Poemas Vinicius de Moraes Mulher Aries
insetos;
a criança brinca,
raspa os joelhos no asfalto.
entre formigas,
as vê carregando tijolos,
devorando ovos,
mordendo companheiras.
observa besouros sob folhas secas
e pisa — a vida
esmaga.
o jovem canta pneu em estradas falsas,
bebe promessas de bares sujos.
procura-se em soldados,
encontra:
refúgio
nas que rastejam;
mulheres baratas.
o adulto afoga o relógio no álcool,
engole dias
saudade seca.
o trabalho vira razão,
não pensa,
não sente,
abraça o conforto —
e cospe folgas
no cinzeiro do chefe.
crueldade precoce e,
caminhos engessados
cuspidos por máquinas.
sociedade autofágica:
faca em punho,
esfaqueia ponteiros
sangra calendários
e ri.
meritocracia insetóide:
asas podres,
pernas peludas,
seis olhos.
devora a prole
bota ovos
e ri.
e o velho encara retratos:
procura suas asas
rugas inundam o rosto
o tempo, o ladrão
que deixou
ossos em pele frouxa
e perguntas
sem resposta
e as formigas
comem olhos
no buraco
que ele mesmo
cavou.
lápide de açucar;
atravessando a rua, fui atravessado.
caminhão de sorvete me deixou gelado.
chocolate e sangue, doce e amargo,
rosa, azul e um branco pálido.
dançando juntos em cima do asfalto,
corpo fechado, pé numerado.
meu túmulo caramelizado,
que jeito melado de morrer.
e apesar da dor, virei sabor:
sorvete derretido, perdeu o valor.
agora sou história,
verso travado,
epitáfio doce
e congelado.
luxúria;
me vi em navalhas:
preto engoliu branco,
afeto sangrou agressão,
orgulho devorou o amor.
arranquei meus olhos —
agora as rosas brotam
onde restaram os buracos.
mordi frutas brilhantes
e mastiguei vermes
apenas para cuspir
seus caroços podres
e escolher estátuas douradas
com vísceras de barata:
beijei-lhes a boca
até engolir as asas.
e no rastro do desejo,
só restaram cinzas de abraços
e retratos sem face.
transformei camas em altares,
mas nenhum deus respondeu
às preces que sussurrei
entre pernas e gemidos.
nessa piada que me conto
enquanto me fodo —
só restam sílabas grudadas
e pegadas na poeira
da casa vazia
que já foi peito
antes de ser tumba.
orgulho;
no topo da prisão,
rei sem reino.
tranquei as celas —
encarcero e me aprisiono,
coroado pelo ego.
governo eu mesmo,
morro em mim,
mas não me curvo —
carcaça ereta,
mente cerrada.
voo acima de todos,
anjo de asas de couro.
no topo da colina cinza,
cuspo na miséria
que recuso a ver.
me ergui em chamas
e queimei a cidade.
governei o caos,
liderei a loucura.
egoísmo cego,
ouro falso.
e quem precisou,
virei a cara.
ego cheio,
coração oco.
queixo erguido sobre espinhos,
coroa em brasa.
e no fim, só restou o cheiro:
o santo churrasco,
primeiro que saboreio —
banquete de rei,
minha carne queimada.
sucumbo, enfim,
ao trono que ergui.
construção vazia.
ruína certa.
avazera;
farto, sem fome.
taças de cristal
transborda cianeto.
cobro juros
da água benta,
penhoro a hóstia,
pago até
meus 10%
para comprar casas no céu—
e os anjos trancarem as portas.
o amor? em leilão.
parcelo afeto,
cobro taxa
por abraços.
não devolvo,
mesmo emprestado —
são meus.
engulo moedas,
asfixio-me com níquel,
tossindo sangue
e centavos.
cheques sem fundo,
cheios de zeros—
cheios mág00000as.
peso ouro
na balança,
mas minha alma,
ainda segue:
com Rayban escuro
e carro importado,
minha falência
espiritual.
nos bolsos pesam
cédulas pretas,
alianças sem dedos,
e mendigos sem nome.
notas falsas
não compram vida,
mas Caronte aceita
cem dólares.
mesmo assim,
não entro no barco—
ele sabe:
não pagaria.
mas comprei terreno,
e construí mansão.
no meu gigantesco
umbral dourado.
IRA;
herdei do meu pai
um fogo engarrafado,
que ele herdou do avô
como herança de terra rachada —
pólvora seca na garganta,
ourobóricamente amarga.
grito contra o mundo.
as paredes explodem eco.
estourei os tímpanos;
os ouvidos sangram silêncio.
esmurro pontas de faca,
salivo ácido,
mastigo pregos.
me calo, mas fervo.
sublimo atos de cólera,
transpiro ódio em gotas
que corroem até o chão.
busco a paz
em meu próprio genocídio —
o capitão nascimento
atira no meu peito
e ri da bala perdida.
sou minha própria anátema,
injustiçado na fúria,
coração engatilhado,
marca-passo de pólvora.
rancor escarlate
com nome de filhos.
herança sangria:
vendaval de ruína,
semente de dinamite
germinando em útero.
testamento cinza:
até o fogo cansa
de queimar o mesmo inferno.
resto a gólgota
em meu esperor.
eterno retorno;
existo sem sentido,
parado no mesmo lugar,
enquanto o mundo gira
e eu giro dentro dele.
repito ciclos,
como um disco riscado
que sempre pula no mesmo verso,
na mesma frase que não termina.
não sou Sísifo,
sou a própria montanha,
o chão que desaba
a cada passo que tento dar.
não carrego pedras,
carrego perguntas,
e elas pesam mais
do que qualquer rocha.
pego o celular,
não finjo nada.
rolo a tela como quem revolve
cinzas de uma fogueira
que nunca aqueceu ninguém.
ouroboros sistêmico,
mordendo o próprio rabo,
enquanto o tempo escorre
pelos dedos que não seguram nada.
sou o ciclo que se repete,
a espiral que desce,
existo sem sentido,
parado no mesmo lugar,
enquanto o mundo gira…
e eu fico aqui.
encerramentos;
evito correr, decido encarar
essa verdade
que insiste
em queimar.
observo, impassível,
meus devaneios.
disfarço o pranto
no olhar.
um vulto disforme
ocupa o peito,
sufoca o ar,
apaga o suspiro.
transforma em angústia
o abraço—
laço eterno,
fogo que não finda.
ainda assim,
apego-me ao ciclo,
espiral que se alonga
no tempo.
há eras
deveria tê-lo rompido,
mas nego-me
a deixar o fim vir.
entre a dor e a cura,
escolhi sangrar.
a saudade virou
meu alimento.
recuso a despedida,
ela é agora
o último vestígio
do que fomos.
e se um dia
a saudade se extinguir,
será o vazio
o fim do caminho,
ou apenas o início
de outro ciclo
que, outra vez,
recuso o fim?
preguiça;
o dia se arrasta,
e eu rastejo junto.
o tempo passa,
e eu fico-
letárgico,
estático,
a cada balançar
desse torto pêndulo
que me esmurra na cara
e zomba de mim.
criei raízes
de carne e tédio
no meu sofá-
pele e couro
fundidos pela minha
falta de vontade.
espero mudanças,
mas não faço acontecer.
espero sentado
que o céu caia
e me esmague
como uma barata
sob o pé do homem.
sento em silêncio
e contemplo a tela-
Deus virtual
que boceja a alma
e me aliena
por completo.
inércia viscosa,
sem meta ou desejo.
ausência da vontade
de estar aqui,
de respirar.
respiro lento,
olhos pesam,
não de sono,
mas de um cansaço
que não dorme.
se nunca mais levantar
não importará.
o mundo segue,
e eu fico-
preso em mim,
morto na encosta,
esperando a mudança
que nunca vem.
vira-lata;
mesmo sem carne,
roo o osso.
rosno, babo.
é meu.
mostro os dentes—
ninguém encosta.
curvo, cavo,
te enterro.
quebra os dentes,
não enche estômago.
tutano egóico,
por ser só meu.
ode aos mortos;
brindo-lhes
as memórias
de todos
que se foram—
fantasmas
que habitam
meu passado,
bebendo
minhas lágrimas
como vinho.
ao seu legado,
aquilo que foi
construído
e desmoronado:
ruínas
que carrego
no peito,
pedras
que nunca
viraram pão.
momentos únicos,
fincados
na carne da memória—
feridas,
sangrando
abertas,
como portas
que não levam
a lugar nenhum.
na infinitude do tempo,
no deserto da vida,
imensidão de areia
que enterro
perguntas
e vestígios.
levanto o copo
aos que ficaram,
mas não estão
mais aqui:
espectros que
bebem meu vinho
e deixam
o copo vazio,
sussurram
promessas
que não
se cumprem,
como flores
que murcham
antes de nascer.
que seu jazigo
perpétuo
lapide
o futuro
daqueles
que morreram
em vida—
e que eu
seja
seu fardo
mais pesado,
um monumento
ao que nunca
foi dito.
um brinde
a mim:
o coração bate,
os ossos doem,
a alma seca
como um rio
que nunca
vai ao estuário,
arrastando
consigo
o que sobrou
de mim.
o legado póstumo
deixou um véu
de saudade
e pálidas
perguntas,
como lápides
sem nome
em um cemitério
esquecido.
a todos
que desfalecem,
letárgicos amigos:
desejo-lhes
saúde—a vida,
ou, ao menos,
um túmulo
onde eu também
possa descansar,
enquanto o tempo
nos devora
a todos.
porta;
passam velhos, passam jovens,
passam felizes, miseráveis.
passa a vida,
e ninguém nota.
abre, fecha.
fechadura seca,
chave de carne,
pulsa, sangra,
expulsa.
soleira, solitária.
passam mulheres,
ciganas, anjos,
feias, magras, gordas,
felizes, miseráveis.
meus pecados
que rangem
nas dobradiças
inquestionáveis.
passo, tropeço,
nunca reparo
como algo tão simples
meu batente
abre as portas
do meu peito
trancado.
butiquim enferrujado—
agora fecho.
maçaneta dura, travada.
viro a chave,
cerro o quarto.
não vem, não vai,
não leva,
não trás,
não volta,
não abre mais.
gula;
excessos e satisfação
nutrição perversa
não enche estômagos.
engulo coisas tortas
e permaneço vazio,
bocas insaciáveis
corpos devorados.
anseio pelo excesso,
nunca satisfeito,
mordo o vácuo
e cuspo o nada.
bares gordurosos,
fígados hepáticos,
fuligem preta na garganta.
mordo a língua
e bebo sede.
roí unhas ao osso,
bebi água do mar,
mastiguei pedras—
ainda assim, faminto.
e de não encontrar,
canibalismo infinito,
me mastigo em ciclos,
autofagia sem fim,
engolindo dentes
e cuspindo pó.
simbionte;
enterrado sob minha pele,
reside uma inquietude,
e sobre ela, mora você.
escondida dentro de mim,
me coçando para te tirar,
rasgar minha pele,
deixar sair.
se alimente de mim:
da fuligem em meus pulmões,
do eco de quem fui,
daquilo que ainda há de pulsar
em meu peito.
e mesmo sentindo você rastejar,
quero que fique.
minha companhia
desagradável.
então, devore aquilo que ainda bate,
sorva-se do meu silêncio,
engula meus sonhos,
coma as migalhas da minha felicidade.
simbiotismo parasitário:
andando em círculos,
consumindo pedaços de mim,
já sem lembrança de forma,
sem saber existir sem órgãos,
sem ti.
mergulhe nas profundezas de minhas entranhas,
e ao devorar o que fui,
refaça-me à tua imagem,
para que eu, ao menos, sobreviva.
e ao fim,
quando eu não for mais que casca,
quando nem vísceras restarem,
que sobre apenas
o eco de tua fome.
supino;
se um dia me ler,
saiba:
exagero na tristeza
só para escrever
linhas tortas.
sou melancólico,
dramático,
exagerado.
mas só porque
as vezes,
não acho nada melhor
pra fazer.
e se pareço intenso,
é porque carrego ausências
como quem guarda cartas
de quem nunca respondeu.
me perco em abstrações,
nessa coisa sem forma
que chamei de poesia
por falta de outro nome.
às vezes, confundo lembranças
com desejos
que nunca aconteceram.
e insisto
porque prefiro
ter o que escrever
ao vazio.
na vida real, sou leve,
tranquilo,
sem o peso
do grafite.
escrevo para me livrar,
não para me prender.
porque o que escrevo
morre no papel
e não em mim.
As coisas mais simples da vida são, de fato, as mais bonitas. As mais extraordinárias, as mais desejadas.
Um beijo, um abraço, uma gentileza. Saudade, vontade. Lembrança.
O irônico é que em tudo nessa vida existe uma complexidade infinita.
Em um beijo, existem duas mentes extremamente complexas, e, por vezes, bagunçadas, atraídas uma pela outra, dentro de corpos que se unem com os lábios.
No ronronar de um gato existe um cenário, um contexto, no qual o animal se sente confortável para fazê-lo.
Para existir uma saudade também é preciso existir a angústia de um tempo ruim, assim, valorizamos o tempo bom e a consequência é saudade.
Que demos valor as coisas simples da vida mas sem sermos ignorantes a sua absurda complexidade.
Quando eu pensei que estava tudo acabado...
Percebi que só estava começando, e eu teria que enfrentar aquilo e levar a vida adiante.
O que eu deixei de perceber foi que a vida adiante é cheia de surpresas. E a única coisa que acabou, foi uma fase.
noite negra;
a lua me trazia amor, conexão.
marcado em minha pele, como você em minha mente.
depois me trouxe tristeza, melancolia.
marcado em minha pele, como você em minha dor.
hoje não me trouxe nada.
marcado em minha pele, como você em meu passado.
minha lua foi embora assim como você.
Ainda que use flores artificiais,
Você não as poderá regar todas as manhãs;
Ainda que se alimente de sabores artificiais,
Nunca os poderá colher em pés de uvas e maçãs;
Ainda que se criem versos artificiais,
Eles nunca sairão de um coração.
Compasso
Vasculho pelo lago
traços de meu reflexo que,
Malgrado o aparente nada,
Trepidam,
como que conscientes
de um Primeiro Motor que,
a cada compasso,
conduz o nosso comportamento,
conquanto pensemos estar livres.