Poemas de Mia Couto

Cerca de 134 poemas de Mia Couto

“Fazer da palavra um embalo
é o mais puro e apurado
senso da poesia”.

(trecho em "Idades cidades divindades". Lisboa: Editorial Caminho, 2007.)

Entrego-te os meus pulsos
para que me leves
mesmo que eu seja
apenas um esquecimento teu.

Só me pertence o que não abraço.
Eis como eterno me condeno:
Amo o que não tem despedida.

BIOFAGIA

É vitalício: comer a Vida
deitando-a entontecida
sobre o linho do idioma.

Nesse leito transverso
dispo-a com um só verso.

Até chegar ao fim da voz.

Até ser um corpo sem foz.

Dentro de mim
o universo se dissolveu
e um respirar de céu
em meu peito se inundou.

Seria a Vida,
seria o Tempo sem nostalgia, ou seria, apenas, a poesia?

Sei que havia um fluir de rio lavando antiquíssimas dores.

E do cristal de tristeza
que antes me negava o ar, desse nó de vazio,
voltou a nascer o mar.

Beber toda a ternura
Não ter morada
habitar
como um beijo
entre os lábios
fingir-se ausente
e suspirar
(o meu corpo
não se reconhece na espera)
percorrer com um só gesto
o teu corpo
e beber toda a ternura
para refazer
o rosto em que desapareces
o abraço em que desobedeces

(Em "Raiz de orvalho e outros poemas". Lisboa: Editorial Caminho, 1999. Fonte: elfikurten.com.br)

Não me deixem tranquilo
não me guardem sossego
eu quero a ânsia da onda
o eterno rebentar da espuma

As horas são-me escassas:
dai-me o tempo
ainda que o não mereça
que eu quero
ter outra vez
idades que nunca tive
para ser sempre
eu e a vida
nesta dança desencontrada
como se de corpos
tivéssemos trocado
para morrer vivendo.

"Agora sou velha ,magra e escura como a noite...Escuro que não vem da raça, mas da tristeza. Mas tudo isso que importa, cada qual tem tristezas que são maiores que a humanidade”.

(in "A Varanda do Frangipani “

Acendemos paixões no rastilho do próprio coração. O que amamos é sempre chuva, entre o voo da nuvem e a prisão do charco. Afinal, somos caçadores que a si mesmo se azagaiam. No arremesso certeiro vai sempre um pouco de quem dispara.

(do livro em PDF: A menina sem palavra)

A Demora
O amor nos condena:
demoras
mesmo quando chegas antes.
Porque não é no tempo que eu te espero.

Espero-te antes de haver vida
e és tu quem faz nascer os dias.

Quando chegas
já não sou senão saudade
e as flores
tombam-me dos braços
para dar cor ao chão em que te ergues.

Perdido o lugar
em que te aguardo,
só me resta água no lábio
para aplacar a tua sede.

Envelhecida a palavra,
tomo a lua por minha boca
e a noite, já sem voz
se vai despindo em ti.

O teu vestido tomba
e é uma nuvem.
O teu corpo se deita no meu,
um rio se vai aguando até ser mar.

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O suficiente é para quem não ama. No amor, só existem infinitos."
Mia Couto

Para que as luzes do outro sejam percebidas por mim devo por bem apagar as minhas, no sentido de me tornar disponível para o outro.

"A maior desgraça de uma nação pobre é que em vez de produzir riqueza, produz ricos."

Dormir com alguém é a intimidade maior. Não é fazer amor. Dormir, isso que é íntimo. Um homem dorme nos braços de mulher e sua alma se transfere de vez. Nunca mais ele encontra suas interioridades

"[...]Devia era, logo de manhã, passar um sonho pelo rosto. É isso que impede o tempo e atrasa a ruga.[...]"

Rir junto é melhor que falar a mesma língua. Ou talvez o riso seja uma língua anterior que fomos perdendo à medida que o mundo foi deixando de ser nosso.

Sou feliz só por preguiça.
A infelicidade dá uma trabalheira pior que a doença: é preciso entrar e sair dela

“Os mais perigosos inimigos não são aqueles que te odiaram desde sempre. Quem mais deves temer são os que, durante um tempo, estiveram próximos e por ti se sentiram fascinados”

Tenho duas pernas: uma de santo, outra de diabo. Como posso seguir um só caminho?

Eu somos tristes. Não me engano, digo bem. Ou talvez: nós sou triste? Porque dentro de mim não sou sozinho. Sou muitos. E esses todos disputam minha única vida.