Poemas de Clarice Lispector
Então isso era a felicidade. De início se sentiu vazia. Depois seus olhos ficaram úmidos: era felicidade, mas como sou mortal, como o amor pelo mundo me transcende. O amor pela vida mortal a assassinava docemente, aos poucos. E o que é que eu faço? Que faço da felicidade? Que faço dessa paz estranha e aguda, que já está começando a me doer como uma angústia, como um grande silêncio de espaços? A quem dou minha felicidade, que já está começando a me rasgar um pouco e me assusta.
Talvez eu agora soubesse que eu mesma jamais estaria à altura da vida, mas que minha vida estava à altura da vida. Eu não alcançaria jamais a minha raiz, mas minha raiz existia.
Enfim, enfim quebrara-se realmente o meu invólucro, e sem limite eu era. Por não ser, eu era. Até o fim daquilo que eu não era, eu era. O que não sou eu, eu sou. Tudo estará em mim, se eu não for; pois “eu” é apenas um dos espasmos instantâneos do mundo. Minha vida não tem sentido apenas humano, é muito maior – é tão maior que, em relação ao humano, não tem sentido.
Mas de mim depende eu vir livremente a ser o que fatalmente sou. Sou dona de minha fatalidade e, se eu decidir não cumpri-la, ficarei fora de minha natureza especificamente viva. Mas se eu cumprir meu núcleo neutro e vivo, então, dentro de minha espécie, estarei sendo especificamente humana.
Esquenta-me com a tua adivinhação de mim, compreende-me porque eu não estou me compreendendo. Estou somente amando a barata. E é um amor infernal.
Era fina, enviesada – sabe como, não é? –, cheia de poder. Tão rápida e áspera nas conclusões, tão independente e amarga que da primeira vez em que falamos chamei-a de bruta! Imagine... Ela riu, depois ficou séria. Naquele tempo eu me punha a imaginar o que ela faria de noite. Porque parecia impossível que ela dormisse.
Volto-me então para o meu rico nada interior. E grito: eu sinto, eu sofro, eu me alegro, eu me comovo. Só o meu enigma me interessa.
O pouco que sei não dá para compreender a vida, então a explicação está no que desconheço e que tenho a esperança de poder vir a conhecer um pouco mais.
O que me interessava sobretudo é sentir, acumular desejos, encher-me de mim mesmo. A realização abre-me, deixa-me vazio e saciado.
Até criar a verdade do que me aconteceu. Ah, será mais um grafismo que uma escrita, pois tento mais uma reprodução do que uma expressão.
Quem sabe eu tive de algum modo pressa de viver logo tudo o que eu tivesse a viver para que me sobrasse tempo de... de viver sem fatos? de viver. Cumpri cedo os deveres de meus sentidos, tive cedo e rapidamente dores e alegrias – para ficar depressa livre do meu destino humano menor? e ficar livre para buscar a minha tragédia.
E porque minha alma é tão ilimitada que já não é eu, e porque ela está tão além de mim – é que sempre sou remota a mim mesma, sou-me inalcançável como me é inalcançável um astro.
Sei agora qualquer coisa sobre os que procuram sentir para se saberem vivos. Caminhei também nessa viagem perigosa, tão pobre para nossa terrível ansiedade. E quase sempre decepcionante. Aprendi a fazer minha alma vibrar e sei que, enquanto isso, no mais profundo do próprio ser, pode-se permanecer vigilante e frio, apenas observando o espetáculo que a si mesmo se proporcionou. E quantas vezes quase com tédio...
Ele, a quem eu nada podia dar senão minha sinceridade, ele passou a ser uma acusação de minha pobreza.
Está faltando o sonho no que eu escrevo. Como viver é secreto! Meu segredo é a vida. Eu não conto a ninguém que estou viva.
Comecei a mentir por precaução, e ninguém me avisou do perigo de ser tão precavida; porque depois nunca mais a mentira descolou de mim. E tanto menti que comecei a mentir até a minha própria mentira. E isso – já atordoada eu sentia – isso era dizer a verdade. Até que decaí tanto que a mentira eu a dizia crua, simples, curta: eu dizia a verdade bruta.
Agora eu conheço esse grande susto de estar viva, tendo como único amparo exatamente o desamparo de estar viva. De estar viva – senti – terei que fazer o meu motivo e tema. Com delicada curiosidade, atenta à fome e à própria atenção, passei então a comer delicadamente viva os pedaços de pão.
Você não sabe que revelação foi para mim ter um cão, ver e sentir a matéria de que é feito um cão. É a coisa mais doce que eu já vi, o cão é de uma paciência para com a natureza impotente dele e para com a natureza incompreensível dos outros... E com os pequenos meios que ele tem, com uma burrice cheia de doçura, ele arranja modo de compreender a gente de um modo direto. Sobretudo Dilermando era uma coisa minha que eu não tinha que repartir com ninguém.
E sabe de algum modo obscuro que seus cabelos escorridos são de um náufrago. Porque sabe – sabe que fez um perigo. Um perigo tão antigo quanto o ser humano.
É por isso que na graça eu me mantive sentada, quieta, silenciosa. E como em uma anunciação. Não sendo porém precedida por anjos. Mas é como se o anjo da vida viesse me anunciar o mundo.