Poesia Livro
"Quem reparte generosamente seus bens com outras pessoas se tornará cada vez mais rico; quem procura segurar mais dinheiro do que necessita acabará perdendo tudo"
Prov 11,24
O infinito
É mais que finito
Para quem sabe sonhar
As estrelas são contáveis
Para quem tem tempo
Para imaginar
É de cegar os olhos
Tanta massa e concreto
E velocidade
Da uma felicidade
Ir para o meio do mato
E saber que elas estão sempre ali
E sempre estiveram
Ganha-se tempo
Para perdê-lo
Que prazer enorme
Parar para recontar
Quantas estrelas tem no céu.§
Nasci
Nu da razão
Tenho muito para agradecer
A tantas pessoas.
Vestiram-me com amor
Com a arte da paciência
Ensinaram-me
Sobre a luz e as trevas
Ensinaram-me a caminhar
Gastaram seu tempo
Tempo é vida
E a cada gasto
Um pouquinho a mais que se morre.
Tenho tanto para agradecer
A tantas pessoas
Que sou o que sou
Graças a boa intenção
De muitos.§
Queria continuar um poema de Gullar
A Adélia falou que não,
Deixou claro que no trem não cabia,
Era sentimento demais.
Drummond concordou,
Falou que José era um chato e não gostava de passeio.
Pessoa chegou com Eros
E mostrou para Camões, que estava cansado do amor.
Neruda tentou ajudar,
Mas Wilde, com toda rebeldia,
Fez o poema correr.
Blake, com sabedoria,
Capturou tudo num pincel
E me deu de graça e sem explicação.
E eu flertei com a tinta,
Por causa de um sorriso. §
O meio fio
Que divide em dúvida a lembrança
Faz do homem um romeiro
O azedume
Fê-lo sério em brincadeira
Crente no in-crível
Ele acredita na vida velha
Deseja que sua tigela
Apague da barriga a ideia da fome
Na última estação
O passageiro espera
Que passe trem
Chamado esperança.§
Você que faz do ponto de ônibus
A sua sala de estar
Dos pedestres
Estranhos dentro de sua casa
Você que deseja
E não pode ter
Você que não tem idade para contrapor aos instintos corporais.
Você, sem tempo para semear sabedoria
Você que teme por sua saúde
Não tem em quem confiar e para onde ir
Você de sorriso banguela
De esperança cansada
Você de olhos sem brilho
Você medroso do assalto
Você que é parte do futuro
Você a quem o tempo não pertence
Você que vive só do presente
Você que não sonha
Você que deseja morar numa próxima estação
Que machuca sem saber
Você que é só pedra
Pra quem não quer te ver.§
A vida novamente bateu a minha porta
Para mostrar quem era.
Levou toda a minha tranquilidade
Que pensei ter conquistado para sempre.
Ela bateu a minha porta
Tomou conta da minha energia
Para mostrar de perto o meu drama.
Eu, homem formado,
Deitei na cama como um menino.
Porém, naquele momento,
O tempo tinha me levado muitas pessoas
Nem colo eu tinha
Olhei para a única coisa que me restava:
Uma janela.
Através dela eu vi o lixeiro,
Vi o vendedor e uma pessoa que atravessava a rua.
Num primeiro momento, tive pena da minha fragilidade.
Mas, a força da fé e da honra me fez levantar.
Com a humildade apreendida,
Pude fazer como homem:
Que mesmo sem saber o que fazer
Escuta seu coração
Sem perguntar por que bate.§
Se eu estivesse perdido
Gostaria que me achasse
Mesmo que eu estivesse escondido
Dentro do meu ser
Eu gostaria que me achasse.
A ilusão de que se está perdido
Vive no discurso de quem nunca se procurou.
Quem procura e não se encontra
Quer ser achado.
Mesmo que se pague com a esperança
O peso da ilusão.§
Olho para o lado
E vejo um monte de gente bacana
Tentando organizar a vida
Sem trabalho,
Flertando no amor
Se arriscando em coisas não duradouras.
Muitos assim.
Andar é importante
O que não pode é ficar parado.§
É muito fácil achar motivos para ficar triste,
Encontrar motivos para ser feliz é para poucos.
O que as pessoas tristes tem que aprender sobre a vida,
É que as pessoas guerreiras e alegres são uma lição de vida.§
Se nada mais me restasse
E eu estivesse no fundo do poço
Eu iria atrás de um sonhador
Qualquer um que fosse
E ficava ao seu lado
Perguntando a todo momento de seus sonhos
Eu fingiria que também sonhava
Pegava emprestado o sonho que eu não tinha
Faria isso repetidas vezes
Até que sem perceber, algum eu já teria:
Talvez lembrado dos antigos,
Talvez criado novos.
Não desistiria
Porque os sonhos são os alicerces do mundo
O motivo da sobrevivência
A causa da felicidade.§
Mãe
Algumas por acaso
Outras por escolha
Algumas sorrindo
Outras chorando
Algumas acompanhadas
Outras sozinhas
A mesma barriga
A mesma raça
O mesmo período
A mesma trajetória
Onde através da dor
Faz-se o parto
Onde das assas
Faz proteção
Cresce nu o filho
Num mundo já em movimento
Sem escola faz-se professora
De uma matéria hostil
Passa o tempo
Vão os filhos
E a maternidade fica
Como tatuagem
Estampa no rosto
Ser mãe:
Que coragem.§
Quando falaram que o mundo estava feito,
Eu pensei: O que vou construir?
Chorei.
Quando falaram que o mundo estava descoberto.
Eu pensei: O que vou descobrir?
Desesperei.
Enquanto caminhei,
Minhas convicções confirmaram
O mundo está cru, nu e cego
E estou no lugar certo.
Pensei:
Invente uma nova dança
Como se não soubesse do passado
Invente uma nova dança
Como se o tempo não fosse passar
Invente uma nova dança
E enquanto estiver em movimento
Ensine uma nova dança
Para os laços da memória
Para os fios dos sonhos
Invente uma nova dança
Que o outro possa dançar
Dance, dance muito
Dance esta nova dança
Enquanto puder
Para que possam aprender a dançar
Para que possam te ensinar
Quando você esquecer,
Como um sonhador
Que ensina a seu filho que nuvem pisar.
Assim, por mais que o cenário exija linearidade,
Prefira o movimento
Pois, onde há dança
Há vida.§
Patrimônio
Quando seu amor
Chegou a minha porta
Só a moldura havia
O meu dicionário perdeu a tradução de: individual, grade e solidão.
Dei-me ao luxo de acreditar no destino
Depois de tanta transformação
Pousei em certa estabilidade
Que só pode ser criada a dois.
Não pensei duas vezes
Em abrir mão de coisas do mundo
Que só alimentam uma juventude faminta
E aprendiz.
A palavra requinte
Eu carrego em minha agenda
Procuro pelos cantos
As coisas belas que podem ser compartilhadas
Na intimidade de dois.
Verei o tempo passar sobre nossas retinas fatigadas,
Imagino as nossas rugas
Mas peço a Deus para que eu possa sempre ver no fundo de seus olhos
A vitalidade que protege a metade do meu coração.
Que cada dia possa ser celebrado como o último.
Agradeço a você
Pela confiança em mim depositada neste matrimônio
Que me fala sobre essa coisa linda
Que é sonhar sobre o nosso futuro,
E porque não seria,
O futuro do mundo.§
Na minha juventude
Eu tinha vaidade
Usava chapéu de lebre
Minha esposa
Vestidos bordados
Quando vieram meus filhos
Deixei de importar comigo
E com as coisas de luxo
Fiquei simples
Pobre
Todo investimento
Se escoou para os primogênitos
Com o desapego
Aprendi a ser rico.§
Já que nos encontramos
Vamos fazer da nossa felicidade discreta
Para que não venha nos bater na porta os curiosos
Para que não venham medir o nosso amor
O nosso amor é sem medida
Vamos ser discretos
Para que nossos amigos não venham nos aconselhar
Para que as filosofias não nos alcancem
Vamos ser discretos como o silêncio
Que está em todos os lugares
Para que possamos ir no nosso ritmo
Sem que alguma máquina nos acelere
Vamos esconder tudo em nossos sorrisos
Vamos andar pelas ruas de mãos dadas
Presentear todo mundo
Para que saibam da felicidade
Vamos guardar no olhar a nossa gratidão
Para que ao olhar-nos
Saibam de nossa serenidade
Vamos sós
Porém em comunhão
Vamos discretos
Para que possamos ter o máximo
Do nosso amor
Que é só de nós dois.§
Não importa o que faça
Procure por um amor
Se está triste
Deprimido
Procure um amor
Posso garantir que ele existe
O amor a dois
Com alma e coração
Sei porque vivi
Procure o amor
Se for preciso
Refaça a fé
Acredite em outros santos
Noutros deuses
Em outras orações
Procure
Para viver
Para que ao acordar fique mais leve
Para poder compartilhar o café da tarde
Para ter com quem conversar fiado antes de dormir
Para poder acreditar em mais alguém
Eu que estava dormindo
Quando veio a poesia
Acordei, liguei a luz
Fui buscar a caneta que estava longe
Num quarto estava frio
Fiz tudo isso,
Porque acredito.§
Aquele que vai
Não sabe o por quê
Sai do jogo sem poder olhar para trás.
O que fica
Já não sabe
Mas finge que não vai
Pois, se fingisse saber
Jamais viveria.§
Sobre a oração
As palavras de nada valem se o coração não estiver presente e desperto em cada sílaba. E quando o coração não está presente e desperto, melhor é que a língua durma ou que se esconda atrás dos lábios fechados.
Nem precisais de templos para orardes.
Quem não pode encontrar um templo em seu coração, jamais encontrará seu coração num templo.
Minha alma tem rasgos
Tem vergões
das chibatadas do tempo.
Tem espaços não visíveis
doloridos de silêncio.
Tem incertezas tão certas.
Veredas abertas
e vontades invencíveis
que não nasceram ainda.
Tem desconfianças
de que o sonho é findo,
mas reinventa o meu céu de utopia
que todo o não crer
expia.
NARA RÚBIA RIBEIRO
Do livro "Pazes", no prelo.
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