Poemas inteligentes

Dai, Senhor, o mais fino paladar
a quem tem por missão alimentar.

(In: Poesia Errante, 1988.)

Se há dois testamentos, o antigo e o novo, conviria instituir
um terceiro, para acabar com as contradições entre eles.

( In: O Avesso das Coisas - 6º Edição, 2007.)

Triste mastigação
As reflexões dos velhos são amargas como azeitonas.

(in: Sapato Florido, 1948.)

O lampião
A janelinha de acetilene do lampião da esquina tinha uma luz que não era a do dia nem a da noite... a mesma luz que banhava as pessoas, animais e coisas que a gente via em sonhos... aquela mesma luz que deveria enluarar, mais tarde, as janelas altas do outro mundo...

( in: Sapato Florido, 1948.)

“De noite todos os meus pensamentos são escuros
E todas as palavras têm a letra "u"
Rude
Virtude
Cruzes!”.

(in: Velório sem defunto, 1990.)

Arquitetura

A arquitetura diverte-se projetando construções
para esconder os homens uns dos outros.

Carlos Drummond de Andrade
O avesso das coisas: aforismos. Rio de Janeiro: Record, 1990.

“O que mais me comove, em música,
são essas notas soltas — pobres notas únicas —
que do teclado arrancam o afinador de pianos”...

(Versos extraídos do livro “Mário Quintana — Prosa e Verso”, Editora Globo (9ª edição).)

Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira.
Em que hei de pensar?

Estando em terra, chego ao Céu voando;
Numa hora acho mil anos, e é de jeito
que em mil anos não posso achar um'hora.

Luís de Camões
Versos de amor e morte

Qualquer música, guitarra.
Viola, harmônio, realejo.
Um canto que se desgarra.
Um sonho em que nada vejo.

A chuva desce a ladeira

A água da chuva desce a ladeira.
É uma água ansiosa.
Faz lagos e rios pequenos, e cheira
A terra a ditosa.

Há muitos que contam a dor e o pranto
De o amor os não qu'rer...
Mas eu, que também não os tenho, o que canto
É outra coisa qualquer.

Abdicação

Toma-me, ó noite eterna, nos teus braços
E chama-me teu filho.
Eu sou um rei
que voluntariamente abandonei
O meu trono de sonhos e cansaços.

Minha espada, pesada a braços lassos,
Em mão viris e calmas entreguei;
E meu cetro e coroa — eu os deixei
Na antecâmara, feitos em pedaços

Minha cota de malha, tão inútil,
Minhas esporas de um tinir tão fútil,
Deixei-as pela fria escadaria.

Despi a realeza, corpo e alma,
E regressei à noite antiga e calma
Como a paisagem ao morrer do dia.

Para onde vai a minha vida, e quem a leva?
Por que faço eu sempre o que não queria?
Que destino contínuo se passa em mim na treva?
Que parte de mim, que eu desconheço, é que me guia?

O meu destino tem um sentido e tem um jeito,
A minha vida segue uma rota e uma escala
Mas o consciente de mim é o esboço imperfeito
Daquilo que faço e sou: não me iguala

Não me compreendo nem no que, compreeendendo, faço.
Não atinjo o fim ao que faço pensando num fim.
É diferente do que é o prazer ou a dor que abraço.
Passo, mas comigo não passa um eu que há em mim.

Quem sou, senhor, na tua treva e no teu fumo?
Além da minha alma, que outra alma há na minha?
Por que me destes o sentimento de um rumo,
Se o rumo que busco não busco, se em mim nada caminha

Senão com um uso não meu dos meus passos, senão
Com um destino escondido de mim nos meus atos?
Para que sou consciente se a consciência é uma ilusão?
Que sou entre quê e os fatos?

Fechai-me os olhos, toldai-me a vista da alma!
Ó ilusões! Se eu nada sei de mim e da vida,
Ao menos eu goze esse nada, sem fé, mas com calma,
Ao menos durma viver, como uma praia esquecida…"

Fernando Pessoa

sonho


O sonho é ver formas invisíveis
Da distância imprecisa, e, com sensíveis
Movimentos da esperança e da vontade,
Buscar na linha fria do horizonte
A árvore, a praia, a flor, a ave, a fonte -
Os beijos merecidos da Verdade.

Suplico aos senhores que, em suas cartas, falem de mim como sou. Que nada fique atenuado, mas que se esclareça também que em nada houve dolo. Os senhores devem mencionar este que amou demais, com sabedoria de menos; este que não deixava-se levar por sentimentos de ciúme, mas que por artimanhas alheias, chegou aos extremos de uma mente desnorteada; este cuja mão, como faz o índio mais abjeto, jogou fora uma pérola mais preciosa que toda sua tribo, este que, de olhos baixos, apesar de não ser de seu feitio mostrar-se comovido, agora derrama lágrimas de maneira pródiga, como as árvores das Arábias derramam sua goma medicinal... Ponham isso no papel.

(Otelo)

A Mesa (excerto)

E não gostavas de festa...
Ó velho, que festa grande
Hoje te faria a gente.
E teus filhos que não bebem
E o que gosta de beber,
Em torno da mesa larga,
Largavam as tristes dietas,
Esqueciam seus fricotes,
E tudo era farra honesta
Acabando em confidencia.

Ai, velho, ouviria coisas
De arrepiar teus noventa.

.......

Pois sim. Teu olho cansado,
Mas afeito a ler no campo
Uma lonjura de léguas
Entrava-nos alma adentro
E com pesar nos fitava
E com ira amaldiçoava
E com doçura perdoava
(Perdoar é rito dos pais,
Quando não seja de amantes)
"......."
Mais adiante vês aquele
Que de ti herdou a dura
Vontade, o duro estoicismo.
Mas, não quis te repetir.
Achou não valer a pena
Reproduzir sobre a terra
O que a terra engolirá.
Amou. E ama. E amará.
Só não quer seu amor
seja uma prisão de dois,
Um contrato, entre bocejos
E quatro pés de chinelo.

.....

Mas estamos todos vivos.
E mais que vivos, alegres.
Ninguém dirá que ficou faltando
Algum dos teus. Por exemplo:
Ali ao canto da mesa,
Ali me vês tu. Que tal?
Fica tranquilo: trabalho.
Afinal, a boa vida
Ficou apenas: a vida
( e nem era assim tão boa
E nem se fez muito má).
Pois ele sou eu. Repara:
Tenho todos os defeitos
Que não farejei em ti,
E nem os tenho que tinhas,
Quanto mais as qualidades.
Não importa: sou teu filho
Com ser uma negativa
Maneira de te afirmar.

.....
Tão ralo prazer te dei,
Nenhum, talvez...
Ou senão, esperança de prazer,
É, pode ser que te desse
A neutra satisfação
De alguém sentir que seu filho,
De tão inútil, seria
Sequer um sujeito ruim.
Não sou um sujeito ruim.
Descansa, se o suspeitavas,
Mas não sou lá essas coisas.
Alguns afetos recortam
O meu coração chateado.
Se me chateio? Demais.
Esse é meu mal. Não herdei
De ti essa balda.
.......

Data e Dedicatória (Mário Quintana)

Teus poemas, não os dates nunca... Um poema
Não pertence ao Tempo... Em seu país estranho,
Se existe hora, é sempre a hora estrema
Quando o anjo Azrael nos estende ao sedento
Lábio o cálice inextinguível...
Um poema é de sempre, Poeta:
O que tu fazes hoje é o mesmo poema
Que fizeste em menino,
É o mesmo que,
Depois que tu te fores,
Alguém lerá baixinho e comovidamente,
A vivê-lo de novo...
A esse alguém,
Que talvez ainda nem tenha nascido,
Dedica, pois, os teus poemas.
Não os dates, porém:
As almas não entendem disso...

Nada se sabe, tudo se imagina.
Circunda-te de rosas, ama, bebe
E cala. O mais é nada.

Fernando Pessoa

Nota: Trecho de poema de Fernando Pessoa

Meu amigo, vamos sofrer,
vamos beber, vamos ler jornal,
vamos dizer que a vida é ruim,
meu amigo, vamos sofrer.

Vamos fazer um poema
ou qualquer outra besteira.
Fitar por exemplo uma estrela
por muito tempo, muito tempo
e dar um suspiro fundo
ou qualquer outra besteira.

Vamos beber uísque, vamos
beber cerveja preta e barata,
beber, gritar e morrer,
ou, quem sabe? beber apenas.

O guardador de rebanhos

Eu nunca guardei rebanhos,
Mas é como se os guardasse.
Minha alma é como um pastor,
Conhece o vento e o sol
E anda pela mão das Estações
A seguir e a olhar.
Toda a paz da Natureza sem gente
Vem sentar-se a meu lado.
Mas eu fico triste como um pôr de sol
Para a nossa imaginação,
Quando esfria no fundo da planície
E se sente a noite entrada
Como uma borboleta pela janela.

Mas a minha tristeza é sossego
Porque é natural e justa
E é o que deve estar na alma
Quando já pensa que existe
E as mãos colhem flores sem ela dar por isso.

Como um ruído de chocalhos
Para além da curva da estrada,
Os meus pensamentos são contentes.
Só tenho pena de saber que eles são contentes,
Porque, se o não soubesse,
Em vez de serem contentes e tristes,
Seriam alegres e contentes.

Pensar incomoda como andar à chuva
Quando o vento cresce e parece que chove mais.

Não tenho ambições nem desejos
Ser poeta não é uma ambição minha
É a minha maneira de estar sozinho.

E se desejo às vezes
Por imaginar, ser cordeirinho
(Ou ser o rebanho todo
Para andar espalhado por toda a encosta
A ser muita cousa feliz ao mesmo tempo),

É só porque sinto o que escrevo ao pôr do sol,
Ou quando uma nuvem passa a mão por cima da luz
E corre um silêncio pela erva fora.