Poemas de Mia Couto
"Estas estórias desadormeceram em mim sempre a partir de qualquer coisa acontecida de verdade mas que me foi contada como se tivesse ocorrido na outra margem do mundo. Na travessia dessa fronteira de sombra escutei vozes que vazaram o sol. Outras foram asas no meu voo de escrever”.
( em "Vozes anoitecidas". Lisboa: Editorial Caminho, 1987).
"Conselhos de minha mãe foram apenas silêncios. Suas falas tinham o sotaque de nuvem”.
( em "O ultimo voo do flamingo". Lisboa: Editorial Caminho, 2000.)
“O amanhecer costumava ser um beijo no vidro de sua casa. Naquela manhã, porém, a luz era mais tensa do que intensa”.
(em "O outro pé da sereia". Lisboa: Editorial Caminho, 2006.)
“A adiada enchente
Velho, não.
Entardecido, talvez.
Antigo, sim”.
(em "Idades cidades divindades". Lisboa: Editorial Caminho, 2007.)
“A uns satisfaz uma sombra,
a outros nem o mundo basta.
Uns batem com a porta,
outros hesitam como se não houvesse saída”
.
(em “Tradutor de chuvas”. Lisboa: Editorial Caminho, 2011).
“Todas as manhãs a gazela acorda sabendo que tem que correr mais veloz que o leão ou será morta. Todas as manhãs o leão acorda sabendo que deve correr mais rápido que a gazela ou morrerá de fome. Não importa se és um leão ou uma gazela: quando o Sol desponta o melhor é começares a correr”. Provérbio africano
(do livro em PDF: A confissão da leoa)
“Amor se parece com a Vida:
ambos nascem na sede da palavra,
ambos morrem na palavra bebida”.
(trecho em "Idades cidades divindades". Lisboa: Editora Caminho, 2007.)
"Quero morar numa cidade onde se sonha com chuva. Num mundo onde chover é a maior felicidade. E onde todos chovemos”.
( em "Antes de nascer o mundo". São Paulo: Companhia das Letras, 2009.)
"A palavra de hoje é aquela que cada vez mais se despiu da dimensão poética e que não carrega nenhuma utopia sobre um mundo diferente”.
( em "E se Obama fosse africano?". Lisboa: Editorial Caminho, 2009)
De que vale ter voz
se só quando não falo é que me entendem?
De que vale acordar
se o que vivo é menos do que o que sonhei?
(VERSOS DO MENINO QUE FAZIA VERSOS)
(trecho extraído do livro “O fio das missangas”, Cia. das Letras, 2004, pág. 131.)
""Eu sinto-me velho às vezes... assim quando estou distraído.
Em geral, é uma coisa quase irresponsável. Eu olho para mim como se tivesse 17, 19 anos, como se houvesse uma vida inteira à minha frente.
(...) Eu tenho medo é que a velhice pense em mim.”
(Mia Couto em entrevista a José Pedro Goulart)
“ Perdi a vontade de limpar
a casa .
Se tivesse que arrumar
não seria a casa.
— Arrumaria , sim, as coisas que não existem,
os sussurros e suspiros
que se acumulam
pelos cantos.
Pastor
responde
minha cama
de areia quente:
- quantas vezes conduzi
a águia ao ninho solar?
- quantas vezes me cresci
à respiração dos lentos animais?
tu és o tapete
desfiado pela estiagem
e a cada volta me perguntas
- para quando o adeus?
e eu fico
olhando
o obstinado nenúfar
no sono do lago
vês
como a morte
me ensinou a obediência da espera?
NÃO SABEMOS LER O MUNDO
Falamos em ler e pensamos apenas nos livros, nos textos escritos. O senso comum diz que lemos apenas palavras. Mas a ideia de leitura aplica-se a um vasto universo. Nós lemos emoções nos rostos, lemos os sinais climáticos nas nuvens, lemos o chão, lemos o Mundo, lemos a Vida. Tudo pode ser página. Depende apenas da intenção de descoberta do nosso olhar. Queixamo-nos de que as pessoas não lêem livros. Mas o deficit de leitura é muito mais geral. Não sabemos ler o mundo, não lemos os outros.
Vale a pena ler livros ou ler a Vida quando o acto de ler nos converte num sujeito de uma narrativa, isto é, quando nos tornamos personagens. Mais do que saber ler, será que sabemos, ainda hoje, contar histórias? Ou sabemos simplesmente escutar histórias onde nos parece reinar apenas silêncio?
___Sementes___
Olhos,
vale tê-los,
se,de quando em quando,
somos cegos
e o que vemos
não é o que olhamos
mas o que o olhar semeia
no mais denso escuro.
Vida
vale vivê-la
se,de quando em quando,
morremos
e o que vivemos
não é o que a Vida nos dá
nem o que dela colhemos
mas o que semeamos
em pleno deserto.
____
– Tens medo de fazer amor comigo?
– Tenho – respondeu ele.
– Por eu ser preta?
– Tu não és preta.
– Aqui, sou.
– Não, não é por seres preta que eu tenho medo.
– Tens medo que eu esteja doente...
– Sei prevenir-me.
– É porquê, então?
– Tenho medo de não regressar. Não regressar de ti.
E o tempo comeu o chão.
Sem terra, sem rio, sem céu, não me restou
senão o vislumbrar
de um sonho.
E o sonho
foi ave e peixe,
foi tempo e foi céu.
Depois, aos poucos, o sonho me devorou a vida.
E, assim,
em mim,
nasceram todas as vidas.
Leia um trecho"A missanga, todos a veem. Ninguém nota o fio que, em colar vistoso, vai compondo as missangas. Também assim é a voz do poeta: um fio de silêncio costurando o tempo."
"A vida é um colar. Eu dou o fio, as mulheres dão as missangas. São sempre tantas as missangas." É assim que o donjuanesco personagem do conto "O fio e as missangas" define a sua existência. Fazendo jus a essa delicada metáfora, cada uma das 29 histórias aqui agrupadas alia sua carga poética singular à forma abrangente do livro como um todo - vale dizer, ao colar em questão. Com um texto de intensidade ficcional e condensação formal raras na literatura contemporânea, Mia Couto demora-se em lirismos que a sua maestria de ourives da língua consegue extrair de uma escrita simples, calcada em grande parte na fala do homem da sua terra, Moçambique, um pouco à maneira de Guimarães Rosa, ídolo confesso do autor.
A brevidade das pequenas tramas e sua aparente desimportância épica estão focadas na contemplação de situações, de personagens, ou simples estados de espírito plenos de significados implícitos, procedimento típico da poesia. Os neologismos do autor, a que os leitores já se habituaram, para além de mera experimentação formalista revelam-se chaves fundamentais de interpretação da leitura.
Não por acaso, a maioria dos contos de O fio das missangas adentram com fina sensibilidade o universo feminino, dando voz e tessitura a almas condenadas à não-existência, ao esquecimento. Como objetos descartados, uma vez esgotado seu valor de uso, as mulheres são aqui equiparadas ora a uma saia velha, ora a um cesto de comida, ora, justamente, a um fio de missangas. "Agora, estou sentada olhando a saia rodada, a saia amarfanhosa, almarrotada. E parece que me sento sobre a minha própria vida", diz a narradora de uma dessas belíssimas "missangas" literárias.
A família, a escola, os outros, todos elegem em nós uma centelha promissora, um território em que poderemos brilhar. Uns nasceram para cantar, outros para dançar, outros nasceram simplesmente para serem outros. Eu nasci para estar calado. Minha única vocação é o silêncio. Foi meu pai que me explicou: tenho inclinação para não falar, um talento para apurar silêncios. Escrevo bem, silêncios, no plural. Sim, porque não há um único silêncio. E todo o silêncio é música em estado de gravidez.
"Não durma perto da estrada que as poeiras irão sujar seus sonhos. E aconteceu. Mas eu..., eu sempre gostei de poeira porque me traz ilusão dos caminhos que não conheço".
(Na berma de nenhuma estrada)