Poemas de Clarice Lispector

Há tantos anos me perdi de vista que hesito em procurar me encontrar. Estou com medo de começar. Existir me dá às vezes tal taquicardia. Eu tenho tanto medo de ser eu. Sou tão perigoso. Me deram um nome e me alienaram de mim.

Clarice Lispector
Um sopro de vida. Rio de Janeiro: Rocco, 2015.

Muitas coisas que me aconteceram tão piores que estas, eu já perdoei. No entanto essa não posso sequer entender agora: o jogo de dados de um destino é irracional? É impiedoso.

Clarice Lispector
A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.

Nota: Trecho da crônica Restos do carnaval.

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Tenho que ter paciência para não me perder dentro de mim: vivo me perdendo de vista. Preciso de paciência porque sou vários caminhos, inclusive o fatal beco sem saída. Sou um homem que escolheu o silêncio grande. Criar um ser que me contraponha é dentro do silêncio.

Clarice Lispector
Um sopro de vida. Rio de Janeiro: Rocco, 2015.

Vida não tem adjetivo. É uma mistura em cadinho estranho mas que me dá em última análise, em respirar. E às vezes arfar. E às vezes mal poder respirar. É. Mas às vezes há também o profundo hausto de ar que até atinge o fino frio do espírito, preso ao corpo por enquanto.

Clarice Lispector
Um sopro de vida. Rio de Janeiro: Rocco, 2015.

Para que eu continue humana meu sacrifício será o de esquecer? Agora saberei reconhecer na face comum de algumas pessoas que – que elas esqueceram. E nem sabem mais que esqueceram o que esqueceram.

Clarice Lispector
A paixão segundo G. H. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

O horror será a minha responsabilidade até que se complete a metamorfose e que o horror se transforme em claridade.

Clarice Lispector
A paixão segundo G. H. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

Mas é que a verdade nunca me fez sentido. A verdade não me faz sentido! É por isso que eu a temia e a temo.

Clarice Lispector
A paixão segundo G. H. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

Um homem me disse que no Talmude falam de coisas que a gente não pode contar a muitos, há outras a poucos, e outras a ninguém. Acrescento: não quero contar nem a mim mesma certas coisas. Sinto que sei de umas verdades. Mas não sei se as entenderia mentalmente. E preciso amadurecer um pouco mais para me achegar a essas verdades.

Clarice Lispector
A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.

Nota: Trecho da crônica Ao correr da máquina.

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A verdade não faz sentido, a grandeza do mundo me encolhe. Aquilo que provavelmente pedi e finalmente tive, veio no entanto me deixar carente como uma criança que anda sozinha pela terra. Tão carente que só o amor de todo o universo por mim poderia me consolar e me cumular, só um tal amor que a própria célula-ovo das coisas vibrasse com o que estou chamando de um amor. Daquilo a que na verdade apenas chamo mas sem saber-lhe o nome.

Clarice Lispector
A paixão segundo G. H. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

É preciso coragem para me aventurar numa tentativa de concretização do que sinto. É como se eu tivesse uma moeda e não soubesse em que país ela vale.

Clarice Lispector
A paixão segundo G. H. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

Adiar o momento em que terei que começar a dizer, sabendo que nada mais me resta a dizer. Estou adiando o meu silêncio.

Clarice Lispector
A paixão segundo G. H. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

O olhar psicológico me impacientava e me impacienta, é um instrumento, é um instrumento que só transpassa.

Clarice Lispector
A paixão segundo G. H. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

Se soubesses da solidão desses meus primeiros passos. Não se parecia com a solidão de uma pessoa. Era como se eu já tivesse morrido e desse sozinha os primeiros passos em outra vida. E era como se a essa solidão chamassem de glória, e também eu sabia que era uma glória e tremia toda nessa glória divina primária que, não só eu não compreendia, como profundamente não a queria.

Clarice Lispector
A paixão segundo G. H. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

É que as coisas simplesmente não eram do seu lado. Pensou uma bobagem: até sua pequena cara era de lado. Em esquina. Nem pensava se era bonita ou feia. Ela era óbvia.

Clarice Lispector
A bela e a fera. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.

Nota: Trecho do conto Um dia a menos.

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Engoli com alguma dor meu orgulho que sempre fora feroz, e aceitei humilde o que o destino me dava de esmola.

Clarice Lispector
Felicidade clandestina. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

Nota: Trecho do conto Restos do Carnaval.

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Como se visse alguém beber água e descobrisse que tinha sede, sede profunda e velha. Talvez fosse apenas falta de vida: estava vivendo menos do que podia e imaginava que sua sede pedisse inundações. Talvez apenas alguns goles... Ah, eis uma lição, eis uma lição, diria a tia: nunca ir adiante, nunca roubar antes de saber se o que você quer roubar existe em alguma parte honestamente reservado para você. Ou não? Roubar torna tudo mais valioso. O gosto do mal – mastigar vermelho, engolir fogo adocicado.

Clarice Lispector
Perto do coração selvagem. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

Definir a eternidade como uma quantidade maior que o tempo e maior mesmo do que o tempo que a mente humana pode suportar em ideia também não permitiria, ainda assim, alcançar sua duração. Sua qualidade era exatamente não ter quantidade, não ser mensurável e divisível porque tudo o que se podia medir e dividir tinha um princípio e um fim.

Clarice Lispector
Perto do coração selvagem. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

A vida humana é mais complexa: resume-se na busca do prazer, no seu temor, e sobretudo na insatisfação dos intervalos. [...] Toda ânsia é busca de prazer. Todo remorso, piedade, bondade, é o seu temor. Todo o desespero e as buscas de outros caminhos são a insatisfação.

Clarice Lispector
Perto do coração selvagem. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

Estou escrevendo porque não sei o que fazer de mim. Quer dizer: não sei o que fazer com meu espírito. O corpo informa muito.

Clarice Lispector
Um sopro de vida. Rio de Janeiro: Rocco, 2015.

Mas se eu não prestava, eu fora tudo o que aquele homem tivera naquele momento. Pelo menos uma vez ele teria que amar, e sem ser a ninguém – através de alguém.

Clarice Lispector
A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.

Nota: Trecho da crônica Noveleta (continuação).

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