Poesias de Rubem Alves
Agora é tempo de felicidade.
Cada novo dia é um milagre...
Uma taça de prazer
que deve ser bebida até o fim (...).
"Tempus fugit"!
Portanto, carpe diem.
O que realmente importa:
A vida não é uma sonata que, para realizar a sua beleza, tem de ser tocada até o fim. Dei-me conta, ao contrário, de que a vida é um álbum de minissonatas. Cada momento de beleza vivido e amado, por efêmero que seja, é uma experiência completa que está destinada à eternidade. Um único momento de beleza e amor justifica a vida inteira. Tenho terror de ser enganado. Se estiver para morrer, que me digam. Se me disserem que ainda me restam dez anos, continuarei a ser tolo, mosca agitada na teia das medíocres, mesquinhas rotinas do cotidiano. Mas se só me restam seis meses, então tudo se torna repentinamente puro e luminoso. Os não essenciais se despregam do corpo, como escamas inúteis. A Morte me informa sobre o que realmente importa.
(Do universo à jabuticaba)
A Morte a única conselheira que temos:
"Odeio a ideia de morte repentina, embora todos achem que é a melhor. Discordo. Tremo ao pensar que o jaguar negro possa estar à espreita na próxima esquina. Não quero que seja súbita. Quero tempo para escrever o meu haicai. O último haicai é isto: o esforço supremo para dizer a beleza simples da vida que se vai. Como dizia o bruxo D. Juan ao seu aprendiz: “A morte é a única conselheira sábia que temos. Sempre que você sentir que tudo vai de mal a pior e que você está a ponto de ser aniquilado, volte-se para a sua Morte e pergunte-lhe se isso é verdade. Sua Morte lhe dirá que você está errado. Nada realmente importa fora do seu toque... Sua Morte o encarará e lhe dirá: ‘Ainda não o toquei’”. E o feiticeiro concluiu: “Um de nós tem de mudar, e rápido. Um de nós tem de aprender que a Morte é caçadora, e está sempre à nossa esquerda. Um de nós tem de aceitar o conselho da Morte e abandonar a maldita mesquinharia que acompanha os homens que vivem suas vidas como se a Morte não os fosse tocar nunca”.
A ideia de que o corpo carrega duas caixas – uma caixa de ferramentas, na mão direita, e uma caixa de brinquedos, na mão esquerda – me apareceu quando me dedicava a entender santo Agostinho. Pois ele, resumindo o seu pensamento, disse que todas as coisas que existem se dividem em duas ordens distintas. A ordem do uti (ele escrevia em latim) e a ordem do frui. Uti, “o que é útil, utilizável, utensílio”. Usar uma coisa é utilizá-la para se obter uma outra coisa. Frui, “fruir, usufruir, desfrutar, amar uma coisa por causa dela mesma”. A ordem do uti é o lugar do poder. Todos os utensílios, ferramentas, são inventados para aumentar o poder do corpo. A ordem do frui, ao contrário, é a ordem do amor – coisas que não são utilizadas, que não são ferramentas, que não servem para nada. Elas não são úteis; são inúteis. Porque não são para ser usadas, mas para ser gozadas. A tradição cristã tem medo das coisas que são guardadas na caixa dos brinquedos. Nessa caixa se guarda a origem do pecado: o prazer…
(Do universo à jabuticaba)
Pato selvagem:
Era uma vez um bando de patos selvagens que voava nas alturas. Lá de cima se via muito longe, campos verdes, lagos azuis, montanhas misteriosas e os pores de sol eram maravilhosos. Mas voar nas alturas era cansativo. Ao final do dia os patos estavam exaustos.
Aconteceu que um dos patos, quando voava nas alturas, olhou para baixo e viu um pequeno sítio, casinha com chaminé, vacas, cavalos, galinhas… e um bando de patos deitados debaixo de uma árvore.
Como pareciam felizes! Não precisavam trabalhar. Havia milho em abundância.
O pato selvagem, cansado, teve inveja deles. Disse adeus aos companheiros, baixou seu voo e juntou-se aos patos domésticos.
Ah! Como era boa a vida, sem precisar fazer força. Ele gostou, fez amizades. O tempo passou. Primavera, verão, outono, inverno…
Chegou de novo o tempo da migração dos patos selvagens. E eles passavam grasnando, nas alturas…
De repente o pato que fora selvagem começou a sentir uma dor no seu coração, uma saudade daquele mundo selvagem e belo, as coisas que ele via e não via mais: os campos, os lagos, as montanhas, os pores de sol. Aqui em baixo a vida era fácil, mas os horizontes eram tão curtos! Só se via perto!
E a dor foi crescendo no seu peito até que não aguentou mais. Resolveu voltar a juntar-se aos patos selvagens. Abriu suas asas, bateu-as com força, como nos velhos tempos. Ele queria voar! Mas caiu e quase quebrou o pescoço. Estava pesado demais para o voo. Havia engordado com a boa vida… E assim passou o resto de sua vida, gordo e pesado, olhando para os céus, com nostalgia das alturas…
(Ostra feliz não faz pérola)
O ato de falar é um ato masculino. Fala é falus: algo que sai, se alonga e procura um orifício onde entrar, o ouvido… Já o ato de ouvir é feminino: o ouvido é um vazio que se permite ser penetrado. Não me entenda mal. Não disse que fala é coisa de homem e ouvir é coisa de mulher.
Todos nós somos masculinos e femininos ao mesmo tempo.
O ser humano se vê em um
mundo que não lhe pertence e, para tentar escapar deste, cria para si um outro, em que o "princípio
de prazer" se sobrepõe ao "princípio de realidade".
Os universos simbólicos, a religião, a história são expressões do esforço
humano no sentido de tornar a natureza, o tempo e o espaço em função de si
mesmo. Esforço titânico para antropologizar o universo todo, transformando-o
numa extensão do corpo.
Dessa forma, o Reino de Deus é um grande projeto utópico, e a religião é o grito da
criatura oprimida que não aceita o mundo como ele é, que quer fazer com que o reino de Deus se
faça presente na terra. Nesse sentido, a religião não mais corresponde à busca de um ser
transcendente, mas a uma ação efetiva, buscando alcançar um mundo que faça sentido para o
homem.
O mundo humano, que é feito com trabalho e amor, é uma página em branco na
sabedoria que nossos corpos herdaram de nossos antepassados.
Há propriedades que, para se fazerem sentir e valer dependem exclusivamente
de si mesmas, Por- exemplo, antes que os homens existissem já brilhavam as
estrelas, o sol aquecia, a chuva caia e as plantas e bichos enchiam o mundo. Tudo
isto existiria e seria eficaz sem que o homem jamais existido, jamais pronunciado
uma palavra, jamais feito um gesto. E é provável que que continuaram, mesmo
depois do nosso desaparecimento. Trata-se de realidades naturais, independente do
desejo, da vontade, da atividade prática dos homens.
Há também gestos que
uma eficácia em si mesmos. O dedo que puxa o gatilho, a mão que faz cair a
bomba, os pés que fazem a bicicleta andar: ainda que o assassinado nada saiba e não
ouça palavra alguma, ainda que aqueles sobre quem a bomba explode não recebam
antes explicações, e ainda que não haja conversação entre os pés e as rodas — não
importa, os gestos têm eficácia própria e são, praticamente habitantes do mundo
da natureza.
Uma pedra não é imaginária. Visível, concreta. Como tal, nada tem de religioso.
Mas no momento em que alguém lhe dá o nome de altar, ela passa a ser circundada de
uma aura misteriosa, e os olhos da fé podem vislumbrar conexões invisíveis que a
ligam ao mundo da graça divina. E ali se fazem orações e se oferecem sacrifícios.
Pão, como qualquer pão, vinho, como qualquer vinho. Poderiam ser usados
numa refeição ou orgia: materiais profanos, inteiramente. Deles não sobe
nenhum odor sagrado. E as palavras são pronunciadas: "Este é o meu corpo, este é
o meu sangue. . ." — e os objetos visíveis adquirem uma dimensão nova, e passam a
ser sinais de realidades invisíveis.
Aqueles que duvidam ou propõem novos
sistemas de ideias, ou são loucos ou são ignorantes, ou são iconoclastas irreverentes
Perde a natureza sua aura sagrada. Nem os céus proclamam a glória de Deus, como
acreditava Kepler, e terra anuncia o seu amor. Céus e terra não são o poema de um ser supremo invisível. E é por isto que não existe nenhum interdito, nenhuma
proibição, nenhum tabu a cercá-los. A natureza é nada mais que uma fonte de
matérias-primas, entidade bruta, destituída de valor. O respeito pelo rio e pela fonte.
Há certas situações em que as palavras deixam de significar, abandonam o mundo
da verdade e da falsidade, e passam a existir ao lado das coisas.
Nascemos fracos e indefesos; incapazes de sobreviver como indivíduos isolados; recebemos da sociedade um nome e
uma identidade; ( ... ) É compreensível que ela seja o Deus que todas as religiões adoram...
E, da mesma forma como é inútil tentar apagar o fogo assoprando a fumaça,
também é inútil tentar mudar as condições de vida pela crítica da religião. A
consciência da fumaça nos remete ao incêndio de onde ela sai. De forma idêntica, a
consciência da religião nos força a encarar as condições materiais que a produzem.
o trabalho não é atividade
que dá prazer, mas atividade que dá sofrimento. O homem trabalha porque não tem
outro jeito. Trabalho forçado. Seu maior ideal: a aposentadoria. O prazer, ele irá
encontrar fora do trabalho. E é por isto que ele se submete ao trabalho e ao pago do
salário.
É o mundo capitalista, regido pela lógica do dinheiro. E o que ocorre é
que o mundo estabelecido pela lógica do lucro — que inclui de devastações ecológicas
até a guerra — está totalmente alienado, separado dos desejos das pessoas, que
prefeririam talvez coisas mais simples. . . Assim, as áreas verdes são entregues à
especulação imobiliária, os índios perdem suas terras porque gado é melhor para a
economia que índio, as terras vão-se transformando em desertos de cana, enquanto que
rios e mares viram caldos venenosos, e os peixes bóiam, mortos...