Poesia Completa e Prosa
O Som do meu Violino
Marcas petrificadas
que evocam fantasmas
de um tempo perdido
(enterrado),
que anuncia a música da renovação.
Assim, toco a minha música
sem a tal mágoa;
transfigurada ao som do meu violino
libertador e divino.
Sim, a música silencia as dores
recolhidas nas asas feridas,
e cada nota sublime
harmoniza o impulso para o voo.
Fico ao Som do Meu Violino.
Ao som do meu violino fico
E a melodia é de paz.
Fico no silêncio profundo
vestido de mim.
Às vezes silencio diante do mundo,
Às vezes silencio diante das pessoas.
Há uma quietude que não me perturba,
há uma solidão que me cabe;
uma caminhada bem longe de mim,
um perto que só eu conheço.
E fico ao som do meu violino...
(Suzete Brainer do Livro: Trago folhas por dentro do silêncio que me acende)
Quantos corações poetas vivem apreendidos em corpos racionais?
Quantas mentes racionais mataram corações poetas?
Quanto de um poeta vive na razão de uma mente?
Quanta razão existe no coração de um poeta apreendido?
Quantos poetas libertos existem sem uma razão?
Quanta razão há em ter razão e viver sem poesia?
Quanta poesia morta ainda vive em seu coração?
Um/Uma
Um Simples Gesto
Um Café da Manha
Uma risada sincera
Uma aventura na praia
Uma família à espera
Um jogo qualquer
Um almoço corrido
Uma noite de jogos
Uma surpresa agradável
Uma virada com fogos
Um abraço apertado
Um conselho gentil
Uma viagem inesperada
Uma sessão de cinema
Uma bela morada
Um rapaz tímido
Um paizão incrível
Uma pequena linda
Uma mãe perfeita
Uma família unida
A Girafa
Olhando para o horizonte
O tempo passa, muda a estação
Enxerga folha, arvore, bicho e chuva
Nada escapa sua visão
Alcançando tudo e todos
Com olhar sempre gentil
Observa as coisas boas
E até o amor que partiu
Defensora de si mesma
Sem atacar ninguém
Não precisa de presas e garras
Sua força vai muito além
Já não se incomoda mais
A não ser com sua família
Não se incomoda mais
A não ser com sua cria
Indo sempre adiante
Nada pode te deter
A Girafa sabe o que fazer
Num segundo a Vida se vai
Num passo tudo vira lembrança
Num Gesto o amor vira dor
O sorriso vira saudade
E o sentimento banalidade
Num segundo seus olhos já não estão mais sobre os meus
Suas mãos já não tateiam mais meu rosto
E sua ausência traz um vazio enorme dentro de mim
Ah, que Saudade.
Eu queria que durasse para sempre
Mas um dia a gente aprende
Que o que é para sempre são as memórias
De momentos únicos em que vivemos,
Enquanto vamos escrevendo nossa história
A vida não é o corpo respirando
Não é a alma habitando
A vida é o que fazemos e o que somos
Enquanto o corpo respira e a alma habita
Muitos morrem e continuam vivos
Outros vivem como se nunca tivessem morrido.
O mais difícil dos perdões é aquele que temos que dar a nós mesmos.
É imperdoável deixar que nossos medos nos tranquem o coração.
Errar faz parte do aprendizado.
Que o erro vire lição,
E que a gente aprenda a recomeçar.
É tempo de tomar atitudes que nos transformem de verdade por dentro.
Felicidade não pula janela: temos que abrir as portas para ela entrar.
Ouso querer
Quero me amar o suficiente para não me permitir viver ilegitimemente
Quero viver o suficiente para ter tempo de existir tão somente
Quero viajar, desbravar e conhecer os lugares mais escondidos em mim
Quero cultivar, quero florescer, quero frutificar para além de mim
Deus, dá-me ousadia para me esvaziar, sem deixar escapar a obra que já fizeste em mim
Deus, busco encontrar-me serva apenas de Ti para que eu possa ser livre enfim
Permita-se
Ser feliz é difícil
Gera incômodo
Pesa em que não é leve
Mas permita-se mesmo assim.
Seja feliz por hoje
Ser feliz pelo ontem
Serás feliz amanhã
Felicidade deveria ser;
Cotidianamente;
Conjugada.
Fique leve,
Seja leve,
Leve o que é leve
O que não é releve.
Pensa, isso
Repensa no seu destino
Planeje a jornada
Viva cada passo
Celebre cada caminhada
Permita-se.
Permitir é verbo,
Conjugue-o
E então serás leve,
Se,
Permita-se
Ser,
Feliz.
Agosto no Cio
Nuvens vermelhas flutuam baixo. As circunstâncias atmosféricas do mês de agosto facilitam sua formação em níveis vulneráveis à sensualidade humana, absorvendo as gotículas de sangue lançadas ao ar enquanto vociferamos nossos temores, nossas aflições, paixões, fúrias e desejos, sangrando como fêmeas férteis cujos óvulos não foram fecundados.
Noites longas, frias e densas. Eis nossos corpos envoltos pela nebulosa encarniçada: entramos no cio e a grande fera sopra seu vapor sanguinário no deserto.,
Hei, Senhor Lupino! Abandone seu covil e venha me pegar!
[...]
Sinto seu hálito, seus beijos, sua língua úmida descendo por meu pescoço, minhas costas, meus seios, minha barriga, meu templo.
Gemidos, sussurros: a heresia de uma fase lunar personificada pela condensação de nossos instintos carnívoros.
Seus lábios macios sugam o fluido ferruginoso que verte de minhas nascentes em resposta à efervescência de suas carícias sinuosas.
Sua fera pulsa entre minhas coxas.
E eu sei: o Deus-homem nunca morreu.
Cifras
O grito veio do fundo mudo
e ecoou oco, aos poucos.
Não era um grito de susto,
não era um grito de raiva,
tampouco era um grito de empolgação ou de alegria.
Era, sim, um grito ressentido;
era, sim, um grito gritado para que todas as lágrimas fossem choradas.
O mais belo de todos os gritos,
feito de um fôlego só,
de uma só dor,
Ade uma dor só,
“Não que desafio me traga cansaço,
que riso me dá o desafio,
e que pressão consome o riso,
que força me traz a pressão.
Me fortalece toda essa força,
que surge da alma vibrante,
que abraça cada momento,
e que momento me leva a vencer,
e que vencer me dá esse cansaço,
e que cansaço é minha vitória.”
O PAREDÃO MARIANO
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Os anjos libertadores,
incumbidos de trazer a chave da Sociedade Livre,
morreram todos no Paredão Mariano.
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Não me lembro se foram fuzilados,
se fluíram por um corte na garganta,
ou se alguns morreram de gripe...
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O que sei é que sua marca ficou nos muros
que foram pichados pelas cidades
de países passados e futuros.
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Os anjos libertadores
morreram por uma venda
no Paredão Mariano.
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O Paredão Mariano não existe.
Sua pedra e sua largura
são por conta da imaginação do poeta;
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mas sua imagem me veio tão nítida,
como se fosse o sonho de um pesadelo vivo,
que herdei o desespero dos condenados.
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O Paredão Mariano:
a dureza das suas paredes frias
... o horizonte de metralhadoras e fuzis
prestes a roubar a vida.
..
O Paredão Mariano não existe:
sua pedra e sua largura
são ficções de um poeta louco.
.
Não há registro histórico;
mas seus olhos me gritam tanto,
e sonhar é tão pouco...
.
O que foi feito dos anjos libertadores
diante do horizonte de metralhadoras?
Em forma de brilhos, terão sobrevivido?
.
Será que, em música, foram convertidos,
e hoje trilham no céu noturno
o leite alegre das estrelas?
.
E o Paredão Mariano, que não existe?
.
Existirá, por ventura,
em algum ponto da memória
de futuros torturadores?
.
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[BARROS, José D'Assunção. Sintonia Fina, 2022]]
TRISTEZA MARAVILHOSA
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Rio de Janeiro,
sob teu corpo de concreto
teu santo padroeiro
dorme, como um feto.
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Ainda não nasceu, teu santo,
ainda é cedo para o milagre;
e a lágrima doce do teu pranto
não é vinho, é só vinagre.
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Baía de Guanabara,
como mente o teu postal.
Vejo fome em pau-de-arara
sob a camada social.
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Queria entender teu segredo,
tua miséria, tua mentira;
mas o que vejo é o degredo
que escapa da tua mira.
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Seres humanos migratórios
compelidos à mudança
cujos mortos compulsórios
são produtos da esperança.
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Rio, Deus te abençoe,
e do alto do Corcovado
em pedra o Cristo nos perdoe
por teu índio dizimado.
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Cidade Maravilhosa,
herança dos guaranis...
na tua culpa misteriosa
guarda a lembrança dos brasis.
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Rio, cidade poesia,
olha teu negro na construção;
não lhe conceda alforria:
tu és a própria escravidão.
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Rio, alguém que tardia
espreita em teu carnaval;
sobre a tua fantasia
jaz a beleza de um postal.
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Rio de Janeiro,
teu caminho não é reto;
ao sul do teu cruzeiro,
um voto vira um veto.
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Ainda não nasceu teu quebranto,
ainda é cedo para o céu;
e a cachaça do pai de santo,
não é néctar, é só mel.
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[BARROS, José D'Assunção. Publicado na revista Insurgência, 2023]
MISTÉRIO DAS ESTRELAS
Se há mistério no mundo,
digo-lhe às estrelas,
que se mostram e se escondem.
Correm elas da alegria justa e
se entregam as tristezas vãs.
Ah quanto mistério, carregam as
estrelas... Ardem ao desprezo
e se enturvam ao regozijo verdadeiro.
De todo modo aos astros não se impõe regras, pois preferível
a liberdade é, de quem vai e vem. Do que se pode e do que se tem,
restam apenas o mistério da vida, qual se carrega alguém.
Título: Eco sem nome
Estava indo tudo bem, até que…começou a tocar essa música
Minha voz foi cortada pelo silêncio
Apenas um instrumental repleto de sentimento.
E eu celebrei a nostalgia, como se nunca a tivesse vivido, não prometendo algo a mim mesmo,
Mas, rasgando-me no deserto das horas
(silenciosas)
Busco a não paz, o eco da saudade que se faz e desfaz.
Porque relembrando o momento cotidiano da minha criança interior,
Revivi várias promessas,
que eu negociei com penhor.
As forças de um pescador
Não eram as de um sujeito qualquer,
Eram as forças de um senhor, as memórias de um baiano,
Que se dizia meu avô.
Isso é excentricidade dos poetas.
É o eixo do corpo carregado de nostalgia e constância de alma,
É o pulsar de um coração de areia,
Levado pelo vento, levado pela força espiritual,
E isso talvez seja o caso, pois o ontem é um fantasma sem nome.
Mas o fantasma não é invisível?
É sim por isso mesmo que fica no coração.
Exceto se você for uma sombra do dia anterior,
Uma miragem a ser temida, mas nunca tocada.
O que me importa, é ser uma versão diferente de mim mesmo,
Assim como no espelho quebrado do agora,
Que mesmo fragmentado mostra como eu sou.
Estava indo tudo bem, até que…
Começou a tocar essa música de novo
Domingo à noite
São meios de encarar essa escuridão
ZZZ então surge Zollim, Zollim é a voz do coração
Zollim é sentimento, Zollim é a melodia única,
Que diz sobre a emoção
Que celebra o movimento,
Que celebra o invisível ao palpável,
Transformando sombras em saudades,
E a ansiedade do domingo, em uma obra-prima.
A JANELA
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(ou: Homenagem aos Historiadores)
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Olha pela janela...
Lá vai o primeiro homo habilis
a caminhar, ainda trôpego, sobre a Terra.
E ali está a mulher
– bem mais inteligente que os machos
de sua espécie –
a jogar no solo a gentil semente
pronta a germinar o milagre da revolução agrícola.
Espia! Aquele artesão acaba de mover a pioneira pedra
para fundar a primeira das cidades,
e não está longe o que inventou a roda
– ela... tão surpreendente na sua genial obviedade.
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Espicha agora o teu olho longo
pela paisagem infinda...
Percebeste César,
à beira de um riacho,
discursando para os leais soldados?
Ele atravessa agora o seu rubicão,
marcha sobre Roma,
proclama-se Ditador,
e recebe as vinte e três facadas.
E logo ali vem Cleópatra,
tão perto no espaço-tempo
– com seu olhar anacrônico
e seu sorriso à Liz Taylor.
Ela o seduz, mesmo num saco de estopa,
enquanto, no mesmo gesto, já concebe seu filho
– egípcio e romano –,
e morre... ao chacoalhar das serpentes.
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Quanto a ti, a tudo contemplas,
em um único relance,
bem ali: sob a janela.
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Não... não chores, Historiador...
Tu vês a peste negra?
Sentes seu odor da morte se elevar aos ares?
Ouves o som surpreendente dos cacos de vidros
a quebrar o silêncio na noite dos cristais?
Sofreste agora aquela profunda fisgada
da bala que encontrou Guevara?
Pranteias pelos primeiros desmatamentos,
e és fustigado por cada açoite lancinante
nos ombros de todo escravo?
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Mas tu podes ver o florescer de um movimento verde
que salvará as baleias e micos-dourados
ao som de canções medievais
entoadas pelos trovadores árabes e cristãos.
Tu – mais do que todos – podes ver os homens e mulheres de pela preta
em sua luta diária pela liberdade,
a fundar quilombos e universidades,
a vencer o preconceito insano!
És tu que podes ver, em Luís Gama, um tanto de Zumbi
– e, para além do herói, o homem humano!
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Tu viveste, há dois segundos do nosso próprio tempo,
todos os sonhos de igualdade, de uma só vez!
E, se tu viste as ditaduras de todos os tempos se erguerem
em um único e cruel movimento,
também assististe à derrocada de todas elas.
Tu és privilegiado, Historiador...
Somente tu, junto aos artistas, viajas tão à vontade pelo tempo
antes da invenção das máquinas de viajar no tempo.
És tu aquele que olha atento
e intrigado pela janela
onde tudo se estende à espera de novos olhares.
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Lá estão as fontes históricas
– estes passados tão presentes –
todas tão ansiosas pelas perguntas que farás
às suas páginas por vezes bolorentas,
aos tratados de guerra e paz,
aos diários anônimos e secretos,
à sua matéria mais despretensiosa...
.
Ali estão as fontes, ao pé da tua janela
– as mesmas que aguardam, com solenidade ou displicência,
as perguntas que farás aos decretos e receitas de bolo,
aos jornais oficiais e clandestinos,
às cidades acima e abaixo da terra,
aos sulcos deixados na terra pelos camponeses;
ou, por fim, à lança de pedra que foi lascada
pelo primeiro homo habilis
a caminhar por sobre a Terra.
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Vai, Historiador...
Olha pela janela
e age na história
de tua própria época.
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[BARROS, José D'Assunção. Revista Cronos, vol.23, nº2, 2023]
TODAS AS FORMAS DA ESCRAVIDÃO
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Desde que somos país, já estava aqui este povo,
contraparte de sua carne, de sua alma e seus valores.
O último deles aqui chegou – proibido, em contrabando.
As correntes – do mar e ferro – trouxeram-no quase ao fim
da forma antiga da escravidão.
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Talvez fosse mulher, talvez homem...
Vou supor seu retrato: porém, jamais revelado;
vou pensar o seu corpo: ferido-acorrentado.
Para nome, darei Maria,
para não dizer que é João.
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Vocês queriam canções: doce-brancas como açúcar...
Mas, do oceano que lambe as praias, eu só quero falar destas gentes:
dos males que lhes fizeram, do pouco que lhes demos, do tanto
que lhes devemos
(vou me ater, no entanto, a Maria – aos seus filhos e pentanetos
Vou lhes seguir cada passo, geração a geração).
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Deste povo, “Todas e Todos”,
todos nós temos um pouco.
Levante a primeira gota quem souber ou achar que não,
e depois disso se cale, ou se vá para a Grande Casa,
se não se sentir como irmão.
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Primeiro nasceu Pedro, já depois da Abolição.
Filho enfim liberto de Maria, quase ficou famoso
por ser primo do já célebre Operário em Construção.
Mas não encontrou trabalho,
e, por isso, roubou um pão.
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Foi linchado em via pública
por gente de bom coração,
e isso na mesma época, em que num país mais ao norte
– entoando canções patriotas – matava-se à contramão.
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Pedro, coitado, nascera
na Era dos Linchamentos.
Já longe, entregue ao rio dos tempos,
ia-se a Era Primeira – a da velha Escravidão.
Ao norte, matava-se à farta – aqui, por um pouco de pão.
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Mas então nasceu Jorge – de uma nova geração.
Chamaram-lhe para uma guerra, para defender o país
dos tais fascistas que nos queriam impor outra escravidão.
Como neto tão direto de Maria, não lhe deram qualquer patente,
mas lhe atribuíram missão: deveria buscar minas (quando fosse a folga
de ser bucha de canhão).
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Em um passo em falso, pisou na morte!
Não teve sequer a sorte – o bravo soldado forte –
de merecer uma Missa Breve, ou de ganhar um monumento
(“É um pracinha desconhecido, de fato, mas não é da cor que queremos;
o mármore que temos é branco, passemos a honra ao próximo:
eis aqui a solução”).
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Iam-se os tempos da Escravidão,
fora-se a Era dos Linchamentos,
acabara (de acabar) a Idade da Desrazão.
Abria-se novo momento: A Era-Segregação!
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Datam de então as Favelas
tão próprias para todos; mas especialmente talhadas
para os bisnetos de Maria.
E ali, no calor de um dia,
nascia o nosso João:
finalmente um João!
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Pouco sabemos dele
por falta de documentos.
Dizem que morreu das meninges
no mais duro chumbo dos anos tristes,
na época em que a doença – proibida nos jornais –
aceitava a segregação.
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Só sabemos que foi pai
do Trineto herdeiro de Maria.
Este, por falta de qualquer emprego,
e por vergonha de pedir esmola,
tornou-se um bom ladrão.
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Roubava dos ricos para dar a pobres,
ainda que nem precisasse tanto:
seu destino já fora traçado,
indiferente à profissão,
nesta Era da Prisão.
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Também ele deixou filho
– o brilhante e sábio Tetraneto de Maria –.
A vida deste bateu na trave: quase recebeu a cota!
Mas então soube que já chegava
a Era da Assombração.
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[BARROS, José D'Assunção. publicado na revista Ensaios, 2024].
O REFUGIADO A NADO
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O sal das lágrimas
misturava-se ao das águas:
só queria vida, só queria um chão.
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Mas encontrou as armas, nas mãos de um guarda.
Encontrou o exército, de todos os países do mundo,
e a serviço de todas as burocracias do Universo.
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Ele pedia um lugar, e implorava pão;
mas encontrou um muro,
para além dos muros
(não bastassem as águas
contra as quais nadava).
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O Refugiado a Nado
construiu seu escafandro
com garrafas e boias de plástico.
Conseguiu quebrar a violência das ondas...
Mas não conseguiu derreter o coração das autoridades.
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Duros, e como a um peixe, devolveram-no ao mar
– ao mar da morte, e da vida em morte –:
ao mar cinza dos apátridas
a quem não se quer.
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Devolveram-no
– ao Refugiado a Nado –,
como se nunca o tivessem recebido.
Entregaram-no àquela vasta extensão de oceano
– desoladora, fria, e muito mais implacável –
para além do Mediterrâneo,
e de todos os mares:
para aquém da Terra.
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Depois que ele se foi,
como se não tivesse chegado,
rasgaram sua presença como uma foto incômoda.
No fim, os noticiários o deglutiram ao avesso
como uma fome indigesta...
qual mera curiosidade
para sessão da tarde
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[BARROS, José D'Assunção. Publicado na revista Crioula, nª31, 2023]
DEUS É BRASILEIRO
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Dizem que Deus é brasileiro
(que se desespera,
que também não mora,
que também tem fome,
que a si mesmo come).
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Dizem que Deus é brasileiro:
que gosta de samba,
que gosta de praia
(que também não fala,
que também se cala).
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Dizem que Deus (foi) brasileiro...
Morreu aos cinco anos de idade,
quando era uma criança retirante
– cumprindo a taxa de mortalidade.
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[[BARROS, José D'Assunção. Publicado na revista Insurgência, 2021]
O ANALFABETO POÉTICO
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Em meio à fauna amorfa dos que não sentem,
ali está ele – com seu ódio tão peculiar.
A Fome dos outros não o comove;
a Injustiça não lhe diz respeito...
A Guerra? Não lhe tira sono.
Mas a Poesia, isto sim...
Como o incomoda!
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O Analfabeto Poético
diz que só quer viver a vida,
mas não percebe que a vida viva
depende crucialmente da poesia.
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Vaidoso, ele estufa o seu peito esnobe,
orgulhoso de sua pretensiosa racionalidade;
sem impedir que se inflame a barriga infame,
deixa à vista o seu vasto vazio de sentimentos.
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Lá vai ele, vestindo o rosto com seu riso bobo,
suspenso por um fio fino, e tão previsível.
Sempre pela mesma estrada!
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Zomba dos que sentem,
despreza os que fazem versos,
e nunca amou as mulheres
(no máximo,
intrometeu-se entre elas).
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O Analfabeto Poético
admite a Política, mas não a Poética;
Não sabe que a verdadeira Política
nutre-se intimamente da Poesia.
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Ele pretende mudar o mundo
com pequenas operações cirúrgicas,
a golpe das mais descuidadas marteladas,
ou com a triste frieza das canetas tecnocráticas;
mas não tem a sensibilidade poética para perceber
o que precisa ser mudado.
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O Analfabeto Poético, bem armado e mal amado,
reconhece a Ciência, mas não a Poesia.
Não compreende que não há ciência
sem que esta tenha em si poesia.
(Em sua matemática rústica,
ele confunde ciência
com tecnologia).
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Sabe talvez ganhar dinheiro, o Analfabeto Poético.
E o reverte para ganhar ainda + mais dinheiro +.
O que tem tudo isso a ver com a Poesia?
Ele pergunta, sem desejar resposta...
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Pede o prato mais caro, sem capacidade de saborear.
Compra um sistema de som de alta fidelidade
sem ter nenhum gosto para a Música.
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Ouviu falar das mulheres belas
e por isso deseja comprá-las
para exibi-las a outros como ele.
Quando sucede aparentemente tê-las,
não consegue extrair delas um simples sorriso
realmente verdadeiro.
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Ele não percebe que, para que a luz do sol adentre
a inexistente janela da sala de pregões da Bolsa de Valores,
é preciso ter capacidade poética para perceber a luz, para além da luz.
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O Analfabeto Poético declara-se um homem prático...
Por sua vontade, seriam abolidos os livros
que não fossem tratados ou manuais.
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Por ele não haveria música,
não fluiria o pranto,
não transbordaria o riso...
que não fosse mero deboche.
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Munido de algumas frases,
para dizer nas horas mais erradas,
lá se vai ele para a sua ruidosa festa.
Nela, o Analfabeto Poético dissolve-se
em meio a todas as banalidades.
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(1990. Dedicado à genial obra poética, dramatúrgica ensaística e política de Bertolt Brecht).
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[BARROS, José D'Assunção. Publicado na revista Cronos, vol22, nº1, 2021]