Poemas inteligentes

Não sei separar os fatos de mim,
e daí a dificuldade de qualquer precisão,
quando penso no passado.

Clarice Lispector
Gotlib, Nádia B. Clarice: uma vida que se conta. São Paulo: Ática, 1995.

O pássaro é livre
na prisão do ar.
O espírito é livre
na prisão do corpo.

Carlos Drummond de Andrade

Nota: Poema "Liberdade"

DEVE CHAMAR TRISTEZA

Deve chamar-se tristeza
Isto que não sei que seja
Que me inquieta sem surpresa
Saudade que não deseja.

Sim, tristeza - mas aquela
Que nasce de conhecer
Que ao longe está uma estrela
E ao perto está não a ter.

Seja o que for, é o que tenho.
Tudo mais é tudo só.
E eu deixo ir o pó que apanho
De entre as mãos ricas de pó.

Fernando Pessoa
PESSOA, F. Poesias Inéditas (1919-1930). Lisboa: Ática. 1956 (imp. 1990). p. 156

Eu disse a uma amiga:
– A vida sempre superexigiu de mim.
Ela disse:
– Mas lembre-se de que você também superexige da vida.
Sim.

Clarice Lispector
A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.

Nota: Crônica Sim.

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O que me doí não é
O que há no coração
Mas essas coisas lindas
Que nunca existirão...

BOCA

Boca: nunca te beijarei.
Boca de outro que ris de mim,
no milímetro que nos separa,
cabem todos os abismos.

Boca: se meu desejo
é impotente para fechar-te,
bem sabes disto, zombas
de minha raiva inútil.

Boca amarga pois impossível,
doce boca (não provarei),
ris sem beijo para mim,
beijas outro com seriedade.

Carlos Drummond de Andrade
ANDRADE, C. D. Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002.

Quando tuas mãos saem,
amada, para as minhas,
o que me trazem voando?
Por que se detiveram
em minha boca, súbitas,
e por que as reconheço
como se outrora então
as tivesse tocado,
como se antes de ser
houvessem percorrido
minha fronte e a cintura?

Sua maciez chegava
voando por sobre o tempo,
sobre o mar, sobre o fumo,
e sobre a primavera ,
e quando colocaste
tuas mãos em meu peito,
reconheci essas asas
de paloma dourada,
reconheci essa argila
e a cor suave do trigo.

A minha vida toda
eu andei procurando-as.
Subi muitas escadas,
cruzei os recifes,
os trens me transportaram,
as águas me trouxeram,
e na pele das uvas
achei que te tocava.
De repente a madeira
me trouxe o teu contacto,
a amêndoa me anunciava
suavidades secretas,
até que as tuas mãos
envolveram meu peito
e ali como duas asas
repousaram da viagem.

Pablo Neruda
Os versos do Capitão

Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Fernando Pessoa

Nota: Trecho do poema "Tabacaria" de Álvaro de Campos, heterónimo de Fernando Pessoa.

Amar, nunca me coube
Mas sempre transbordou
O rio de lembranças
Que um dia me afogou

E nesta correnteza
Fiquei a navegar
Embora, com certeza,
Não possa me salvar

Amar nunca me trouxe
Completo esquecimento
Mas antes me somou
Ao antigo tormento

E assim, cada vez mais,
Me prendo neste nó
E cada grito meu
Parece ser maior

O que mata um jardim não é mesmo
alguma ausência
nem o abandono...
O que mata um jardim é esse olhar vazio
de quem por eles passa indiferente.

Mario Quintana
Quintana de bolso. Porto Alegre: L&PM, 1997.

Nota: Trecho do poema Jardim interior.

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Aqui eu te amo.

Nos escuros pinheiros se desenlaça o vento.
Fosforesce a lua sobre as águas errantes.
Andam dias iguais a perseguir-se.

Define-se a névoa em dançantes figuras.
Uma gaivota de prata se desprende do ocaso.
Às vezes uma vela. Altas, altas, estrelas.

Ou a cruz negra de um barco.
Só.
Às vezes amanheço, e minha alma está úmida.
Soa, ressoa o mar distante.
Isto é um porto.
Aqui eu te amo.

Aqui eu te amo e em vão te oculta o horizonte.
Estou a amar-te ainda entre estas frias coisas.
Às vezes vão meus beijos nesses barcos solenes,
que correm pelo mar rumo a onde não chegam.

Já me creio esquecido como estas velhas âncoras.
São mais tristes os portos ao atracar da tarde.
Cansa-se minha vida inutilmente faminta...
Eu amo o que não tenho. E tu estás tão distante.

Meu tédio mede forças com os lentos crepúsculos.
Mas a noite enche e começa a cantar-me.
A lua faz girar sua arruela de sonho.

Olham-me com teus olhos as estrelas maiores.
E como eu te amo, os pinheiros no vento,
querem cantar o teu nome, com suas folhas de cobre.

Pablo Neruda
Vinte poemas de amor e uma canção desesperada

Eu te amo porque te amo,
Não precisas ser amante,
e nem sempre sabes sê-lo.
Eu te amo porque te amo.
Amor é estado de graça
e com amor não se paga.

Carlos Drummond de Andrade

Nota: Trecho adaptado de poema pertencente ao livro "Amar se aprende amando", de Carlos Drummond de Andrade.

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Noite

Ó noite onde as estrelas mentem luz, ó noite, única coisa do tamanho do universo, torna-me, corpo e alma, parte do teu corpo, que eu me perca em ser mera treva e me torne noite também, sem sonhos que sejam estrelas em mim, nem sol esperado que ilumine do futuro.

Madrigal Melancólico

O que eu adoro em ti
Não é a tua beleza
A beleza é em nós que existe
A beleza é um conceito
E a beleza é triste
Não é triste em si
Mas pelo que há nela
De fragilidade e incerteza

O que eu adoro em ti
Não é a tua inteligência
Não é o teu espírito sutil
Tão ágil e tão luminoso
Ave solta no céu matinal da montanha
Nem é a tua ciência
Do coração dos homens e das coisas.

O que eu adoro em ti
Não é a tua graça musical
Sucessiva e renovada a cada momento
Graça aérea como teu próprio momento
Graça que perturba e que satisfaz

O que eu adoro em ti
Não é a mãe que já perdi
E nem meu pai

O que eu adoro em tua natureza
Não é o profundo instinto matinal
Em teu flanco aberto como uma ferida
Nem a tua pureza. Nem a tua impureza.

O que adoro em ti lastima-me e consola-me:
O que eu adoro em ti é a vida!

Manuel Bandeira
BANDEIRA, M. Antologia, Relógio de Água

O professor disserta sobre ponto difícil do programa.
Um aluno dorme, cansado das canseiras desta vida.
O professor vai sacudi-lo?
Vai repreendê-lo?
Não.
O professor baixa a voz,
Com medo de acordá-lo.

Carlos Drummond de Andrade
ANDRADE, C. D. “Mosaico de Manuel Bandeira” apud Bandeira a vida inteira. Edições Alumbramento. Instituto Nacional do Livro. 1986
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Love sees with the heart and not with the eyes.

O amor vê com o coração e não com os olhos.

A perfeição

O que me tranquiliza é que tudo o que existe, existe com uma precisão absoluta. O que for do tamanho de uma cabeça de alfinete não transborda nem uma fração de milímetro além do tamanho de uma cabeça de alfinete. Tudo o que existe é de uma grande exatidão. Pena é que a maior parte do que existe com essa exatidão nos é tecnicamente invisível. Apesar da verdade ser exata e clara em si própria, quando chega até nós se torna vaga pois é tecnicamente invisível. O bom é que a verdade chega a nós como um sentido secreto das coisas. Nós terminamos adivinhando, confusos, a perfeição.

Clarice Lispector
A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.

O Tempo Passa? Não Passa

O tempo passa? Não passa
no abismo do coração.
Lá dentro, perdura a graça
do amor, florindo em canção.

O tempo nos aproxima
cada vez mais, nos reduz
a um só verso e uma rima
de mãos e olhos, na luz.

Não há tempo consumido
nem tempo a economizar.
O tempo é todo vestido
de amor e tempo de amar.

O meu tempo e o teu, amada,
transcendem qualquer medida.
Além do amor, não há nada,
amar é o sumo da vida.

São mitos de calendário
tanto o ontem como o agora,
e o teu aniversário
é um nascer toda a hora.

E nosso amor, que brotou
do tempo, não tem idade,
pois só quem ama
escutou o apelo da eternidade.

Carlos Drummond de Andrade
Amar se Aprende Amando, 2001

Hoje encontrei dentro de um livro uma velha carta amarelecida,
Rasguei-a sem procurar ao menos saber de quem seria...
Eu tenho um medo
Horrível
A essas marés montantes do passado,
Com suas quilhas afundadas, com
Meus sucessivos cadáveres amarrados aos mastros e gáveas...
Ai de mim,
Ai de ti, ó velho mar profundo,
Eu venho sempre à tona de todos os naufrágios!

DA ETERNA PROCURA

Só o desejo inquieto, que não passa,
Faz o encanto da coisa desejada...
E terminamos desdenhando a caça
Pela doida aventura da caçada.

Mario Quintana
QUINTANA, Mario. Espelho mágico. Porto Alegre: Ed. Globo. 2005