Poesia
A minha Musa antes de ser
a minha Musa avisou-me
cantaste sem saber
que cantar custa uma língua
agora vou-te cortar a língua
para aprenderes a cantar
a minha Musa é cruel
mas eu não conheço outra
o pó e o amor
como o poema
são feitos
no dia a dia
o pão come-se
ou deita-se fora
embrulhado
(uma pomba
pode visitar o lixo)
o poema desentropia
o pó deposita-se no poema
o poema cantava o amor
graças ao amor
e ao poema
o puzzle que eu era
resolveu-se
mas é preciso agradecer o pó
o pó que torna o livro
ilegível como o tigre
o amor não se gasta
os livros sim
a mesa cai
à passagem do cão
e o puzzle fica por fazer
no chão
O namorado dá
flores murchas
à namorada
e a namorada come as flores
porque tem fome
Não trocam cartas
nem retratos nem anéis
porque são pobres
Mas um dia
têm muito medo
de se esquecerem
um do outro
então apanham
um cordel
do chão
cortam o cordel
e trocam alianças
feitas de cordel
Não podem
combinar encontros
porque não têm
número de telefone
nem morada
assim encontram-se
por acaso
e têm medo
de não se voltarem
a encontrar
O acaso
não os favorece
Decidem nunca sair
do mesmo sítio
e ficarem sempre juntos
para não se perderem
um do outro
Deus não me deu
um namorado
deu-me
o martírio branco
de não o ter
Vi namorados
possíveis
foram bois
foram porcos
e eu palácios
e pérolas
Era uma vez uma mulher que tão depressa era feia como era bonita.
Quando era bonita, as pessoas diziam-lhe:
- Eu amo-te.
E iam com ela para a cama e para a mesa.
Quando era feia, as mesmas pessoas diziam-lhe:
- Não gosto de ti.
COUP DE GRÂCE
Uma mulher
nunca pode
apaixonar-se
por um homem
antes de o homem
se apaixonar
por ela
o homem pune-a
por isso
e por muito mais
o homem não a abate
vai-se embora
fechado em copas
a mulher pune-se
a si mesma
se não tem vergonha
por si
tem pena
menina e mãe
num saco
estóicas
como a pescada
que antes de o ser
já o era
ARTE POÉTICA
Escrever um poema
é como apanhar um peixe
com as mãos
nunca pesquei assim um peixe
mas posso falar assim
sei que nem tudo o que vem às mãos
é peixe
o peixe debate-se
tenta escapar-se
escapa-se
eu persisto
luto corpo a corpo
com o peixe
ou morremos os dois
ou nos salvamos os dois
tenho de estar atenta
tenho medo de não chegar ao fim
é uma questão de vida ou de morte
quando chego ao fim
descubro que precisei de apanhar o peixe
para me livrar do peixe
livro-me do peixe com o alívio
que não sei dizer
é o mal do século, e mata mais que a bala
é o pior espetáculo se só tem você na sala
não tem cor, nem rosto, nem peso, nem dono
mas muda o jeito do rosto te faz pensar que é teu dono
parece um beco sem saída, um grito sem ajuda
uma alma ferida que sempre se põe a culpa
me desculpa minha querida eu concordo que foi minha culpa
é que eu perdi o brilho da vida, quando vi a vida adulta
trabalha e estuda ou sai e se diverte
emprego fixo é uma luta, é o que meu pai me adverte
a morte é a mulher mais linda, que é impossível recusar o flerte
mas não mal ainda que uma boa poesia no reverte, entende?!
também já me sinto inútil pro mundo
por aqueles que amo totalmente abadonado
também já quis saber o gosto do chumbo
e ver como anda a vida la do outro lado
procure ajuda pois não tem vergonha nisso
eu já estive em seu lugar irmão me senti um lixo
o amor é a cura pra vida não a morte
existe outra saída, saiba disso!
Nós, os ateus, nós, os monoteístas,
Nós, os que reduzimos a beleza
A pequenas tarefas, nós, os pobres
Adornados, os pobres confortáveis,
Os que a si mesmos se vigarizavam
Olhando para cima, para as torres,
Supondo que as podiam habitar,
Glória das águias que nem águias tem,
Sofremos, sim, de idêntica indigência,
Da ruína da Grécia.
De que armas disporemos, senão destas
que estão dentro do corpo: o pensamento,
a ideia de polis, resgatada
de um grande abuso, uma noção de casa
e de hospitalidade e de barulho
atrás do qual vem o poema, atrás
do qual virá a colecção dos feitos
e defeitos humanos, um início.
Hoje quero com a violência da dádiva interdita.
Sem lírios e sem lagos
e sem o gesto vago
desprendido da mão que um sonho agita.
Existe a seiva. Existe o instinto. E existo eu
suspensa de mundos cintilantes pelas veias
metade fêmea metade mar como as sereias.
Hoje apetece que o cigarro saiba
a ter fumado uma cidade toda.
Ser o anel onde o teu dedo caiba
e faltarmos os dois à nossa boda.
Hoje apetece um interior de esponja
E como estátua a que moldar o vento.
Deitar as sortes e, se sair monja,
Navegar ao acaso o meu convento.
Hoje apetece o mundo pelo modo
Como vai despenhar-se um trapezista.
Abrir mais uma flor no nosso lodo:
Pedir-lhe um salto e retirar-lhe a pista.
O Testamento dos Namorados
Escolhamos as coisas mais inúteis
o verde água o rumor das frutas
e partamos como quem sai
ao domingo naturalmente.
Deixemos entretanto o sinal
de ter existido carnalmente:
da tua força um castiçal
da minha fragilidade um pente.
Esse hieróglifo essa lousa
deixemos para que uma criança
a encontre como quem ousa
um novo passo de dança.
Como a chuva não cessasse de cair em caudais,
Tiras de tinta começaram a aparecer na fotografia
O tecto da chuva rompera o abrigo da sua alma
E o verde circulava a deriva rompendo as plantas.
Elvira deixara cair seus olhos de objectiva nas
Folhas verdes. Verificava que era sobre elas e como
Elas que sempre olhara a natureza. Ver o real
Em folhas era amá-lo ininterruptamente. Essa
Contiguidade acabara por compor uma rede
Que tinha tanto de próximo como de diferente,
E a chuva não era chuva, transparecia. Eis, pensou.
Por que chove na fotografia, por que chove
Em correntes sobre as folhas?
O poema ensina a cair
sobre os vários solos
desde perder o chão repentino sob os pés
como se perde os sentidos numa
queda de amor, ao encontro
do cabo onde a terra abate e
a fecunda ausência excede
até à queda vinda
da lenta volúpia de cair,
quando a face atinge o solo
numa curva delgada subtil
uma vénia a ninguém de especial
ou especialmente a nós uma homenagem
póstuma.
Troco-me por ti
Na brasa da fogueira mal ardida
renovo o fogo que perdi,
acendo, ascendo, ao lume, ao leme, à vida.
E só trocado, parece, por não ser
na verdade conjugo o velho verbo
e sou, remido esquartejado,
o retrato perfeito em que exacerbo
os passos recolhidos pelo tempo andado.
Devagar te amo, e devagar assomo
os dedos à altura dos olhos, do cabelo
dos anéis de outro turno, que é só meu
por querê-lo, meu amor, como a ti mesma quero
nos tempos de passado e sem futuro.
Devagar avanço um dealbar de dias
que vida seriam - mesmo que morto, à noite,
eu voltasse amargurado mas presente,
calado e quedo, e devagar amando.
Não tenho para ti quotidiano
mais que a polpa seca ou vento grosso,
ter existido e existir ainda,
querer a mais a mola que tu sejas,
saber que te conheço e vai chegar
a mão rasa de lona para amar.
Não tenho braço livre mais que olhar
para ele, e o que faz que tu não queiras.
Tenho um tremido leito em vala aberta,
olhos maduros, cartas e certezas.
Neste comboio longo, surdo e quente,
vou lá ao fundo, marco o Ocupado.
Penso em ti, meu amor, em qualquer lado.
Batem-me à porta e digo que está gente.
Não quero essa mudez de condolências
a mim, a ti, ou só à terra
que tu e eu pisamos — e comemos.
Pergunto simplesmente se tu eras,
quem eras, e onde foste
depois que se fizeram quatro horas.
Disforia
Quando olho no espelho, não encontro bailarina, o sorriso de menina, desta alma feminina...
Refletir me entristece!
O que vejo é masculino.
Quero encontrar no externo.
O que vive no interno.
No inverno ou no verão cantará meu coracão.
Emoção, satisfação , chuva de interrogação.
O espelho só reflete o brilho do meu coração.
Agora preste atenção!
Não se prenda na ilusão!
Que o externo é verdadeiro separado do interno...
Quando olho para o espelho eu não vejo o interno.
Não me prendo no externo.
E fica a interrogacão??
Se o que vejo e um reflexo...
Onde está meu universo?