Poemas de Juventude Poetas Conhecidos
Hoje
Hoje o dia chora
Não há metáfora
Não chove
Há um vapor
Um suor
Um choro
Que exala dos poros
Há um transpirar
Escorrer
Que banha as lembranças
Há um recordar
De dois corpos suados
Pregados
Em meus pensamentos
Do que foi todo
Meu choro.
Livro Pó de Anjo
Autora: Rosana Fleury
Quero em Verso para te Amar
Quero a última intenção
Um último beijo
Com todo desejo
Depois despejo
Quero amar aquele instante
Desarmar
Nossas almas
Quero intenções, intensidade
O procurar
De sua boca em minha
O resto daquele abraço
Quente
O resfriar do impossível
Quero você
Seus pelos
Meus apelos
Sem cobranças
Só quero
Nada mais
Só quero
O todo roubado
O que me foi retirado
O que se fez descortinar
Só quero você
Seu braço
Um abraço
Sua masculinidade
Concreta
Sua vontade em minha vontade
Quero você
Sua doença amanhecida em mim
Sua existência
Quero a última
Intenção
Quero ficar em você
Pregada
Carregada
Como páginas
Amassadas
E nunca
Esquecidas
Estrofe de um verso
Que nunca
Terminei
E só comecei com você
Verso que nunca pronunciei
Mas quero tudo de volta
Livro Pó de Anjo
Autora: Rosana Fleury
Quando
Quando vai passar?
Este desvario
Esta loucura
Deste encontro
Que provocou o desencontro
De todas nossas vidas.
Quando vai passar
Esta saudade
A sede de seu tocar
A minha
Avidez
Aflição
Pela sua presença
Quando vai passar
Este desespero, a secura
Que tinge meus dias
Minhas idéias
Esconde minha ansiedade
Em te tocar
Somente com o meu olhar
Não vai passar
Vai minar
Vai marcar
Não há tempo
Vai ficar
Morando neste tempo
Em que fiquei
Louca por você.
Livro Pó de Anjo
Autora: Rosana Fleury
Envidraçada
Você disse: “Não me questione... nunca...”
Frase feita, determinada.
Mas, a cozinha era pequena com fogareiro de duas bocas, perdido sem intenção de nada e o pior, não havia cheiro e calor de coisa alguma.
Mas o aroma de seu beijo navegava em minha boca e eu precisava dar um jeito de digerir seu feitio.
Tínhamos que namorar. Peguei suas mãos ásperas para sentir seu movimento, sua energia e o modo que manipulava e você as retirou: triturei as cebolas e
Chorei!...
Olhei em seus olhos sem desviar, para descobrir qual era o seu tempero e a sua hora. Você desviou e duvidou e eu acreditei no Curry como condimento e companheiro.
Abracei você desavisado na sala e sussurrei amores e você desdenhou.
Fui à cozinha novamente, piquei as maçãs ácidas e verdolengas e percebi que estava em descompasso, não era a hora.
Na biblioteca, você distraiu na leitura sobre motores e aquecimento e observei sua atenção e namorei seu perfil e sua paz.
No quarto, sozinha, retirei o avental, pintei minha boca e desejei a mim mesma, paz e discernimento das verdades.
Voltei ao escritório e com segurança disse que estava tudo pronto.
Você, descansadamente, arqueou as sobrancelhas e perguntou:
—O que você fez hoje?
Respondi:
—Frango ao Curry.
E você. num silêncio mordaz, sentenciou:
— “Não como frango!"
Livro: Não Cortem Meus Cabelos
Autora: Rosana Fleury
Construa uma casa
Que tenha ressonâncias
De sua infância
Que seja tão ninho
Quanto as choupanas de Van Gogh
Ou tão forte
Quanto o endométrio
De seu primeiro abrigo.
Construa uma casa
Cristalina
Como seu coração
Meigo
Grato
Que entoe sempre
O exercício fugitivo das saudades.
Construa uma casa
Onde haja o convívio
Da escuridão e da luz
Onde insetos e nepentes
Travarão um pacto
De néctares e cantos
Ninguém precisará evadir-se
Não haverá amantes trágicos
Ou reféns
Nas manhãs silenciosas de inverno.
Construa uma casa
Onde tudo seja permitido
Bailar com os morcegos
Acariciar as estrelas
Ao som dos soluços da madrugada.
Construa uma casa
Onde possa ouvir
O ruído das águas subterráneas
E o adormecer das cigarras
Onde possa ver um imenso ramo de oliveira
Fraternal,
Devorando a indiferença dos homens.
Livro: O Outro Braço Da Estrela – Poemas
Capa e ilustrações - M. Cavalcanti
O Compasso do Vôo
Tocou um tango.
Ele levantou-se, saiu pelo salão, abandonou a mesa e a comunhão de todos que o cercavam e na multidão ele a viu; era ela todos seus dias, era ela todas suas noites.
Aproximou e disse:
— Dance este tango comigo.
Ela indignada com a transparência respondeu:
— Não sei dançar tango.
— Isto não importa, tango é uma dança masculina; comigo você não perde o compasso.
Ela levantou-se e viu o mundo em alto relevo descortinado acima de sua verdade.
Caminhou até o salão, petrificada, nem sabia como tocá-lo em público.
Ele providenciou o enlace. Pegou suas mãos úmidas e
geladas, segurou-as com firmeza e as trançou em seu corpo.
Ela sentiu seu movimento e desta vez não podia fechar os olhos, inalou seu cheiro sem poder beijá-lo, percebeu suas pernas fortes e não podia entrelaçá-las. E por um instante o vinho recém aberto a deixou tonta em um só gole.
Dançou, jogando seu ritmo nas batidas sufocadas suspiradas do bandónion.
Suspirou, puxou coragem e dançou aos olhos de todos. E no mundo emparedado ela viu o fio do prazer e com volúpia dançou esparramando todo seu desejo.
Neste instante, o salão foi inundado de um perfume fragmentado e indefinido da lágrima que escorre, do pensamento cheio de saudade, do prazer de sua voz e da incerteza do encontro frente à maciez do contato de seu beijo.
E todos perturbados com o banho de verdades em pétalas frente estes sentimentos, dançaram embriagados abraçando seus pares. E no amontoado esprimido do anonimato, eles os amantes, se perderam sem julgamento.
E nas asas do desejo e da imaginação emergiram na noite e no compasso fálico desse desejo onde mora a morna volúpia longe das paredes livres, perderam-se no horizonte em um vôo flutuante sem destino certo.
Onde a noite é suave ao adormecer, onde pairam e
pousam as almas amantes que se deitam para simplesmente amar.
Livro: Não Cortem Meus Cabelos
Autora: Rosana Fleury
Nunca é tarde
O tempo se revelou nas tardes, o que passou e o que ficou
escorreu pelo meu rosto.
E na linha fina daquele horizonte onde o sol se punha,
alinhavei meu coração para não fugir.
O lado oculto daquele sentimento tingiu de rubro
minhas mãos, minha boca, e manchou meus pensamentos e toda circunferência de minha existência.
Estava sufocada, afogando em paixão, respingando questões
e senões.
Nas tardes vi que era tarde, delineei meu coração, atirei,
lancei no vasto para não cair no extremamente. Marquei a direção de meu afeto.
E resto ficou fora de controvérsia.
Nas tardes moram as emoções e conclusões.
Nunca vou te esquecer.
Quero amanhecer e ressuscitar, dia que tem o dom de iludir.
Livro Pó de Anjo
Autora: Rosana Fleury
Aroma
Tudo cheirava dúvida naquele instante, seu olfato se calou e
seu mundo não representava nada, pois cheirava a coisa nenhuma.
Tirou o vestido, que transpirava ninharia, tomou um banho
que não aliviava e a insignificância escorreu pelo ralo todo o seu
perfume.
Seus cabelos molhados, banhados, esfriavam suas costas e
não exibiam a espuma de seus sentimentos.
Passou maquiagem que não enfeitava nem migalha, o
instante da folia, do carnaval, no colorido de amar.
Espalhou, vitrificando seu corpo, um creme, e ele recolheu
seu perfume, não exalou seu bálsamo.
Os caminhos de suas curvas exibiam solidão.
No isolamento sobre a cama, um vestido novo com etiqueta
tentava dar vida e fragrância à nova estação de sua vida.
Vestindo tudo como novo, não havia cheiro de loja nem
recomeço.
Livro Pó de Anjo
Autora: Rosana Fleury
Sem Fim
A imaginação viaja leve e
solta, sem preposição ou
oposição, flutua, aguça e da
risada da própria inconve-
niência e criatividade.
Livro: Não Cortem Meus Cabelos
Autora: Rosana Fleury
Presença, amor e devaneio
Não duvides que lhe traga
As manhãs alongadas
E nem te deixes confusa
Nas noites mais desatadas.
Os versos que plantaste
Em minha boca
Ardem sossegados à espera de teus beijos.
Se houver vazio
Tentarei renovar as ausências
E volver oceanos
Para inundar tua ilha.
O amor tritura lentamente
As pedras do caminho,
E meus canteiros agitam opulentos
À afogar tua ânsia,
E as espumas de teu dia a dia.
Dialogo com tua aceitação,
E abraço teus carinhos enfardados
No ventre insinuante de tua pelve.
Livro: Travessia de Gente Grande
Ademir Hamú
Todos os Dias
Há meses, poucos, abri a porta, caminhei até você e até então o que havíamos falado por instantes virou realidade.
Você também abriu a porta, tropeçou, titubeou e segurou-me pela cintura. Dominou o que era seu ou "o que lhe foi meramente ofertado".
No escuro de tudo, você mirou sua conquista. Como todo território, eu era grande c você sussurrou vitorioso:
— Você é linda!
Avancei mais e cobri minha paz em seus lábios e por segundos você não perdeu tempo, apalpou as montanhas dos meus seios como céus intransponíveis.
Te resguardei, sua valentia, minha insensatez – procurei te agradar, te arrastei em meus campos: mas não havia paz entre árabes e judeus.
Havia escutas nas divisas e não mais nos avistamos.
Só restou a miragem dos seus passos no escuro, meio ao bombardeio e nosso desejo que não é pecado, somente desejos.
Hoje nos avistamos através de telas de vime: cada um em seu lado.
E na imaginação de toda composição, eu durmo com você
Todas as noites
E o meu desejo por você
Ainda me acorda
Todos os dias.
Livro: Não Cortem Meus Cabelos
Autora: Rosana Fleury
Meu Segredo: Seu Rastro
Minha bolsa esconde um jardim de aromas cítricos e adocicados que ventilam lembranças que caem como tempestades.
Entre aspirinas esfareladas, resto de uma história perdida que insiste em viver.
Busquei em você refúgio e caí num abismo de infinitos desejos.
Ela, a bolsa, a única testemunha de nossos beijos guarda silenciosa nosso segredo. Dentro dela um lenço com um grama de seu perfume.
Não te vejo mais.
Passa distante, desconhecido. Mas quando a saudade vem soberba em querer você.
Sou humilde, abro a bolsa, desdobro as lembranças respingadas, inspiro seu perfume e me deito com os segredos.
Dentro da minha bolsa um jardim de história e segredos perfumados.
Livro: Não Cortem Meus Cabelos
Autora: Rosana Fleury
As cidades, as verdades e os muros.
Era manhã de abril e o céu não se cobriu de nada, e nas
cercanias da cidade descortinaram a estampa de seu amor fraseado,
pregado em todos os muros da cidade.
Diziam que era amor, mas tanto amor era resguardado, não
era arregalado e na boca de todos cingiam frases recortadas de
verdades que moram no absoluto julgamento de todos.
O que era velado, surdo, intransponível, efervesceu e tingiu
os muros de toda a cidade.
Agora não tinha mais vestes, arrancaram seus sentimentos
e dependuraram seus trapos pelos muros da cidade como
interpretavam.
Ela virou só lamento, andava quase seminua e todos
desviavam de sua presença. Diziam que nos muros cuspiam as
estações gravadas, onde sua boca pousou, o que dela suspirou e
com quem dançou.
Como se atrevera a tanto?
Não havia nela talento para o mal, arrombaram e viram a
folia de seu coração.
A chave se perdeu e o preconceito nasceu das reentrâncias
dos muros que circundam as cercanias das cidades.
Nos trapos as verdades despiram-se, como se fossem
realidades nunca realizadas, onde o leviano é sentinela de quem
não sabe nada de verdades e sentimentos.
Livro Pó de Anjo
Autora: Rosana Fleury
Sonhos aposentados (parte 01)
Seu marido havia morrido, nem sabia quando, em que dia,
de que jeito, simplesmente morrera, sem anúncio fúnebre, sem
santinho em branco e preto, morreu sem dores, anestesiado, acima
dos lamentos.
Agora ele vivia de alma emprestada.
Deus sabe de quem, esperando sei lá o quê, talvez secar
esfarelar, virar húmus, voltar a terra.
Quis ressuscitá-lo à vida, abriu as janelas que deram vista às
montanhas ondulando, pés de café para que ele percebesse o ciclo
da vida, mas quando chegava cerrava todas as ventarolas com frio,
muito frio.
À noite, deitava com as mãos geladas, cruzadas sobre o peito,
era seu único movimento, e de madrugada exalava de sua boca um
hálito esquisito de fundo de baú, cheirando a curtume.
Agora, esposa tinha certeza, ele havia morrido mesmo.
Ele levantava, dizia exatamente a mesma coisa, vestia as
mesmas roupas, os mesmos sapatos, as mesmas meias. Caminhava
pelo mesmo corredor ao trabalho, dia a dia, cumprimentava as
mesmas pessoas com as mesmas faces doentias, os mesmos assuntos
e recortava e dizia as mesmas palavras. Não acrescentava, não
diminuía, era linear, hermético, impermeável, morno, quase frio,
pois ainda não estava completamente morto.
Sua face endurecera, não esboçava nada, nenhuma estação,
era dura como porcelana. Seus cabelos caíram e ralearam, a pele
ficou manchada de pintas que mais pareciam pequenas necroses.
Passou a ficar pálido, leite, quase transparente, às vezes
custava a perceber sua presença translúcida.
A casa também começou a mudar lá dentro; um frio intenso
que toda criação, gato, cachorro, papagaio, passarinho e pensamento só
ficavam e chegavam até a cozinha, onde o fogo a lenha espalhava calor.
Não podia mais amá-lo porque o frio dele cortava-lhe a pele,
e o calor dela derretia seu corpo.
Livro Pó de Anjo
Autora: Rosana Fleury
Atropelada
Como posso abandonar
Algo que nunca tive
Como posso amar
O que nunca conheci
Como posso sentir saudades
Do que nunca me pertenceu
Como posso sentir tudo
E ficar tão vazia
Como posso
Agora desistir
Se nada aconteceu
Onde mora
A divindade dos sentimentos
Que tanto desejei
E nunca compartilhei.
Livro: Não Cortem Meus Cabelos
Autora: Rosana Fleury
Sem Fim
Por favor, me espere e não desesperes porque chego tarde.
Não tropeces no conflito do dia porque chego fora de hora.
Deixe as horas correr, não as esperes exatas porque ando acompanhada e tenho que aguardar a brecha do dia para te abraçar.
Não penses
Não conclua
Porque não aconteceu nada...
Nada?!
Só o meu desejo que te procura e te apalpa pelas ruas e esta vai ser uma história até agora sem fim!
Fim não existe, você vais voar eternamente sem saber onde pousar teus sentimentos, e eu ficarei louca avistando a tudo, despida ou coberta de seus fragmentos e ainda serei um mosaico de palavras sem sentido porque:
Nunca é um tempo
Longo demais
Para não amar.
Livro: Não Cortem Meus Cabelos
Autora: Rosana Fleury
Vestida de palavras
Era uma vez... (e toda vez, nas difusas da imaginação,
começa assim) um quarto, e ele guardava um espelho grande que se agarrava à parede revelando as verdades.
Do lado impertinente e absoluto, descansado sobre a cômoda, um relógio quieto, mas veloz.
Sobre a cama, derramando intensidade, um vestido vermelho
que o tempo do relógio desbotou, mas o espelho mostrava que ele tinha ainda encanto guardado em lembranças.
Hesitante, perambulando pelo quarto, a mulher ia, de um
lado, ao outro, querendo enganar o relógio, fingindo sua aparente angústia ao espelho que apreciava o vestido, e ele se incumbia de carregar sonhos.
Frente ao espelho descortinou sua nudez, sua brancura. Abriu a lateral do criado-mudo e retirou um pote de creme. Espalhou sobre sua pele para acetinar o trincado do tempo a disfarçar e enganar o espelho por minutos naquele dia.
Recolheu o vestido sobre a cama e se cobriu dele. VERMELHO corajoso ajustado em seu corpo, abraçando os parágrafos de suas curvas, sem brigar por espaço.
Olhou para o relógio, o tempo, ele sim, brigava com ela,
apertava sua alma, não a largava nem um minuto sozinha para decidir e refletir.
Enérgicas são as horas, mostram o compasso.
Ela se mirou vestida ao espelho, olhou o pote abandonado sobre a mesa de cabeceira.
Abriu a porta e saiu do seu mundo, pôs na bolsa a sua
fantasia e decidiu acima das horas, dos segundos e minutos e não enganou a si mesma.
Lembrou-se de alguma frase, riu, saboreou, se revestiu dele,
Fernando Pessoa:
“Mas eu não tenho problemas, tenho só mistérios.”
Livro Pó de Anjo
Autora: Rosana Fleury
Miseráveis
E a vida passa lenta como uma procissão lagarteando à margem da vida, cheia de mulheres adornadas de preto vestidas de morte, viúvas da felicidade .
Agarradas ao terço como se fossem lembranças perdidas, murmurando frases inaudíveis, confusas numa convocação de um encontro logrado no tempo de amar.
Choram as dezenas de anos como mistérios não revelados perfurados pelo tempo.
Todos os dias são Quarta-Feira de Trevas perseguidas por homens encapuzados, carregando “seu Cristo” ferido no andor intermitente a vida inteira.
Não olham para as calçadas da existência, são o extermínio querendo chegar de costas e surpreender a infelicidade.
Algumas nunca saem da procissão, do cortejo escuro atrás de sentimentos que somente sangram.
Adoradoras do infortúnio e da miséria.
Choram sangue e caminham com a indigência, desconhecem “O Deus da Felicidade e da Fortuna”.
Não rezam, lamentam.
Jamais convocam, murmuram frases.
Não confiam, esperam acontecer.
Sempre com receio; em atrição. Deslembradas da contrição.
Nem doce,nem amargo
Na cozinha, as notícias chegavam mais depressa ao fogo ameno. As criadas afagavam, pajeavam uma geração e fraseavam o inominável. Lembro-me de suas mãos quentes alisando minhas meias e eu sonolenta, bagunçando os cabelos em cachos nas almofadas do sofá da sala de minha avó. Elas me sacudiam e diziam:
– Se não ficar inteira para a missa, não tem doce de cidra nem novela
à noite.
As missas eram sonolentas e as pessoas vestidas do “primeiro dia da semana” se espreguiçavam em minha mente até ao almoço.
Era um dia morno, não havia novelas e a circunferência dos doces era vigiada e eu me frustrava com a falta das babás.
Verdadeiramente, não precisava delas, mas elas me bendiziam de suas falas e eu, como elas queria decifrar esse desejo.
E elas sabiam das promessas, do artifício, da magia de como chegar ao altar.
E sabiam muito mais, do veneno, da nudez debaixo dos lençóis bordados com capricho em ponto cheio.
Ninguém conversava sobre “isso” e, quando perguntava, tinha resposta certa:
– Já é hora de você dormir!
Na minha imaginação nada repousava, ficava na fantasia, esta geografia indecifrável e a língua solta de minha bisavó.
– Minha filha o “it” fica debaixo das saias.
Eu levantava as minhas, debaixo as anáguas e barbatanas e achava tudo tão incrédulo.
Acordava, e a novidade do dia: não entendia como, mas a vizinha havia “pulado a cerca”. Havia um falatório metafórico na cozinha não percebia onde estava o “cerco” onde só existiam muretas.
O “it”, o charme, o magnetismo, o encanto pessoal ainda são um mistério que abrocha do ser repentinamente.
Ferver, pular, ainda pode ser afetuoso e cítrico como doce de cidra. E o descrente ainda perdura nos amores alambrados.
Livro: Pó de Anjo
Autora: Rosana Fleury
Código
Havia em você uma ética e um código que nunca decifrei
Havia alamedas em seu falar onde nunca andei
Havia sabores em seus beijos que nunca experimentei
Havia muito mais
Que nunca descortinei
Medo
Muito medo
Você não sinalizou
E me perdi
Hoje você passa
Me desconhece
E no paralelo
Desse desencontro
Vestígios
Alucinada
Inesperada
Incendiária
Inconseqüente
Eu fui
Em avançar sobre você
Não me inscrevi
Assediei
Havia exercícios
Que nunca professei
Simplesmente
Tropecei
Na ordinária declaração
Do regulamento
Abri meus braços
Meu coração
Depus minha oração
E você
Não me viu
Me desculpe
Por favor
Não se assuste
Isto passa
Com o tempo
Vira páginas
Mas repagina
Meu
Viver.
Livro: Não Cortem Meus Cabelos
Autora: Rosana Fleury