Poesias de Rubem Alves
Se a pretensão da religião terminasse aqui, tudo estaria bem. Porque não há leis que
nos proíbam de sentir o que quisermos.
Se a pretensão da religião terminasse aqui, tudo estaria bem. Porque não há leis que
nos proíbam de sentir o que quisermos. O escândalo começa quando a religião ousa
transformar tal sentimento, interior e subjetivo, numa hipótese acerca do universo.
Podemos entender as razões por que o homem religioso não pode se satisfazer com o
pássaro empalhado. A religião diz: "o universo inteiro faz sentido". Ao que a ciência
retruca: "as pessoas religiosas sentem e pensam que o universo inteiro faz sentido".
Aquela afirmação sagrada que ecoava de universo em universo, reverberando em
eternidades e infinitos, a ciência aprisiona dentro do poço pequeno e escuro da
subjetividade e da sociedade: ilusão, ideologia. O sentido da vida é destruído. Que
pode restar da alegria das rãs, se o "lá fora" que o pintassilgo cantou não existir?
Afirmar que a vida tem sentido é propor a fantástica hipótese de que o
universo vibra com
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os nossos sentimentos, sofre a dor dos torturados, chora a lágrima dos abandonados,
sorri com as crianças que brincam.. . Tudo está ligado. Convicção de que, por detrás
das coisas visíveis, há um rosto invisível que sorri, presença amiga, braços que
abraçam, como na famosa tela de Salvador Dali. E é esta crença que explica os
sacrifícios que se oferecem nos altares e as preces que se balbuciam na solidão.
O que realmente importa:
A vida não é uma sonata que, para realizar a sua beleza, tem de ser tocada até o fim. Dei-me conta, ao contrário, de que a vida é um álbum de minissonatas. Cada momento de beleza vivido e amado, por efêmero que seja, é uma experiência completa que está destinada à eternidade. Um único momento de beleza e amor justifica a vida inteira. Tenho terror de ser enganado. Se estiver para morrer, que me digam. Se me disserem que ainda me restam dez anos, continuarei a ser tolo, mosca agitada na teia das medíocres, mesquinhas rotinas do cotidiano. Mas se só me restam seis meses, então tudo se torna repentinamente puro e luminoso. Os não essenciais se despregam do corpo, como escamas inúteis. A Morte me informa sobre o que realmente importa.
(Do universo à jabuticaba)
A Morte a única conselheira que temos:
"Odeio a ideia de morte repentina, embora todos achem que é a melhor. Discordo. Tremo ao pensar que o jaguar negro possa estar à espreita na próxima esquina. Não quero que seja súbita. Quero tempo para escrever o meu haicai. O último haicai é isto: o esforço supremo para dizer a beleza simples da vida que se vai. Como dizia o bruxo D. Juan ao seu aprendiz: “A morte é a única conselheira sábia que temos. Sempre que você sentir que tudo vai de mal a pior e que você está a ponto de ser aniquilado, volte-se para a sua Morte e pergunte-lhe se isso é verdade. Sua Morte lhe dirá que você está errado. Nada realmente importa fora do seu toque... Sua Morte o encarará e lhe dirá: ‘Ainda não o toquei’”. E o feiticeiro concluiu: “Um de nós tem de mudar, e rápido. Um de nós tem de aprender que a Morte é caçadora, e está sempre à nossa esquerda. Um de nós tem de aceitar o conselho da Morte e abandonar a maldita mesquinharia que acompanha os homens que vivem suas vidas como se a Morte não os fosse tocar nunca”.
A ideia de que o corpo carrega duas caixas – uma caixa de ferramentas, na mão direita, e uma caixa de brinquedos, na mão esquerda – me apareceu quando me dedicava a entender santo Agostinho. Pois ele, resumindo o seu pensamento, disse que todas as coisas que existem se dividem em duas ordens distintas. A ordem do uti (ele escrevia em latim) e a ordem do frui. Uti, “o que é útil, utilizável, utensílio”. Usar uma coisa é utilizá-la para se obter uma outra coisa. Frui, “fruir, usufruir, desfrutar, amar uma coisa por causa dela mesma”. A ordem do uti é o lugar do poder. Todos os utensílios, ferramentas, são inventados para aumentar o poder do corpo. A ordem do frui, ao contrário, é a ordem do amor – coisas que não são utilizadas, que não são ferramentas, que não servem para nada. Elas não são úteis; são inúteis. Porque não são para ser usadas, mas para ser gozadas. A tradição cristã tem medo das coisas que são guardadas na caixa dos brinquedos. Nessa caixa se guarda a origem do pecado: o prazer…
(Do universo à jabuticaba)
Pato selvagem:
Era uma vez um bando de patos selvagens que voava nas alturas. Lá de cima se via muito longe, campos verdes, lagos azuis, montanhas misteriosas e os pores de sol eram maravilhosos. Mas voar nas alturas era cansativo. Ao final do dia os patos estavam exaustos.
Aconteceu que um dos patos, quando voava nas alturas, olhou para baixo e viu um pequeno sítio, casinha com chaminé, vacas, cavalos, galinhas… e um bando de patos deitados debaixo de uma árvore.
Como pareciam felizes! Não precisavam trabalhar. Havia milho em abundância.
O pato selvagem, cansado, teve inveja deles. Disse adeus aos companheiros, baixou seu voo e juntou-se aos patos domésticos.
Ah! Como era boa a vida, sem precisar fazer força. Ele gostou, fez amizades. O tempo passou. Primavera, verão, outono, inverno…
Chegou de novo o tempo da migração dos patos selvagens. E eles passavam grasnando, nas alturas…
De repente o pato que fora selvagem começou a sentir uma dor no seu coração, uma saudade daquele mundo selvagem e belo, as coisas que ele via e não via mais: os campos, os lagos, as montanhas, os pores de sol. Aqui em baixo a vida era fácil, mas os horizontes eram tão curtos! Só se via perto!
E a dor foi crescendo no seu peito até que não aguentou mais. Resolveu voltar a juntar-se aos patos selvagens. Abriu suas asas, bateu-as com força, como nos velhos tempos. Ele queria voar! Mas caiu e quase quebrou o pescoço. Estava pesado demais para o voo. Havia engordado com a boa vida… E assim passou o resto de sua vida, gordo e pesado, olhando para os céus, com nostalgia das alturas…
(Ostra feliz não faz pérola)
O ato de falar é um ato masculino. Fala é falus: algo que sai, se alonga e procura um orifício onde entrar, o ouvido… Já o ato de ouvir é feminino: o ouvido é um vazio que se permite ser penetrado. Não me entenda mal. Não disse que fala é coisa de homem e ouvir é coisa de mulher.
Todos nós somos masculinos e femininos ao mesmo tempo.
O ser humano se vê em um
mundo que não lhe pertence e, para tentar escapar deste, cria para si um outro, em que o "princípio
de prazer" se sobrepõe ao "princípio de realidade".
Os universos simbólicos, a religião, a história são expressões do esforço
humano no sentido de tornar a natureza, o tempo e o espaço em função de si
mesmo. Esforço titânico para antropologizar o universo todo, transformando-o
numa extensão do corpo.
Dessa forma, o Reino de Deus é um grande projeto utópico, e a religião é o grito da
criatura oprimida que não aceita o mundo como ele é, que quer fazer com que o reino de Deus se
faça presente na terra. Nesse sentido, a religião não mais corresponde à busca de um ser
transcendente, mas a uma ação efetiva, buscando alcançar um mundo que faça sentido para o
homem.
Os flamboyants
A manhã estava linda: céu azul, ventinho fresco. Infelizmente, muitas obrigações me aguardavam. Coisas que eu tinha de fazer. Aí, lembrei-me do menino-filósofo chamado Nietzsche que dizia que ficar em casa estudando, quando tudo é lindo lá fora, é uma evidência de estupidez.
(Trecho extraído de texto do jornal "Correio Popular", de Campinas (SP), Fonte: Projeto Releitura)
Houve tempo em que era mais fácil acreditar em Deus. Hoje está mais difícil. Até o Papa, na sua visita ao campo de concentração de Treblinka, fez a pergunta que não deveria ter feito: “Onde estava Deus quando esse horror aconteceu ?
(Trecho extraído da crônica PERGUNTARAM-ME SE ACREDITO EM DEUS… Crônica – Instituto Rubem Alves – Website)
“Onde está a minha esperança? Numa multidão de indivíduos, independentemente do seu lugar social ou econômico, que vivem possuídos pelo sonho da vida, da beleza e da bondade. A esperança de Camus estava no mesmo lugar que a minha”.
(Extraído do livro "Pimentas" - de Rubem Alves. Página 136 - Editora Planeta, São Paulo, 2014.)
"Eu pedia às pessoas mais do que elas me podiam dar: uma amizade contínua, uma emoção permanente. Hoje sei pedir-lhes menos do que podem dar: uma companhia sem palavras".
(Em “pensamentos que penso quando não estou pensando” - Página 47)
“Os antigos filósofos pensavam muito mais que liam. A invenção da imprensa modificou as coisas. Lê-se mais do que pensa”.
(Em "Pensamentos que penso quando não estou pensando" Página 46 - 3a edição - Papirus – 2012)
SOCIEDADE
Há muitos anos - mais de trinta – que me recuso a pertencer a qualquer sociedade. Groucho Marx disse certa vez. “Eu nunca aceitaria ser sócio de um clube que me aceitasse como sócio...”. De acordo.
(do livro em PDF: do universo à jabuticaba)
FUMAR...
Parar de fumar aos poucos é o mesmo que parar de ser infiel à esposa aos poucos...
(do livro em PDF: do universo à jabuticaba)
“A imaginação é a artista que transforma o sofrimento em beleza. E beleza torna a dor suportável. Por isso escrevo estórias: para realizar a alquimia de transformar dor em flor. Minhas estórias são as minhas porções mágicas... Não há contraindicações nem é preciso receitas”.
(Trecho em “Se eu pudesse viver minha vida novamente...”. [Organização Raissa Castro Oliveira]. 21ª ed., Campinas/SP: Editora Verus, 2010, p. 147.)
"As memórias com vida própria, ao contrário, não ficam quietas dentro de uma caixa. São como pássaros em voo. Vão para onde querem. E podemos chamá-las que elas não vêm. Só vêm quando querem. Moram em nós, mas não nos pertencem”.
(Trecho de "O velho que acordou o menino" [infância]. São Paulo: Planeta do Brasil, 2005, 14.)
“A sugestão que nos vem da Psicanálise é de que o homem faz cultura a fim de criar os objetos do seu desejo. O projeto inconsciente do ego, não importa o seu tempo e o seu lugar é encontrar um mundo que possa ser amado”.
( em "O que é religião?".)