Poemas de Mia Couto
Diz o meu nome
pronuncia-o
como se as sílabas te queimassem os lábios
sopra-o com a suavidade
de uma confidência
para que o escuro apeteça
para que se desatem os teus cabelos
para que aconteça
Porque eu cresço para ti
sou eu dentro de ti
que bebe a última gota
e te conduzo a um lugar
sem tempo nem contorno
Porque apenas para os teus olhos
sou gesto e cor
e dentro de ti
me recolho ferido
exausto dos combates
em que a mim próprio me venci
Porque a minha mão infatigável
procura o interior e o avesso
da aparência
porque o tempo em que vivo
morre de ser ontem
e é urgente inventar
outra maneira de navegar
outro rumo outro pulsar
para dar esperança aos portos
que aguardam pensativos
No húmido centro da noite
diz o meu nome
como se eu te fosse estranho
como se fosse intruso
para que eu mesmo me desconheça
e me sobressalte
quando suavemente
pronunciares o meu nome
Mia Couto, in 'Raiz de Orvalho'
“Fazer da palavra um embalo
é o mais puro e apurado
senso da poesia”.
(trecho em "Idades cidades divindades". Lisboa: Editorial Caminho, 2007.)
BIOFAGIA
É vitalício: comer a Vida
deitando-a entontecida
sobre o linho do idioma.
Nesse leito transverso
dispo-a com um só verso.
Até chegar ao fim da voz.
Até ser um corpo sem foz.
De que vale ter voz
se só quando não falo é que me entendem?
De que vale acordar
se o que vivo é menos do que o que sonhei?
(Versos do menino que fazia versos)
(Do conto "O menino que escrevia versos". em "O fio das missangas". Lisboa: Editorial Caminho, 2003. Fonte: elfikurten.com.br)
“O escritor não é apenas aquele que escreve. É aquele que produz pensamento, aquele que é capaz de engravidar os outros de sentimento e de encantamento.”
( Trechos da intervenção na cerimônia de atribuição do Prêmio Internacional dos 12 Melhores Romances de África, Cape Town, Julho de 2002 - fonte: miacoutiando)
Dentro de mim
o universo se dissolveu
e um respirar de céu
em meu peito se inundou.
Seria a Vida,
seria o Tempo sem nostalgia, ou seria, apenas, a poesia?
Sei que havia um fluir de rio lavando antiquíssimas dores.
E do cristal de tristeza
que antes me negava o ar, desse nó de vazio,
voltou a nascer o mar.
"Agora sou velha ,magra e escura como a noite...Escuro que não vem da raça, mas da tristeza. Mas tudo isso que importa, cada qual tem tristezas que são maiores que a humanidade”.
(in "A Varanda do Frangipani “
Acendemos paixões no rastilho do próprio coração. O que amamos é sempre chuva, entre o voo da nuvem e a prisão do charco. Afinal, somos caçadores que a si mesmo se azagaiam. No arremesso certeiro vai sempre um pouco de quem dispara.
(do livro em PDF: A menina sem palavra)
A Demora
O amor nos condena:
demoras
mesmo quando chegas antes.
Porque não é no tempo que eu te espero.
Espero-te antes de haver vida
e és tu quem faz nascer os dias.
Quando chegas
já não sou senão saudade
e as flores
tombam-me dos braços
para dar cor ao chão em que te ergues.
Perdido o lugar
em que te aguardo,
só me resta água no lábio
para aplacar a tua sede.
Envelhecida a palavra,
tomo a lua por minha boca
e a noite, já sem voz
se vai despindo em ti.
O teu vestido tomba
e é uma nuvem.
O teu corpo se deita no meu,
um rio se vai aguando até ser mar.
,
Para que as luzes do outro sejam percebidas por mim devo por bem apagar as minhas, no sentido de me tornar disponível para o outro.
Dormir com alguém é a intimidade maior. Não é fazer amor. Dormir, isso que é íntimo. Um homem dorme nos braços de mulher e sua alma se transfere de vez. Nunca mais ele encontra suas interioridades
"[...]Devia era, logo de manhã, passar um sonho pelo rosto. É isso que impede o tempo e atrasa a ruga.[...]"
Rir junto é melhor que falar a mesma língua. Ou talvez o riso seja uma língua anterior que fomos perdendo à medida que o mundo foi deixando de ser nosso.
Sou feliz só por preguiça.
A infelicidade dá uma trabalheira pior que a doença: é preciso entrar e sair dela
“Os mais perigosos inimigos não são aqueles que te odiaram desde sempre. Quem mais deves temer são os que, durante um tempo, estiveram próximos e por ti se sentiram fascinados”
Eu somos tristes. Não me engano, digo bem. Ou talvez: nós sou triste? Porque dentro de mim não sou sozinho. Sou muitos. E esses todos disputam minha única vida.