Poemas de Clarice Lispector
Tem sido sábado, mas já não me perguntam mais. Então eu não digo nada, aparentemente submissa. Mas já peguei as minhas coisas e fui para domingo de manhã. Domingo de manhã também é a rosa da semana. Não é propriamente rosa que eu quero dizer.
Dei gritos de dor, e de cólera, pois a dor parece uma ofensa à nossa integridade física. Mas não fui tola. Aproveitei a dor e dei gritos pelo passado e pelo presente. Até pelo futuro gritei, meu Deus.
Mas as palavras que uma pessoa pronunciava quando estava embriagada era como se estivesse prenhe – palavras apenas na boca, que pouco tinham a ver com o centro secreto que era como uma gravidez.
Eu, que fabrico o futuro como uma aranha diligente. E o melhor de mim é quando nada sei e fabrico não sei o quê.
O bule de chá tão esguio, elegante e cheio de graça. Sim, mas tudo isso num instante passa, e o que fica é um bule velho e um pouquinho lascado, objeto ordinário.
Lírios brancos encostados à nudez do peito. Lírios que eu ofereço e ao que está doendo em você. Pois nós somos seres e carentes. Mesmo porque estas coisas – se não forem dadas – fenecem.
Deste-me inocentemente a mão, e porque eu a segurava é que tive coragem de me afundar. Mas não procures entender-me, faze-me apenas companhia. Sei que tua mão me largaria, se soubesse.
É preciso não esquecer e respeitar a violência que temos. As pequenas violências nos salvam das grandes. Quem sabe, se não comêssemos os bichos, comeríamos gente com o seu sangue. Nossa vida é truculenta, Loreley: nasce-se com sangue e com sangue corta-se para sempre a possibilidade de união perfeita: o cordão umbilical. E muitos são os que morrem com sangue derramado por dentro ou por fora. É preciso acreditar no sangue como parte importante da vida. A truculência é amor também.
Não quero ter a terrível limitação de quem vive apenas do que é passível de fazer sentido. Eu não: quero é uma verdade inventada. (...) Sou um ser concomitante: reúno em mim o tempo passado, o presente e o futuro, o tempo que lateja no tique-taque dos relógios.
Do momento em que me resignei, perdi toda a vivacidade e todo interesse pelas coisas. Você já viu como um touro castrado se transforma num boi? assim fiquei eu...
Quando eu me comunico com criança é fácil porque sou muito maternal. Quando me comunico com adulto, na verdade estou me comunicando com o mais secreto de mim mesma, daí é difícil... O adulto é triste e solitário. A criança tem a fantasia solta.
Assusta-me quando num relance vejo as entranhas do espírito dos outros. Ou quando caio sem querer bem fundo dentro de mim e vejo o abismo interminável da eternidade, abismo através do qual me comunico fantasmagórica com Deus.
Uma rapacidade toda controlada me tomara, e por ser controlada ela era toda potência. Até então eu nunca fora dona de meus poderes – poderes que eu não entendia nem queria entender, mas a vida em mim os havia retido para que um dia enfim desabrochasse essa matéria desconhecida e feliz e inconsciente que era finalmente: eu! eu, o que quer que seja.
E poucos suportam perder todas as outras ilusões. Há os que se voluntariam para o amor, pensando que o amor enriquecerá a vida pessoal. É o contrário: amor é finalmente a pobreza. Amor é não ter. Inclusive amor é a desilusão do que se pensava que era amor.
O que é que há? Pois estou como que ouvindo acordes de piano alegre – será isto o símbolo de que a vida da moça iria ter um futuro esplendoroso? Estou contente com essa possibilidade e farei tudo para que esta se torne real.
Quero escrever noções sem o uso abusivo da palavra. Só me resta ficar nua: nada tenho mais a perder.
Só não me agradaram as notícias de que vocês duas não aproveitaram bem as férias. Detesto pessoas que se parecem comigo...
Mas estou tentando escrever-te com o corpo todo, enviando uma seta que se finca no ponto tenro e nevrálgico da palavra.
Ouvira na Rádio Relógio que havia sete bilhões de pessoas no mundo. Ela se sentia perdida. Mas com a tendência que tinha para ser feliz logo se consolou: havia sete bilhões de pessoas para ajudá-la.
De propósito não vou descrever o que vi: cada pessoa tem que descobrir sozinha. Apenas lembrarei que havia sombras oscilantes, secretas. De passagem falarei de leve na liberdade dos pássaros. E na minha liberdade. Mas é só. O resto era o verde úmido subindo em mim pelas minhas raízes incógnitas. Eu andava, andava. Às vezes parava. Já me afastara muito do portão de entrada, não o via mais, pois entrara em tantas alamedas. Eu sentia um medo bom – como um estremecimento apenas perceptível de alma – um medo bom de talvez estar perdida e nunca mais, porém nunca mais! achar a porta de saída.