Embora o realismo seja mais comum na prosa, como nos romances, ele também influenciou a poesia brasileira no final do século XIX. Nessa época, a poesia passou a ser mais objetiva e precisa, afastando-se do estilo romântico e adotando uma visão mais crítica e descritiva, característica do realismo. Confira alguns exemplos de poemas de autores que ajudaram a trazer essa influência para a poesia no Brasil.
A caridade
Ela tinha no rosto uma expressão tão calma
Como o sono inocente e primeiro de uma alma
Donde não se afastou ainda o olhar de Deus;
Uma serena graça, uma graça dos céus* *,
Era-lhe o casto, o brando, o delicado andar,
E nas asas da brisa iam-lhe a ondear
Sobre o gracioso colo as delicadas tranças.Levava pela mão duas gentis crianças.
Ia caminho. A um lado ouve magoado pranto.
Parou. E na ansiedade ainda o mesmo encanto
Descia-lhe às feições. Procurou. Na calçada
À chuva, ao ar, ao sol, despida, abandonada
A infância lacrimosa, a infância desvalida,
Pedia leito e pão, amparo, amor, guarida.E tu, ó Caridade, ó virgem do Senhor,
No amoroso seio as crianças tomaste,
E entre beijos – só teus — o pranto lhes secaste
Dando-lhes leito e pão, guarida e amor.Machado de Assis
Indústria
Que la fournaise flambe, et que les lourds marteaux,
Nuit et jour et sans fin, tourmentent les métaux!
A. BRIZEUXO homem bate-se contra o mundo. Cada força viva é um inimigo.
À parte a luta das paixões, trava-se na sociedade a batalha
perene das indústrias.
Combate-se contra o tempo que atrasa e contra a distância que
afasta.
A locomotiva atravessa as planícies como um turbilhão de ferro; a
rede nervosa da telegrafia cria a simultaneidade e a solidariedade
na face do globo; o steamer suprime o oceano; o milagre de
Guttemberg precipita em tempestade as idéias, reduzindo o esforço
cerebral; exacerbam-se os ímpetos produtores do solo, com a energia
vertiginosa das máquinas. Vibram as cidades ao rumor homérico das
caldeiras. Cada dia, o combate ganha uma nova feição e o ventre
fecundo, o ventre inexaurível das forjas, para as novas pugnas,
produz novas armas.
Bendita febre industrial!
Bendito o operário, mártir das indústrias!
Estenda-se por todo o firmamento o fumo que paira sobre as
cidades, vele aos nossos olhos os abismos da amplidão e os signos
impenetráveis das esferas.Raul Pompéia
Pobre Amor
Calcula, minha amiga, que tortura!
Amo-te muito e muito, e, todavia,
Preferira morrer a ver-te um dia
Merecer o labéu de esposa impura!Que te não enterneça esta loucura,
Que te não mova nunca esta agonia,
Que eu muito sofra porque és casta e pura,
Que, se o não foras, quanto eu sofreria!Ah! Quanto eu sofreria se alegrasses
Com teus beijos de amor, meus lábios tristes,
Com teus beijos de amor, as minhas faces!Persiste na moral em que persistes.
Ah! Quanto eu sofreria se pecasses,
Mas quanto sofro mais porque resistes!Aluísio Azevedo
Círculo vicioso
Bailando no ar, gemia inquieto vaga-lume:
"Quem me dera que fosse aquela loura estrela,
Que arde no eterno azul, como uma eterna vela!"
Mas a estrela, fitando a lua, com ciúme:"Pudesse eu copiar o transparente lume,
Que, da grega coluna à gótica janela,
Contemplou, suspirosa, a fronte amada e bela!"
Mas a lua, fitando o sol, com azedume:"Mísera! tivesse eu aquela enorme, aquela
Claridade imortal, que toda a luz resume!"
Mas o sol, inclinando a rútila capela:"Pesa-me esta brilhante auréola de nume...
Enfara-me esta azul e desmedida umbela...
Por que não nasci eu um simples vaga-lume?"Machado de Assis
O MAR
Et cuncta, in quibus spiraculum
vitae est in terra, mortua sunt.
GÊNESIS. C. VIII. 22Outrora, contra a maldade humana, indignou-se o mar. Ingênuo moralista, educado na contemplação constante das serenas esferas, sentiu que era muita a perversão dos homens.
E os homens com terror viram erguer-se contra eles a cólera das águas. O mar cresceu, cresceu.
Conspiradas com o mar, engrossaram as torrentes e as cataratas das nuvens desabaram. Correram as crianças para as mães; as mulheres, com o pavor no olhar, seminuas, cabelos ao vento, buscavam os amantes suplicando socorro, recordando na súplica os consumidos tesouros de carícias; evadidos da floresta alagada, fraternizavam no pânico os animais bravios com os homens. Os grandes da terra, em delírios de orgulho, ameaçavam com o punho, brandindo gestos de vingança.
O mar implacável subiu, a topar com as nuvens.
Hoje o mar é outro. As quilhas rasgaram-lhe a virgindade indômita. O divino justiceiro de outro tempo, experimentado e velho, fez-se cúmplice dos homens. Anda agora a transportar, de terra em terra, sobre as abatidas espáduas, o fardo das ambições e das tiranias.
Raul Pompéia
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