Poesia Completa e Prosa
DIAFANEIDADE
De João Batista do Lago
Essa vontade de potência rege a vida
Transmigrando almas para novas essências
Transgredindo toda a inútil moral servida
Nos banquetes de vetustas inconsciências
Essa moral enfatuada por certo é morte
Da sublime nobreza que sempre te reluz
Deseja enganar-te… quer ser litisconsorte
Oferecer-te a alcova que a tudo reduz
Foge de tão loucas e insensatas promessas
Jamais te deixará alcançar toda virtude
Roubará por certo o vigor da juventude
Corolário supremo de toda verdade
Que te premia a carne-vida desde o princípio
Alma pura retornarás se te cuidares
O Rio
nasce na minha porta
- preenchendo toda aorta -
um rio
de água negra
e fervente
que corre alheio
corta ao meio
e quebra
a paz e jaz
o silêncio
enquanto segue selvagem
o veio pulsante
e febril
transborda a margem
a forte corrente
transpassa a mata
e mata
de repente
deságua em guerra
em um mar calmo
esse rio
- lágrimas da alma -
inundando cada palmo
invadindo a terra
a sala
o peito, a mala
me afogo dia a dia
no rio de minh’alma
Novos Conselhos para uma Vida Riquíssima
Espalhe gratidão enquanto houver amizade
E de ninguém deseje a piedade
Hasteie sua felicidade como uma grande bandeira
E diga a verdade de qualquer maneira
Distribua sua gargalhada entre os boçais
E tire para dançar os anormais
Tenha desprendimento pelo material
E leve sua cama para o quintal
Seja amor enquanto todos são razão
E aos sentimentos saiba dar vazão
Mostre o que vai além do espelho
E não se torne um jovem velho
Da arrogância não vista a fantasia
E não fique à sombra de uma relação vazia
Abrace seus sonhos com determinação
E enxergue com os olhos do coração
Seja como a chuva em um chão que agoniza
Faça brotar vida que você se eterniza
Isso é o Mundo Inteiro!
nessa lembrança meio dormente
onde deixei meu coração descansar
estranhamente firmou-se a paz
talvez seja algo que o vento trouxe
ou seu cheiro num sonho que não se desfaz
tudo vem tão rápido e tudo passa
simplesmente
suba em uma árvore e fume um paieiro
isso é o mundo inteiro
caminhamos por trilhas
andamos milhas
mas somos ilhas
não se distancie ao toque
peça, grite, soque
mas não se entoque
os maiores ausentes
estão sempre presentes
e compartilham com a gente
a poeira da serra pinta o céu
e o sol veste um vermelho véu
todo entardecer leva algo meu
em um horizonte que sempre foi seu
Sobre a Distância e Outras Coisas
todos os dias morrem em mim infinitas estações
veladas em um templo transparente e quebradiço
de ausência entre os segundos e todas as horas
há um certo terror pelos cálices que não te calam
e pelos beijos que não te banham os lábios
não acredita em distância o pássaro que voa alto
e nós também voamos alto, só que pra dentro
e igualmente fizemos da leveza libertação
mas deixe o pássaro, o passado e esqueça tudo
ainda longe posso acender a vela do teu coração
e reconhecer teu olhar descalço
a intensidade da voz e o calor da alma
e dizer bem suavemente em teu ouvido
que eu atravessei essa ponte em oração
sim, veio a destempo e passo a passo
hoje, tudo de ontem ficou sem graça
incendiou a casa, me empurrou do penhasco
rasgou as palavras pra falar em silêncio
sem artifício ou prenúncio
agora, percorrem minhas veias espaços sem retas
- me moldei em suas curvas -
sem dilemas e restos
apenas lembranças florescidas em pequenos detalhes
um afago adequado, um assanho ousado
o próprio despudor, tomado de assalto
e o amor, vestido de salto
Uma Réstia de Luz
Sou eu nada
Além de um pouco de tudo
Do que você me deixou ser:
Um deserto de horas intermináveis
Somente um pouco de tudo
Do que você me deixou ter:
Sua respiração esquecida e ritmada
No meu peito
De algum tempo
De algum lugar
Eu trouxe uma lasca de tua existência
Comigo
Uma réstia de luz do teu olhar
Um pedaço de tua alma
E agora
Ver-te já não basta
Você se tornou outro sol
E outra lua
E não há amanhecer
Ou entardecer sem a presença tua
Nos Teus Olhos
Nos teus olhos não há inverno
ou outono
ou tom
que não tenha prazer
e lágrimas de morrer
por um anseio secreto
Nos teus olhos é sempre primavera
e há sempre uma vela
acesa
com o desejo à mesa
servido antes do café
com toda a fé
ardente
no que não se entende
Nos teus olhos existem caminhos sem volta
há abismos e precipícios
profundos
de dois mundos
que buscam se encontrar
há minha sede de amar
e teu vício de estar
Domingo Depois do Amor
Já semeei as pequenas mudas de arco-íris
em nosso céu de nuvens férteis e selvagens
Roubei dos vizinhos as roupas dos varais
pra reservar mais espaço aos passarinhos
Tingi minhas palavras de poeta e sonhador
com os odores de um jardim em flor
Também bordei girassóis nos lençóis
pra clarear nossas noites de insônia
Recordei aventuras e inventei estórias
pra tentar adormecer sua alma cansada
As mãos dadas, os pés selados...
o sopro de duas vidas que jamais será tirado
Fitamos o abismo e continuamos a brincar:
nada apagará a ansiosa paixão no olhar
Daqui de Cima
Daqui de cima te vejo com clareza:
ansiedade e desenvoltura.
Você está linda e sorri como uma criança feliz.
Daqui de cima seu olhar parece mais atento,
parece buscar a aventura sem perder o momento,
como os olhos de um predador.
Daqui de cima tudo parece estar em um movimento sincronizado:
tudo se encontra e se despede sem receio ou dor.
Há uma dose de justiça em cada queda
e uma força incansável que faz recomeçar.
Daqui de cima vejo o caminho
e ouço uma doce canção que enternece meu coração.
Daqui de cima até o ataque fatal de um crocodilo é bonito,
assim como é tênue a dor da presa.
Daqui de cima,
sobre a névoa turva que cobria meus ombros e me cegava,
a vida encontra seu lugar através de pequenos gestos
de amor e caridade,
que ecoam como uma prece que se faz em silêncio.
Daqui de cima eu te vejo e te cuido
e te aguardo serenamente,
para beijar sua alma inquieta sem argumento,
no seu tempo.
A Notícia
O telejornal começou com a instigante notícia:
_ A ciência explica o amor!
O jornalista ainda disse com pesar em seu discurso:
_ Para a tristeza dos poetas, cientistas afirmam que o amor nada mais é do que uma cadeia de reações químicas do cérebro...
Podre jornalista. Pobre notícia. Pobres cientistas.
Como poderiam os cientistas decifrar o amor se ainda nem conseguiram explicar a existência dos dragões?
Ora, o que sabem esses cientistas se nunca cavalgaram em um unicórnio ou discutiram sobre os Guadalupes?
Eles nem mesmo puderam descobrir onde moram as fadas e os duendes e nunca escreveram para o Papai Noel. Pobres cientistas!
Aliás, eles nunca se pronunciaram sobre as intervenções salvadoras dos anjos da guarda ou sobre os olhos atentos de São Longuinho.
Por acaso esses sujeitos já viram extraterrestres ou se assustaram com fantasmas? Então como seriam confiáveis?
Podres cientistas que nunca puderam falar com Deus através do amor.
Podres cientistas que amam por reações químicas cerebrais.
Podres cientistas que nunca puderam amar, simplesmente.
Pobres cientistas que se preocupam em explicar o amor.
Afinal, quem disse que o amor pede explicação?
O Vinho
O vinho é o maior amigo do amor
E o melhor remédio pra dor
Se faz, se refaz: é transformador
E à vida empresta cor
Respira, transpira...
Transita no silêncio e inspira
O vinho carrega o cheiro da saudade
E a sofisticação da verdade
Como a mulher é paixão e mais nada
O vinho é poesia engarrafada
Para que seu Sonho nos Guie
Desejo que sua busca obtenha resposta,
que sua luta possua um propósito
e que seu amor alcance a paz.
Desejo que sua palavra ache a melodia
e que sua fome nunca se sacie,
para que seu sonho nos guie.
Desejo que você tenha amigos
e que a amizade renasça em cada abraço
e seja um acalento para o seu coração.
Desejo que seu dom ecoe e
que não destoe ou se perca na soberba.
Desejo que sua vitória não almeje glória
ou apenas se sobressair por vaidade.
Desejo que sua fé encontre Deus
e que Ele te reconheça
para que a esperança prevaleça.
A Minha Alma I
A minha alma tenta se encaixar,
mas não reconhece o seu lugar.
A meu ver, não pretende ficar.
É que ela se fere ao flertar
com a vida
em uma conversa despretensiosa
ou assistindo a bela mulher que passa ansiosa
ou em qualquer despedida.
A minha alma não se acalma!
Minha alma é assim:
ela voa como um abutre
em círculos sobre mim,
olhos atentos espreitando a morte
e desejando a sorte
de ser livre, enfim.
O meu corpo não tem alma,
é minha alma que tem um corpo.
E, não fosse por ele,
estaria por aí, agora calma,
sentada em um galho torto
de uma grande árvore, sob um céu dormente.
Quem sabe?
Talvez tivesse se tornado outra lua
ou aberto uma rua
entre nós, entre todos. Em um segundo
ela teria achado um corpo que lhe cabe,
do tamanho do mundo.
É que minha alma não se acalma,
anseia o combate,
quer se lavar na lama
de Marte.
Minha alma é como um soneto
pulsante.
Intriga como um lugar incerto
e distante.
Instiga como o suave gemido
da amante.
Os Santos que Você Invoca
Eu levo comigo todos os santos que você invoca na despedida
e guardo seu adeus como um retrato em minha retina.
Com suas lições construí uma catedral de pedra e luz
e tento honrar o chão firme em que você caminhou.
Da verdade que sempre lecionou fiz um escudo e um colar
e me banhei no oceano de um amor invencível.
Eu rezo seu terço e canto sua novena.
Homenageio seus mortos e saúdo seu passado árduo,
de dias vencidos pela mais pura vontade de ser família.
Uma mãe é um castelo, uma torre, uma ponte.
É um rochedo onde o mar chora sua solidão, cansado dos dias.
É a música que o vento toca no entardecer, saudoso.
Uma mãe é a nascente límpida de um rio que não tem fim.
Tenho-a como um campo sereno na tempestade da vida,
sua lembrança é meu lar em qualquer lugar.
A Árvore
Era só uma árvore no meio de um pasto,
mas era tanta beleza
que eu não pude ignorar.
Parei. E fiquei ali por alguns minutos,
observando-a como a um aquário.
Era só uma árvore no meio de um pasto,
que vi de uma curva da estrada,
mas era tanta beleza
que não parecia real: talvez uma pintura
surrealista ou expressionista.
Seus braços abertos saudando o vento
e se embebedando de toda a luz.
Tão forte e paciente.
Era só uma árvore solitária,
mas era tanta beleza!
O Corredor
Uma sombra pede passagem
frente uma longa viagem.
É um corredor que passa voando,
com o vento se deleitando.
Como um cavalo testando os cascos,
ele carrega a liberdade nos passos.
Não procura uma verdade velada,
deseja correr e mais nada.
Há um lugar de elevada consciência
onde a glória está na vivência.
Um corredor não tem a alma cansada,
pois sua casa é a estrada.
Também não há temor em sua passada,
já que não busca a vitória na chegada.
Aprendeu sobre a jornada da vida
e que o êxito está na partida.
A Minha Alma II
Minha alma não quer sossegar:
vive alheia e sem lugar.
É como se tivesse acordado
em um hotel medonho;
é como se tivesse vivido
no limbo ou escuro sonho.
A minha alma não se acalma!
Ela deveria ter baixado em um distante planeta
ou em um cometa,
mas a este corpo ficou presa.
E este corpo virou presa!
Minha alma não é um castelo
ou um forte, é o oposto:
é a bala do canhão que destrói a muralha,
a torre e mata.
Minha alma sangra em cascata
e nenhuma paz cultiva, insensata.
Grita como a tempestade
que a proa do navio invade
e que só não o afunda por piedade.
Vagueia a céu aberto
como um nômade no deserto
fugindo da verdade.
Minha alma carrega a dor de uma infantaria.
E a mim cabe sufocá-la no ser
e ser,
com angustiosa calma,
o carcereiro de minh’alma.
Asas
Morre plantado quem veio gente,
mas se esqueceu de dar um passo à frente
(talvez devesse ter nascido árvore).
Atravesse suas divisas e se confronte
diariamente
e lembre-se que só é humano realmente
quem é capaz de sonhar
e só é feliz verdadeiramente
quem está pronto para mudar.
E é preciso seguir adiante, sempre.
Para tocar o céu com a mão
basta ter asas no coração!
O Andarilho
Enquanto um carro passa apressado
e lhe banha o corpo com uma rajada de vento,
ele atravessa uma ponte sobre um pequeno riacho
e para por um instante,
olhando a paisagem.
Ele segue seu caminho!
Passa por pequenas propriedades rurais
e avista um trator arando a terra no alto de uma serra:
_ Do que será aquela plantação?
Ele caminha...
Outro carro passa como uma flecha buscando um alvo
com o som no volume mais alto,
enquanto ele silencia para ouvir o solo de um canarinho
laranja como o entardecer:
_ Bom dia, Senhor Laranja!
Ele caminha...
Uma brisa lhe refresca e lhe dá fôlego,
mesmo com o sol ardendo e fazendo o asfalto suar.
Está muito quente,
mas mesmo assim ele caminha.
Ele sente a dor de seus pés dentro da velha bota rasgada,
mas mesmo assim ele caminha.
Ele caminha...
Ele caminha...
Crianças jogam futebol num pequeno campo de terra
com traves de bambu amarradas com corda,
ele para e observa.
E depois de alguns minutos, ele segue sua jornada,
ouvindo, ao longe, o grito de gol e a farra dos meninos.
Ele continua caminhando...
Na curva da estrada ele passa por uma casa branca
de janelas azuis abertas
e um velho cão vira-lata começa a latir,
correndo em sua direção.
Ele aperta o passo:
_ Sai! Vai deitar, Campeão!
O cão é distraído por duas motos que passam devagar
e ele já foi.
O cão o procura com olhos inquietos.
Outro carro passa
e duas crianças se viram no banco de trás:
_ Pai, para onde vai aquele maluco? De onde ele vem?
Ele caminha...
Ele passa por um pequeno vale
e para em frente uma cruz de madeira na beira da estrada.
Faz o sinal da cruz e uma prece:
_ Descanse em paz, meu filho. Logo estarei com você, mas não agora. Ainda não.
Ele segue seu caminho carregando algumas lágrimas no rosto sujo.
Ele caminha...
Livremente, ele caminha.
De lugar nenhum ele veio
e para lugar nenhum ele vai.
Ele somente caminha.
Livremente, ele caminha.
ANTIALEXANDRINO
De João Batista do Lago
Inclino-me a quebrar
todas tuas santas regras
Não há coisa mais ve-
lha que tê-las presente
Todas as suas amar-
ras são paletas negras
Que prendem o pensar
livre em virtual corrente
A tua linguagem sô-
frega afasta o ser jovem
Espírito sui ge-
neris... indiferente…
Avesso do teu ver-
so tão insignificante
Que nada faz sentir…
pois é tudo desordem
Deixa-me aqui liberto trovador vetusto
Toma teu veludoso fardão nobre bardo
Mortalha ele será para tua pobre lira
Não me queiras tu indicar novos caminhos
Seguirei os meus com os meus pergaminhos
As pedras do meu caminho eu mesmo as tirarei