Poemas de Clarice Lispector

Ah, está se tornando difícil escrever. Porque sinto como ficarei de coração escuro ao constatar que, mesmo me agregando tão pouco à alegria, eu era de tal modo sedenta que um quase nada já me tornava uma menina feliz.

Clarice Lispector
Todos os contos. Rio de Janeiro: Rocco, 2016.

Nota: Trecho do conto Restos do carnaval.

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Sou feliz na hora errada. Infeliz quando todos dançam. Me disseram que os aleijados se rejubilam assim como me disseram que os cegos se alegram. É que os infelizes se compensam.

Clarice Lispector
Um sopro de vida. Rio de Janeiro: Rocco, 2015.

Todas as manhãs ela deixa os sonhos na cama, acorda e põe sua roupa de viver. Todas as manhãs ela caminha vagarosamente para pegar o ônibus que a levará para lugar nenhum, para ver ninguém. E todas as manhãs ela imagina como serão as tardes, já sabendo a resposta, finge ser feliz assim todas as manhãs. E todas as manhãs ela espera pela noite, ela espera assim arduamente para voltar para seu quarto, e ser triste. É quando ela sente que está assim completa. Completamente triste, mas completa. E quando ela tira a roupa e põe todo o seu corpo em baixo das cobertas quentes e sente que começa a sonhar, é quando ela sorri. Assim pra ninguém. Mas pra ela mesma. E viver vale a pena.

Clarice Lispector

Nota: Pensamento atribuído, autoria não confirmada.

Estou muito próxima, de um modo geral. É bom e não é bom. É que sinto falta de um silêncio. Eu era silenciosa. E agora me comunico, mesmo sem falar. Mas falta uma coisa. Eu vou tê-la. É uma espécie de liberdade, sem pedir licença a ninguém.

Clarice Lispector
A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.

Nota: Trecho da crônica Bolinhas.

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O não sentido das coisas me faz ter um sorriso de complacência. De certo tudo deve estar sendo o que é.

Clarice Lispector
Um sopro de vida. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1978.

Se você procura alguém coerente, sensata, politicamente correta, racional, cheia de moralismo… Esqueça-me! Se você sabe conviver... com pessoas intempestivas, emotivas, vulneráveis, amáveis, que explodem na emoção: acolha-me.

Clarice Lispector

Nota: Autoria não confirmada

Por enquanto há diálogo contigo. Depois será monólogo. Depois o silêncio. Sei que haverá uma ordem.

Clarice Lispector
Água viva. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

É que o mundo de fora também tem o seu “dentro”, daí a pergunta, daí os equívocos. O mundo de fora também é íntimo. Quem o trata com cerimônia e não o mistura a si mesmo, não o vive, e é quem realmente o considera “estranho” e “de fora”. A palavra “dicotomia” é uma das mais secas do dicionário.

Clarice Lispector
Rocha, E. Clarice Lispector. Série encontros. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2011.

E todos os dias ficarei tão alegre que incomodarei os outros, o que pouco me importa, já que eu tantas vezes sou incomodada pela alegria superficial e digestiva dos outros.

Clarice Lispector
Minhas queridas. Rio de Janeiro: Rocco, 2007.

Nota: Trecho de carta escrita em 29 de janeiro de 1945 a Elisa Lispector.

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Um domingo de tarde sozinha em casa dobrei-me em dois para a frente – como em dores de parto – e vi que a menina em mim estava morrendo. Nunca esquecerei esse domingo. Para cicatrizar levou dias. E eis-me aqui. Dura, silenciosa e heroica. Sem menina dentro de mim.

Clarice Lispector
A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.

O pior é que sou vice-versa e em ziguezague. Sou inconcludente. Mas é preciso me amar como involuntariamente sou. Apenas me responsabilizo pelo que há de voluntário em mim e que é muito pouco.

Clarice Lispector
Um sopro de vida. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.

Só que dessa não se morre. Mas tudo, menos a angústia, não? Quando o mal vem, o peito se torna estreito, e aquele reconhecível cheiro de poeira molhada naquela coisa que antes se chamava alma e agora não é chamada nada. E a falta de esperança na esperança. E conformar-se sem se resignar. Não se confessar a si próprio porque nem se tem mais o quê. Ou se tem e não se pode porque as palavras não viriam. Não ser o que realmente se é, e não se sabe o que realmente se é, só se sabe que não se está sendo. E então vem o desamparo de se estar vivo. Estou falando da angústia mesmo, do mal. Porque alguma angústia faz parte: o que é vivo, por ser vivo, se contrai.

Clarice Lispector
A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.

Nota: Crônica Angina pectoris da alma.

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Às vezes no amor ilícito está toda a pureza do corpo e alma, não abençoado por um padre, mas abençoado pelo próprio amor.

Clarice Lispector
A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.

Nota: Trecho da crônica A perigosa aventura de escrever.

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Frases que lhe saíam fáceis e incolores mas que em mim se cravavam, rápidas e agudas, para sempre.

Clarice Lispector
A bela e a fera. Rio de Janeiro: Rocco, 2015.

Numa experiência pela qual peço perdão a mim mesma, eu estava saindo do meu mundo e entrando no mundo.

Clarice Lispector
A paixão segundo G. H. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

Porque eu me imaginava mais forte. Porque eu fazia do amor um cálculo matemático errado: pensava que, somando as compreensões, eu amava. Não sabia que, somando as incompreensões, é que se ama verdadeiramente. Porque eu, só por ter tido carinho, pensei que amar é fácil. É porque eu não quis o amor solene, sem compreender que a solenidade ritualiza a incompreensão e a transforma em oferenda. E é também porque sempre fui de brigar muito, meu modo é brigando. É porque sempre tento chegar pelo meu modo. É porque ainda não sei ceder. É porque no fundo eu quero amar o que eu amaria – e não o que é. É porque ainda não sou eu mesma, e então o castigo é amar um mundo que não é ele. É também porque eu me ofendo à toa. É porque talvez eu precise que me digam com brutalidade, pois sou muito teimosa. É porque sou muito possessiva e então me foi perguntado com alguma ironia se eu também queria o rato para mim.

Clarice Lispector
Felicidade clandestina. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

Nota: Trecho do conto Perdoando Deus.

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Quando me surpreendo ao fundo do espelho assusto-me. Mal posso acreditar que tenho limites, que sou recortada e definida. Sinto-me espalhada no ar, pensando dentro das criaturas, vivendo nas coisas além de mim mesma. Quando me surpreendo ao espelho não me assusto porque me ache feia ou bonita. É que me descubro de outra qualidade. Depois de não me ver há muito quase esqueço que sou humana, esqueço meu passado e sou com a mesma libertação de fim e de consciência quanto uma coisa apenas viva. Também me surpreendo, os olhos abertos para o espelho pálido, de que haja tanta coisa em mim além do conhecido, tanta coisa sempre silenciosa.

Clarice Lispector
Perto do coração selvagem. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

Ah, meu amor, não tenhas medo da carência: ela é o nosso destino maior. O amor é tão mais fatal do que eu havia pensado, o amor é tão inerente quanto a própria carência, e nós somos garantidos por uma necessidade que se renovará continuamente. O amor já está, está sempre.

Clarice Lispector
LISPECTOR, C. A Paixão Segundo G. H. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

Pelas plantas dos pés subia um estremecimento de medo, o sussurro de que a terra poderia aprofundar-se. E de dentro erguiam-se certas borboletas batendo asas por todo o corpo.

Clarice Lispector
O lustre. Rio de Janeiro: Rocco, 2015.

Eu peço a Deus tudo o que eu quero e preciso. É o que me cabe. (...) Eu não tenho o poder. Tenho a prece.

Clarice Lispector
Um sopro de vida. Rio de Janeiro: Rocco, 2015.