Poesias de Machado de Assis
Escrevia-a com a pena da galhofa e a tinta da melancolia, e não é difícil antever o que poderá sair desse conúbio.
Um dos defeitos mais gerais, entre nós, é achar sério o que é ridículo, e ridículo o que é sério, pois o tato para acertar nestas coisas é também uma virtude do povo.
Digo-lhe que faz mal, que é melhor, muito melhor contentar-se com a realidade; se ela não é brilhante como os sonhos, tem pelo menos a vantagem de existir.
Em si mesma, a loucura é já uma rebelião. O juízo é a ordem, é a Constituição, a justiça e as leis.
Era uma vez uma choupana que ardia na estrada; a dona – um triste molambo de mulher, – chorava o seu desastre, a poucos passos, sentada no chão. Senão quando, indo a passar um homem ébrio, viu o incêndio, viu a mulher, perguntou-lhe se a casa era dela.
– É minha, sim, meu senhor; é tudo o que eu possuía, neste mundo.
– Dá-me então licença que acenda ali o meu charuto?
Capítulo VIII
Razão contra Sandice
Já o leitor compreendeu que era a Razão que voltava à casa, e convidava a Sandice a sair, clamando, e com melhor jus, as palavras de Tartufo:
La maison est à moi, c´est à vous d'en sortir.
Mas é sestro antigo da Sandice criar amor às casas alheias, de modo que, apenas senhora de uma, dificilmente lha farão despejar. É sestro; não se tira daí; há muito que lhe calejou a vergonha. Agora, se advertirmos no imenso número de casas que ocupa, umas de vez, outras durante as suas estações calmosas, concluiremos que esta amável peregrina é o terror dos proprietários. No nosso caso, houve quase um distúrbio à porta do meu cérebro, porque a adventícia não queria entregar a casa, e a dona não cedia da intenção de tomar o que era seu. Afinal, já a Sandice se contentava com um cantinho no sótão.
– Não, senhora, replicou a Razão, estou cansada de lhe ceder sótãos, cansada e experimentada, o que você quer é passar mansamente do sótão à sala de jantar, daí à de visitas e ao resto.
– Está bem, deixe-me ficar algum tempo mais, estou na pista de um mistério...
– Que mistério?
– De dois, emendou a Sandice; o da vida e o da morte; peço-lhe só uns dez minutos.
A Razão pôs-se a rir.
– Hás de ser sempre a mesma coisa... sempre a mesma coisa... sempre a mesma coisa...
E dizendo isto, travou-lhe dos pulsos e arrastou-a para fora; depois entrou e fechou-se. A Sandice ainda gemeu algumas súplicas, grunhiu algumas zangas; mas desenganou-se depressa, deitou a língua de fora, em ar de surriada, e foi andando...
– Se eu soubera, dizia Soares, que no fim de tão pouco tempo a senhora me faria beber fel e vinagre, não teria prosseguido em uma paixão que foi o meu castigo. Fernanda, muda e distraída, mirava-se de quando em quando em um psyché, corrigindo o penteado ou simplesmente admirando a esquivança desarrazoada de Fernando. Soares insistia no mesmo tom meio sentimental. Afinal, Fernanda respondia desabridamente, exprobrando-lhe o insulto que fazia à sinceridade dos seus protestos.
– Mas esses protestos, disse Soares, é que eu não ouço; é exatamente o que eu peço; jure que eu estou em erro e fico contente. Há uma hora que lho digo.
– Pois sim...
– O quê?
– Está em erro.
– Fernanda, juras-me isso?
– Juro, sim...
É regra velha, creio eu, ou fica sendo nova, que só se faz bem o que se faz com amor. Tem ar de velha, tão justa e vulgar parece.
Ninguém tachou de má a caixa de Pandora por lhe ter ficado a esperança no fundo. Em algum lugar há de ela ficar.
Quem diria? De dois grandes namorados, de duas paixões sem freios, nada mais havia ali. (...) Havia apenas dois corações murchos, devastados pela vida e saciados dela, não sei em igual dose, mas enfim saciados.
O senhor não imagina bem que eterna variação de gênio é aquela moça. Há dias em que se levanta meiga e alegre, outros em que toda ela é irritação e melancolia.
Pelo motivo real de que o homem só comemora e ama o que lhe é aprazível ou vantajoso, e pelo motivo racional de que nenhuma pessoa canoniza uma ação que virtualmente a destrói.
A abolição é a aurora da liberdade; esperemos o sol; emancipado o preto, resta emancipar o branco.
O meu fim evidente era atar as duas pontas da vida, e restaurar na velhice a adolescência. Pois, senhor, não consegui recompor o que foi nem o que fui. Em tudo, se o rosto é igual, a fisionomia é diferente. Se só me faltassem os outros, vá; um homem consola-se mais ou menos das pessoas que perde; mas falto eu mesmo, e esta lacuna é tudo.
Eu sei que Vossa Excelência preferia uma delicada mentira; mas eu não conheço nada mais delicado que a verdade.
A donzela casta e sincera que supunha vir encontrar desaparecia para dar lugar a uma mulher de coração pérfido e vulgar espírito.
Afinal de contas, pensava ele, aquele coração, tão volúvel e estouvado, não devia ser meu; a traição mais tarde seria mais funesta.
Trata de saborear a vida; e fica sabendo que a pior filosofia é a do choramingas que se deita à margem do rio para o fim de lastimar o curso incessante das águas.
Não sei se me explico bem, nem é preciso dizer melhor para o fogo a que lançarei um dia estas folhas de solitário.
Então, se é digna de si mesma, não teima em espertar a lembrança morta ou expirante; não busca no olhar de hoje a mesma saudação do olhar de ontem, quando eram outros os que encetavam a marcha da vida, de alma alegre e pé veloz.