Poemas sobre a fome que retratam essa condição

Equipe editorial do Pensador
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Criado e revisado pelos nossos editores

O Bicho

Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.
Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.
O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.
O bicho, meu Deus, era um homem.

Manuel Bandeira , Belo Belo, 1948

Fome

Eu procurei entender
qual a receita da fome,
quais são seus ingredientes,
a origem do seu nome.
Entender também por que
falta tanto o “de comê”,
se todo mundo é igual,
chega a dar um calafrio
saber que o prato vazio
é o prato principal.

Do que é que a fome é feita
se não tem gosto nem cor
não cheira nem fede a nada
e o nada é seu sabor.
Qual o endereço dela,
se ela tá lá na favela
ou nas brenhas do sertão?
É companheira da morte
mesmo assim não é mais forte
que um pedaço de pão.

Que rainha estranha é essa
que só reina na miséria,
que entra em milhões de lares
sem sorrir, com a cara séria,
que provoca dor e medo
e sem encostar um dedo
causa em nós tantas feridas.
A maior ladra do mundo
que nesse exato segundo
roubou mais algumas vidas.

Continuei sem saber
do que é que a fome é feita,
mas vi que a desigualdade
deixa ela satisfeita.
Foi aí que eu percebi:
por isso que eu não a vi
olhei pro lugar errado
ela tá em outro canto
entendi que a dor e o pranto
eram só seu resultado.

Achei seus ingredientes
na origem da receita,
no egoísmo do homem,
na partilha que é malfeita.
E mexendo um caldeirão
eu vi a corrupção
cozinhando a tal da fome,
temperando com vaidade,
misturando com maldade
pro pobre que lhe consome.

Acrescentou na receita
notas superfaturadas,
um quilo de desemprego,
trinta verbas desviadas,
rebolou no caldeirão
vinte gramas de inflação
e trinta escolas fechadas.

Sendo assim, se a fome é feita
de tudo que é do mal,
é consertando a origem
que a gente muda o final.
Fiz uma conta, ligeiro:
se juntar todo o dinheiro
dessa tal corrupção,
mata a fome em todo canto
e ainda sobra outro tanto
pra saúde e educação.

Bráulio Bessa

Na quarta-feira com a barriga vazia
Eu fui na delegacia e pedi pra me prender
Seu delegado eu não fiz nada de errado
Mas quero ser enjaulado ou até mesmo acorrentado
Se me derem o que comer

Paulo Padilha

TEM GENTE COM FOME

Trem sujo da Leopoldina
correndo correndo
parece dizer
tem gente com fome
tem gente com fome
tem gente com fome

Piiiiii

Estação de Caxias
de novo a dizer
de novo a correr
tem gente com fome
tem gente com fome
tem gente com fome

Vigário Geral
Lucas
Cordovil
Brás de Pina
Penha Circular
Estação da Penha
Olaria
Ramos
Bom Sucesso
Carlos Chagas
Triagem, Mauá
trem sujo da Leopoldina
correndo correndo
parece dizer
tem gente com fome
tem gente com fome
tem gente com fome

Tantas caras tristes
querendo chegar
em algum destino
em algum lugar

Trem sujo da Leopoldina
correndo correndo
parece dizer
tem gente com fome
tem gente com fome
tem gente com fome

Só nas estações
quando vai parando
lentamente começa a dizer
se tem gente com fome
dá de comer
se tem gente com fome
dá de comer
se tem gente com fome
dá de comer

Mas o freio de ar
todo autoritário
manda o trem calar
Psiuuuuuuuuuuu

A dor da fome (sobre sociedade)

Seu moço, eu não sei mais o que faço.
Seu moço, o alimento é escasso.
Sim moço, a fome está na minha mesa.
Futuro, para mim é incerteza.

Seu moço, eu tenho medo do inverno.
A fome e o frio são um inferno.
Da terra, eu tirava o meu sustento,
na roça, não faltava o alimento.

Quando cheguei aqui nesta cidade,
eu tinha muita força de vontade.
Queria arranjar um bom emprego,
quem sabe ter um pouco de sossego.
Mas, eu me deparei com a verdade
e esta é minha realidade.

Seu moço, a coisa aqui tá muito séria.
Meus filhos tão crescendo na miséria.
Nosso país é cheio de riquezas,
eu sou o outro lado, o da pobreza.

Seu moço, eu pareço mais um bicho.
Virando e revirando esse lixo.
Eu mato essa dor que me consome.
Mas, seu moço, eu vou morrer de fome.

Beto Botelho

Quem tem fome tem pressa (trecho)

Nesse momento tem gente morrendo de fome
No nosso Brasil
É a tristeza que a sociedade consome
Me diz quem não viu

Quem tem fome tem pressa
Não pode esperar
A fome é perversa
Não dá pra negar

E quem alimenta esse monstro do mal
É a desigualdade social
Tem barriga vazia fazendo chorar

Mas a cidadania tem uma missão
Fazer esse mundo se mobilizar
Pra nunca mais faltar o arroz e o feijão

Só a corrente da dignidade
Pode mudar essa realidade
E dar um fim nessa situação

Pergunte pro teu coração
Que ele vai te responder
Como faz bem fazer o bem
E ver o bem prevalecer

Vem ajudar a renovar
A esperança de alguém
O que é pouco pra você
Pode salvar quem nada tem

Alexandre Silva De Assis, Gilson Bernini De Souza, Leandro Roque De Oliveira e Pedro Assad De Medeiros Torres

Fome

Moro na favela,
Cinco de julho,
Não tenho inveja de nada
E nem um pouco de orgulho.

Só quero uma vida digna,
Para ofertar a meus filhos,
Assim não vão para o mundo do crime
E sim caminhar nos bons trilhos.

Me corta o coração,
Quando minha filha estende a mão
Querendo algo pra comer,
E nem tenho um pedaço de pão.

Quando a fome se aproxima,
É então que fico calado,
Entro em desespero,
Mas não fico igual à um abobado.

Vejo meus vizinhos
Almoçando e se alimentando
E eu pobre inútil
Caido e quase parando.

Assim eu não aguento
Me ponho a chorar
Tristeza
Tristeza de não se acabar.

É, mas esta história
Não termina com o final feliz
Como os contos de fadas,
E sim termina com a sentença de um juiz.

Só fica o sonho
De tudo mudar
De ter um emprego
Pra me ajeitar.

E aqui eu continuo
Sem trabalhar
Com fome a passar
E ter que esperar um emprego chegar.

Alma Faminta

A fome me rodeia.
Não tenho ceia,
nem almoço, nem jantar.
Nem um lanche pra disfarçar
Uma migalha de pão e só.
Num frio de dar dó
Enrolado em trapos.
Divido a noite com ratos.
Dormia, e ainda dava pra sonhar
que eu estava em um lugar
onde tinha comida e roupa lavada.
Tinha trabalho e alguém que me amava.
Acordei do nada,
com um tapa.
Era mais um playboy pra infernizar.
Dava chutes e socos, até tentaram me queimar.
Sempre me pergunto: Que mal eu fiz?
Com tanta dificuldade ainda tento ser feliz.
Tem dias que ninguém me vê,
ou finge para não se meter.
Passa como se estivesse tudo normal
Já se acostumaram a ver pobre se dar mal.
Sem família, sem lugar para morar.
Fiz da rua o meu lar.
Comigo só um cachorro magro,
meus trapos e pontas de cigarro.
Fico feliz quando junto muita latinha.
Eu vendo e já garanto o meu dia.
Ou quando alguém faz doação,
sorrio e agradeço a atenção.
Já vendi bala até na porta de padaria,
mas logo pegaram minha mercadoria.
Me aproximo para pedir.
Só ouço: "Não tenho, saia daqui."
Mas eu prefiro pedir do que roubar.
Miserável sou, mas ainda tenho o que me orgulhar.
Não é acampamento, é o lugar onde eu tento repousar.
Destroem sempre, mas volto pro mesmo lugar.
O néon se mistura com o brilho da lua,
é a melhor paisagem pra quem vive na rua.
Bom é quando os restaurantes jogam fora a comida.
Tenho que correr, que dá até briga.
Eu não quero carro e muito menos riqueza.
Só quero um lar onde não habite a tristeza.
Quero dignidade e consciência,
pra suprir essa carência.
De amor e comida.
Que sare minha ferida.
Exterior e interior.
Que me chamem de senhor.
Será que não tenho direito de pedir?
O que será de mim?
Quando a noite cair
é cada um por si.
Ninguém me ouve, e ainda tomo esporro.
Por aqui o grito de gol vale mais do que socorro.
O que me resta é toda noite rezar.
Pra Deus nunca esquecer de me acordar.