Poetas Brasileiros
“O que mais me comove, em música,
são essas notas soltas — pobres notas únicas —
que do teclado arrancam o afinador de pianos”...
(Versos extraídos do livro “Mário Quintana — Prosa e Verso”, Editora Globo (9ª edição).)
A Mesa (excerto)
E não gostavas de festa...
Ó velho, que festa grande
Hoje te faria a gente.
E teus filhos que não bebem
E o que gosta de beber,
Em torno da mesa larga,
Largavam as tristes dietas,
Esqueciam seus fricotes,
E tudo era farra honesta
Acabando em confidencia.
Ai, velho, ouviria coisas
De arrepiar teus noventa.
.......
Pois sim. Teu olho cansado,
Mas afeito a ler no campo
Uma lonjura de léguas
Entrava-nos alma adentro
E com pesar nos fitava
E com ira amaldiçoava
E com doçura perdoava
(Perdoar é rito dos pais,
Quando não seja de amantes)
"......."
Mais adiante vês aquele
Que de ti herdou a dura
Vontade, o duro estoicismo.
Mas, não quis te repetir.
Achou não valer a pena
Reproduzir sobre a terra
O que a terra engolirá.
Amou. E ama. E amará.
Só não quer seu amor
seja uma prisão de dois,
Um contrato, entre bocejos
E quatro pés de chinelo.
.....
Mas estamos todos vivos.
E mais que vivos, alegres.
Ninguém dirá que ficou faltando
Algum dos teus. Por exemplo:
Ali ao canto da mesa,
Ali me vês tu. Que tal?
Fica tranquilo: trabalho.
Afinal, a boa vida
Ficou apenas: a vida
( e nem era assim tão boa
E nem se fez muito má).
Pois ele sou eu. Repara:
Tenho todos os defeitos
Que não farejei em ti,
E nem os tenho que tinhas,
Quanto mais as qualidades.
Não importa: sou teu filho
Com ser uma negativa
Maneira de te afirmar.
.....
Tão ralo prazer te dei,
Nenhum, talvez...
Ou senão, esperança de prazer,
É, pode ser que te desse
A neutra satisfação
De alguém sentir que seu filho,
De tão inútil, seria
Sequer um sujeito ruim.
Não sou um sujeito ruim.
Descansa, se o suspeitavas,
Mas não sou lá essas coisas.
Alguns afetos recortam
O meu coração chateado.
Se me chateio? Demais.
Esse é meu mal. Não herdei
De ti essa balda.
.......
SONETO DE MARTA
Teu rosto, amada minha, é tão perfeito
Tem uma luz tão cálida e divina
Que é lindo vê-lo quando se ilumina
Como se um círio ardesse no teu peito
E é tão leve teu corpo de menina
Assim de amplos quadris e busto estreito
Que dir-se-ia uma jovem dançarina
De pele branca e fina, e olhar direito
Deverias chamar-te Claridade
Pelo modo espontâneo, franco e aberto
Com que encheste de cor meu mundo escuro
E sem olhar nem vida nem idade
Me deste de colher em tempo certo
Os frutos verdes deste amor maduro.
Fácil é viver sem ter que se preocupar com o amanhã. Difícil é questionar e tentar melhorar suas atitudes impulsivas e às vezes impetuosas, a cada dia que passa...
O que seria então aquela sensação de força contida, pronta para rebentar em violência, aquela sede de empregá-la de olhos fechados, inteira, com a segurança irrefletida de uma fera? Não era o mal apenas que alguém podia respirar sem medo, aceitando o ar e os pulmões? Nem o prazer me daria tanto prazer quanto o mal, pensava ela surpreendida. Sentia dentro de si um animal perfeito, cheio de inconsequências, de egoísmo e vitalidade.
Na hora do acontecimento não aproveito nada. E depois vem uma ilógica saudade. Mas é que o tempo presente, como a luz de uma estrela, só depois é que me atingirá em anos-luz. Na hora não chego a perceber do que se trata. Parece-me que só sou sensível e alerta na recordação. Quase que vivo, pois, no passado por não reconhecer a espécie de riqueza do momento atual.
O esquecimento das coisas é minha válvula de escape. Esqueço muito por necessidade. Inclusive estou tentando e conseguindo esquecer-me de mim mesmo, de mim minutos antes, de mim esqueço o meu futuro. Sou nu.
O vento vinha ventando
Pelas cortinas de tule.
As mãos da menina morta
Estão varadas de luz.
No colo, juntos, refulgem
Coração, âncora e cruz,
Nunca a água foi tão pura...
Quem a teria abençoado?
Nunca o pão de cada dia
Teve um gosto mais sagrado.
E o vento vinha ventando
Pelas cortinas de tule...
Menos um lugar na mesa
Mais um nome na oração.
Da que consigo levara.
Cruz, âncora e coração
(E o vento vinha ventando...)
Daquela de cujas penas
Só os anjos saberão !
Eu sou como o velho barco que guarda no seu bojo
o eterno ruído do mar batendo
No entanto, como está longe o mar
como é dura a terra sob mim...
Felizes são os pássaros que chegam mais cedo
que eu à suprema fraqueza
E que, voando, caem, pequenos e abençoados,
nos parques onde a primavera é eterna.
Sou inquieta, ciumenta, áspera, desesperançosa. Embora amor dentro de mim eu tenha. Só que não sei usar amor: às vezes parecem farpas.
A arca de Noé
Sete em cores, de repente
O arco-íris se desata
Na água límpida e contente
Do ribeirinho da mata.
O sol, ao véu transparente
Da chuva de ouro e de prata
Resplandece resplendente
No céu, no chão, na cascata.
E abre-se a porta da Arca
De par em par: surgem francas
A alegria e as barbas brancas
Do prudente patriarca
Noé, o inventor da uva
E que, por justo e temente
Jeová, clementemente
Salvou da praga da chuva.
Tão verde se alteia a serra
Pelas planuras vizinhas
Que diz Noé: "Boa terra
Para plantar minhas vinhas!"
E sai levando a família
A ver; enquanto, em bonança
Colorida maravilha
Brilha o arco da aliança.
Ora vai, na porta aberta
De repente, vacilante
Surge lenta, longa e incerta
Uma tromba de elefante.
E logo após, no buraco
De uma janela, aparece
Uma cara de macaco
Que espia e desaparece.
Enquanto, entre as altas vigas
Das janelinhas do sótão
Duas girafas amigas
De fora as cabeças botam.
Grita uma arara, e se escuta
De dentro um miado e um zurro
Late um cachorro em disputa
Com um gato, escouceia um burro.
A Arca desconjuntada
Parece que vai ruir
Aos pulos da bicharada
Toda querendo sair.
Vai! Não vai! Quem vai primeiro?
As aves, por mais espertas
Saem voando ligeiro
Pelas janelas abertas.
Enquanto, em grande atropelo
Junto à porta de saída
Lutam os bichos de pêlo
Pela terra prometida.
"Os bosques são todos meus!"
Ruge soberbo o leão
"Também sou filho de Deus!"
Um protesta; e o tigre – "Não!"
Afinal, e não sem custo
Em longa fila, aos casais
Uns com raiva, outros com susto
Vão saindo os animais.
Os maiores vêm à frente
Trazendo a cabeça erguida
E os fracos, humildemente
Vêm atrás, como na vida.
Conduzidos por Noé
Ei-los em terra benquista
Que passam, passam até
Onde a vista não avista.
Na serra o arco-íris se esvai...
E... desde que houve essa história
Quando o véu da noite cai
Na terra, e os astros em glória
Enchem o céu de seus caprichos
É doce ouvir na calada
A fala mansa dos bichos
Na terra repovoada.
Dorme, ruazinha...
É tudo escuro...
E os meus passos, quem é que pode ouvi-los?
Dorme o teu sono sossegado e puro,
Com teus lampiões, com teus jardins tranquilos.
Dorme...
Não há ladrões, eu te asseguro...
Nem guardas para acaso persegui-los...
Na noite alta, como sobre um muro,
As estrelinhas cantam como grilos...
O vento está dormindo na calçada,
O vento enovelou-se como um cão...
Dorme, ruazinha...
Não há nada...
Só os meus passos...
Mas tão leves são
Que até parecem, pela madrugada,
Os da minha futura assombração...
(...) se conectava com o retrato de Greta Garbo quando moça. Para minha surpresa, pois eu não imaginava Macabéa capaz de sentir o que diz um rosto como esse. Greta Garbo, pensava ela sem se explicar, essa mulher deve ser a mulher mais importante do mundo. Mas o que ela queria mesmo ser não era a altiva Greta Garbo cuja trágica sensualidade estava em pedestal solitário. O que ela queria, como eu já disse, era parecer com Marylin.
Parte, e tu verás
Parte, e tu verás
Como as coisas que eram, não são mais
E o amor dos que te esperam
Parece ter ficado para trás
E tudo o que te deram
Se desfaz.
Parte, e tu verás
Como se quedam mudos os que ficam
Como se petrificam
Os adeuses que ficaram a te acenar no cais
E como momento que passaram apenas
Parecem tempos imemoriais.
Parte, e tu verás
Como o que era real, resta impreciso
Como é preciso ir por onde vais
Com razão, sem razão, como é preciso
Que andes por onde estás.
Parte, e tu verás
Como insensivelmente esquecerás
Como a matéria de que é feito o tempo
Se esgarça, se dilui, se liquefaz
E qualquer novo sentimento
Te compraz.
Repara como um novo sofrimento
Te dá paz
Repara como vem o esquecimento
E como o justificas
E como mentes insensivelmente
Porque és, porque estás
Ah, eterno limite do presente
Ah, corpo, cárcere, onde faz
O amor que parte e sente
Saudade, e tenta, mas
Para viver, subitamente, mente
Que já não sabe mais
Vida, o presente; morte, o ausente -
Parte, e tu verás.
Místico
O ar está cheio de murmúrios misteriosos
E na névoa clara das coisas há um vago sentido de espiritualização…
Tudo está cheio de ruídos sonolentos
Que vêm do céu, que vêm do chão
E que esmagam o infinito do meu desespero.
Através do tenuíssimo de névoa que o céu cobre
Eu sinto a luz desesperadamente
Bater no fosco da bruma que a suspende.
As grandes nuvens brancas e paradas –
Suspensas e paradas
Como aves solícitas de luz –
Ritmam interiormente o movimento da luz:
Dão ao lago do céu
A beleza plácida dos grandes blocos de gelo.
No olhar aberto que eu ponho nas coisas do alto
Há todo um amor à divindade.
No coração aberto que eu tenho para as coisas do alto
Há todo um amor ao mundo.
No espírito que eu tenho embebido das coisas do alto
Há toda uma compreensão.
Almas que povoais o caminho de luz
Que, longas, passeais nas noites lindas
Que andais suspensas a caminhar no sentido da luz
O que buscais, almas irmãs da minha?
Por que vos arrastais dentro da noite murmurosa
Com os vossos braços longos em atitude de êxtase?
Vedes alguma coisa
Que esta luz que me ofusca esconde à minha visão?
Sentis alguma coisa
Que eu não sinta talvez?
Por que as vossas mãos de nuvem e névoa
Se espalmam na suprema adoração?
É o castigo, talvez?
Eu já de há muito tempo vos espio
Na vossa estranha caminhada.
Como quisera estar entre o vosso cortejo
Para viver entre vós a minha vida humana...
Talvez, unido a vós, solto por entre vós
Eu pudesse quebrar os grilhões que vos prendem...
Sou bem melhor que vós, almas acorrentadas
Porque eu também estou acorrentado
E nem vos passa, talvez, a idéia do auxílio.
Eu estou acorrentado à noite murmurosa
E não me libertais...
Sou bem melhor que vós, almas cheias de humildade.
Solta ao mundo, a minha alma jamais irá viver convosco.
Eu sei que ela já tem o seu lugar
Bem junto ao trono da divindade
Para a verdadeira adoração.
Tem o lugar dos escolhidos
Dos que sofreram, dos que viveram e dos que compreenderam.