Poemas de Lygia Fagundes Telles

Cerca de 52 poemas de Lygia Fagundes Telles

A minha tiazinha falava muito na falta que lhe fazia esse ombro amigo, apoio e diversão, envelheceu procurando um. Não achou nem o ombro nem as partes, o que a fez chorar sentidamente na hora da morte, Mas o que você quer, queridinha?! a gente perguntava. Está com alguma dor? Não, não era dor. Quer um padre? Não, não queria mais nenhum padre, chega de padre. Antes do último sopro, apertou desesperadamente a primeira mão ao alcance: “É que estou morrendo e não me diverti nada!

Lygia Fagundes Telles
A Disciplina do Amor

Selecionei as neuroses mais comuns e que podem nos levar além da fronteira convencionada: necessidade neurótica de agradar os outros. Necessidade neurótica de poder. Necessidade neurótica de explorar os outros. Necessidade neurótica de realização pessoal. Necessidade neurótica de despertar piedade. Necessidade neurótica de perfeição e inatacabilidade. Necessidade neurótica de um parceiro que se encarregue da sua vida – ô! Deus – mas desta última necessidade só escapam mesmo os santos. E algumas feministas radicais.

Lygia Fagundes Telles
A Disciplina do Amor

Ele fixaria em Deus aquele olhar verde-esmeralda com uma leve poeira de ouro no fundo. E não obedeceria porque gato não obedece. Quando a ordem coincide com sua vontade, ele atende mas sem a humildade do cachorro. O gato não é humilde, ele traz viva a memória da liberdade sem coleira. Despreza o poder porque despreza a servidão. Nem servo de Deus. Nem servo do Diabo. (...)
Nem melhor nem pior do que o cachorro mas diferente. Fingido? Não, porque ele nem se dá ao trabalho de fingir. Preguiçoso, isso sim. Caviloso. Essa palavra saiu de moda mas deveria voltar porque não existe definição melhor para um felino. E para certas pessoas que falam pouco e olham muito. Cavilosidade sugere cuidado, afinal, cave é aquele recôncavo onde o vinho fica envelhecendo em silêncio, no escuro. Na cave o gato se esconde solitário, porque sabe do perigo das aproximações. Mas o cachorro, esse se revela e se expõe com inocência, Aqui estou!

Lygia Fagundes Telles
A disciplina do amor. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

Nota: Trechos do conto Sou um Gato.

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Ligo a televisão. Plumas, pedrarias, dourados – é o desfile do carnaval milionário. Os holofotes estão tontos, tonto o cinegrafista porque os apelos são excessivos, tudo é importante, focalizar o passista é perder a mulata que já vem vindo no auge, fantasia de estrela, hora e vez da estrela no carro de glória mas cuidado! Lamês e lantejoulas não cubram os seios, o ventre, o traseiro – câmera abre no traseiro rebolante.

Lygia Fagundes Telles
A Disciplina do Amor
Inserida por pensador

Quando mocinhas, elas podiam escrever seus pensamentos e estados d´alma (em prosa e em verso) nos diários de capa acetinada com vagas pinturas representando flores ou pombinhos brancos levando um coração no bico. Nos diários mais simples, cromos coloridos de cestinhos floridos ou crianças abraçadas a um cachorro. Depois de casadas, não tinha mais sentido pensar sequer em guardar segredos, que segredo de uma mulher casada só podia ser bandalheira. Restava o recurso do cadernão do dia-a-dia, onde, de mistura com os gastos da casa cuidadosamente anotados e somados no fim do mês, elas ousavam escrever alguma lembrança ou confissão que se juntava na linha adiante com o preço do pó de café e da cebola.

Lygia Fagundes Telles
A Disciplina do Amor
Inserida por pensador

– É o caçula?
– É o único. O meu primeiro morreu o ano passado. Subiu no muro, estava brincado de mágico quando de repente avisou, vou voar!

Lygia Fagundes Telles
Os contos. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.

Nota: Trecho do conto Natal na barca.

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Inserida por usuario91037

Fiquei sem saber o que dizer. Esbocei um gesto e em seguida, apenas para fazer alguma coisa, levantei a ponta do xale que cobria a cabeça da criança. Deixei cair o xale novamente e voltei-me para o rio. O menino estava morto. Entrelacei as mãos para dominar o tremor que me sacudiu. Estava morto. A mãe continuava a niná-lo, apertando-o contra o peito. Mas ele estava morto.

Lygia Fagundes Telles
Os contos. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.

Nota: Trecho do conto Natal na barca.

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Inserida por henriquenasci

Através do vidro as estrelas me parecem incrivelmente distantes. Fecho a cortina.

Lygia Fagundes Telles
Antes do baile verde: contos. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

Nota: Trecho do conto Eu era mudo e só.

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Inserida por usuario91037

Onde agora? Onde? Tenho uma casa de campo, tenho um diamante do tamanho de um ovo de pomba... Eu pintava os olhos diante do espelho, tinha um compromisso, vivia cheia de compromissos, ia a uma boate com um banqueiro. Enrodilhada na cama, ele tocava na surdina. Meus olhos foram ficando cheios de lágrimas. Enxuguei-os na fralda do saxofone e fiquei olhando para minha boca. Os lábios estavam mais finos assim crispados. Desviei o olhar do espelho. Se você me ama mesmo, eu disse, se você me ama mesmo então saia e se mate imediatamente.

Lygia Fagundes Telles
Os contos. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.

Nota: Trecho do conto Apenas um Saxofone.

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Inserida por pensamentosperdidos

– Doentíssima. E que em seguida me matei – sussurrou ela em meio de um bocejo. – Sabe, Raíza, descobri outro dia que a gente só se mata por causa dos outros, para fazer efeito, dar reação, compreende? Se não houvesse ninguém em volta para sentir piedade, remorso e etc. e tal, a gente não se matava nunca. Então descobri um jeito ótimo, me matar e continuar vivendo. Largo meus sapatos e minha roupa na beira do rio, mando cartas e desapareço.
– Para voltar em seguida. A gente sempre volta.

Lygia Fagundes Telles
Verão no aquário. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
Inserida por reginsss

Gostava de minha mãe porque ela não era mais jovem. E numa noite de disponibilidade, seria capaz de amar até tia Graciana se ela lhe passasse ao alcance da mão.

Lygia Fagundes Telles
Verão no aquário. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
Inserida por reginsss

Deixei pender a cabeça para o peito. Cruzei os braços. E senti-me mais desligada da terra do que um anjo louro e corrompido como o Anjo de Fernando: nem jovem nem velho, nem feio nem bonito, nem bom nem mau, nem fêmea nem macho — um ser neutro, tomando suco de laranja.

Lygia Fagundes Telles
Verão no aquário. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
Inserida por reginsss