeiros?

Tocas o joelho:
Tu és esse osso.
Olhas a mão.
A forma sentada
de bruços na mesa
és tu.

Mas quem morre?
Quem diz ao teu corpo – morre –
quem diz a ele – envelhece –
se não o desejas,
se queres continuar vivo e jovem
por infinitas manhãs?

Homem! És o universo porque pensas e, pequenino e fraco, és Deus, porque amas.

Sonhar um sonho a dois, e nunca desistir da busca de ser feliz... é para poucos!

ACORDAR VIVER

Como acordar sem sofrimento?
Recomeçar sem horror?
O sono transportou-me
àquele reino onde não existe vida
e eu quedo inerte sem paixão.

Como repetir, dia seguinte após dia seguinte,
a fábula inconclusa,
suportar a semelhança das coisas ásperas
de amanhã com as coisas ásperas de hoje?

Como proteger-me das feridas
que rasga em mim o acontecimento,
qualquer acontecimento
que lembra a Terra e sua púrpura
demente?
E mais aquela ferida que me inflijo
a cada hora, algoz
do inocente que não sou?

Ninguém responde, a vida é pétrea.

Na hora do acontecimento não aproveito nada. E depois vem uma ilógica saudade.

Clarice Lispector
Um sopro de vida. Rio de Janeiro: Rocco, 2015.

Última flor do Lácio, inculta e bela,
(...) Ouro nativo, que na ganga impura
A bruta mina entre os cascalhos vela...

No mais fino e doído de seu sentimento ela pensava: vou ser feliz.

Clarice Lispector
O lustre. Rio de Janeiro: Rocco, 2015.

O Homem Escrito

Ainda está vivo ou
virou peça de arquivo
sua vida é papel
a fingir de jornal?

Dele faz-se bom uso
seu texto é confuso?
Numa velha gaveta
o esquecem, a caneta?

Após tantos escapes
arredonda-se em lápis?
Essa indelével tinta
é para que não minta
mas do que o necessário
é uma sigla no armário?

Recobre-se de letras
ou são apenas tretas?
Entrará em catálogo
a custa de monólogo?

Terá número, barra
e borra de carimbo?
Afinal, ele é gente
ou registro pungente?

A vida é o dever que trouxemos para fazer em casa.

Mascarada

Você me conhece?
(Frase dos mascarados de antigamente)

- Você me conhece?
- Não conheço não.
- Ah, como fui bela!
Tive grandes olhos,
que a paixão dos homens
(estranha paixão!)
Fazia maiores...
Fazia infinitos.
Diz: não me conheces?
- Não conheço não.

- Se eu falava, um mundo
Irreal se abria
à tua visão!
Tu não me escutavas:
Perdido ficavas
Na noite sem fundo
Do que eu te dizia...
Era a minha fala
Canto e persuasão...
Pois não me conheces?
- Não conheço não.
- Choraste em meus braços
- Não me lembro não.

- Por mim quantas vezes
O sono perdeste
E ciúmes atrozes
Te despedaçaram!

Por mim quantas vezes
Quase tu mataste,
Quase te mataste,
Quase te mataram!
Agora me fitas
E não me conheces?

- Não conheço não.
Conheço que a vida
É sonho, ilusão.
Conheço que a vida,
A vida é traição.

Manuel Bandeira
BANDEIRA, M., Os Melhores Poemas de Manuel Bandeira, Volume 7, Global Editora, 1984

Claro que se o dinheiro falta, se a saúde vacila, se o amor arma alguma cilada, seu desejo de rir será pouco. Mas combata a depressão. Cultive o bom humor, como quem cultiva um bom hábito. Esforce-se para ser alegre. Afaste os sentimentos mesquinhos que provocam o despeito, a inveja, o sentimento de fracasso, que são origem de infelicidade. Adote uma filosofia otimista, eduque-se para ser feliz.(…) Seja feliz, se quer ser bonita!

Clarice Lispector
Correio feminino. Rio de Janeiro: Rocco, 2013.

O pior de mentir é que cria falsa verdade. (Não, não é tão óbvio como parece, não é truísmo; sei que estou dizendo uma coisa e que apenas não sei dizê-la do modo certo, aliás o que me irrita é que tudo tem de ser “do modo certo”, imposição muito limitadora.) O que é mesmo que eu estava tentando pensar? Talvez isso: se a mentira fosse apenas a negação da verdade, então este seria um dos modos (negativos) de dizer a verdade. Mas a mentira pior é a mentira “criadora”. (Não há dúvida: pensar me irrita, pois antes de começar a tentar pensar eu sabia muito bem o que eu sabia.)

Clarice Lispector
Para não esquecer. Rio de Janeiro: Rocco, 2015.

Nota: Crônica Mentir, pensar.

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