Poemas de Clarice Lispector
A moralidade. Seria simplório pensar que o problema moral em relação aos outros consiste em agir como se deveria agir, e o problema moral consigo mesmo é conseguir sentir o que se deveria sentir? Sou moral à medida que faço o que devo, e sinto como deveria?
O que seria então aquela sensação de força contida, pronta para rebentar em violência, aquela sede de empregá-la de olhos fechados, inteira, com a segurança irrefletida de uma fera? Não era o mal apenas que alguém podia respirar sem medo, aceitando o ar e os pulmões? Nem o prazer me daria tanto prazer quanto o mal, pensava ela surpreendida. Sentia dentro de si um animal perfeito, cheio de inconsequências, de egoísmo e vitalidade.
No fundo a gente não está querendo alterar as coisas, está querendo desabrochar de um modo ou de outro, né?
Inútil querer me classificar: eu simplesmente escapulo não deixando, gênero não me pega mais. Estou em um estado muito novo e verdadeiro, curioso de si mesmo, tão atraente e pessoal a ponto de não poder pintá-lo ou escrevê-lo. Parece com momentos que tive contigo, quando te amava, além dos quais não pude ir pois fui ao fundo dos momentos.
Mas sentimentos são água de um instante. Em breve – como a mesma água já é outra quando o sol a deixa muito leve, e já outra quando se enerva tentando morder uma pedra, e outra ainda no pé que mergulha.
Meu Deus, me dê a coragem de viver trezentos e sessenta e cinco dias e noites, todos vazios de Tua presença. (...) Faça com que a solidão não me destrua. Faça com que minha solidão me sirva de companhia. Faça com que eu tenha a coragem de me enfrentar. Faça com que eu saiba ficar com o nada e mesmo assim me sentir como se estivesse plena de tudo.
Minha vida é um grande desastre. É um desencontro cruel, é uma casa vazia. Mas tem um cachorro dentro latindo. E eu – só me resta latir para Deus. Vou voltar para mim mesma. É lá que eu encontro uma menina morta sem pecúlio.
O dia corre lá fora à toa e há abismos de silêncio em mim. A sombra de minha alma é o corpo. (...) Sou feliz na hora errada. Infeliz quando todos dançam.
(...) se conectava com o retrato de Greta Garbo quando moça. Para minha surpresa, pois eu não imaginava Macabéa capaz de sentir o que diz um rosto como esse. Greta Garbo, pensava ela sem se explicar, essa mulher deve ser a mulher mais importante do mundo. Mas o que ela queria mesmo ser não era a altiva Greta Garbo cuja trágica sensualidade estava em pedestal solitário. O que ela queria, como eu já disse, era parecer com Marylin.
Eu venho de uma longa saudade. Eu, a quem elogiam e adoram. Mas ninguém quer nada comigo. Meu fôlego de sete gatos amedronta os que poderiam vir. Com exceção de uns poucos, todos têm medo de mim como se eu mordesse. Nem eu nem Ulisses mordemos. Somos mansos e alegres, e às vezes latimos de raiva ou de espanto. Eu escondo de mim o meu fracasso. Desisto. E tristemente coleciono frases de amor. Em português é “eu te amo”. Em francês – “je t’aime”. Em inglês – “I love you”. Em italiano – “io t’amo”. Em espanhol – “yo te quiero”. Em alemão – “Ich liebe dich”, está certo? Logo eu, a mal-amada. A grande decepcionada, a que cada noite experimenta a doçura da morte.
Incompetente para a vida. Faltava-lhe o jeito de se ajeitar. Só vagamente tomava conhecimento da espécie de ausência que tinha de si em si mesma. Se fosse criatura que se exprimisse diria: o mundo é fora de mim, eu sou fora de mim.
Bom, agora eu morri. Mas vamos ver se eu renasço de novo. Por enquanto eu estou morta. Estou falando do meu túmulo.
Escrever é o mesmo processo do ato de sonhar: vão-se formando imagens, cores, atos, e sobretudo uma atmosfera de sonho que parece uma cor e não uma palavra.
Minha alma tem o peso da luz. Tem o peso da música. (...) Tem o peso de um olhar. Pesa como pesa uma ausência. E a lágrima que não se chorou. Tem o imaterial peso da solidão no meio de outros.
(...) ele se arriscou à penosa acrobacia de voar desajeitado. Boquiaberto, olhou em torno porque certos gestos se tornam aterrorizantes na solidão, com um valor final neles mesmos. Quando um homem cai sozinho num campo não sabe a quem dar a sua queda.
Mas às vezes a saudade é tão profunda que a presença é pouco: quer-se absorver a outra pessoa toda.
Sou inquieta, ciumenta, áspera, desesperançosa. Embora amor dentro de mim eu tenha. Só que não sei usar amor: às vezes parecem farpas.
Sejam vocês mesmas! Estudem cuidadosamente o que há de positivo ou negativo na sua pessoa e tirem partido disso. A mulher inteligente tira partido até dos pontos negativos. Uma boca demasiadamente rasgada, uns olhos pequenos, um nariz não muito correto podem servir para marcar o seu tipo e torná-lo mais atraente.
Desde que seja seu mesmo.
Mas não havia nela miséria humana. É que tinha em si mesma uma certa flor fresca. Pois, por estranho que pareça, ela acreditava. Era apenas fina matéria orgânica. Existia. Só isto. E eu? De mim só se sabe que respiro.
Estou absolutamente cansado de literatura; só a mudez me faz companhia. Se ainda escrevo é porque nada mais tenho a fazer no mundo enquanto espero a morte. A procura da palavra no escuro. O pequeno sucesso me invade e me põe no olho da rua. Eu queria chafurdar no lodo, minha necessidade de baixeza eu mal controlo, a necessidade da orgia e do pior gozo absoluto. O pecado me atrai, o que é proibido me fascina.