Poemas de José Saramago
Quando se encontram vestígios humanos antigos, são sempre de homens, o Homem de Cro-Magnon, o Homem de Neanderthal, o Homem de Steinheim, o Homem de Swans combe, o Homem de Pequim, o Homem de Heidelberg, o Homem de Java, naquele tempo não havia mulheres, a Eva ainda não tinha sido criada, depois criada ficou, Você é irónica, Não, sou antropóloga de formação e feminista por irritação.
E se as histórias para crianças passassem
a ser de leitura obrigatória para os adultos?
Seriam eles capazes de aprender realmente
o que há tanto tempo têm andado a ensinar?
No coração, talvez, ou diga antes:
Uma ferida rasgada de navalha,
Por onde vai a vida, tão mal gasta.
Na total consciência nos retalha.
O desejar, o querer, o não bastar,
Enganada procura da razão
Que o acaso de sermos justifique,
Eis o que dói, talvez no coração.
Em que língua se diz, em que nação,
Em que outra humanidade se aprendeu
A palavra que ordene a confusão
Que neste remoinho se teceu?
Que murmúrio de vento, que dourados
Cantos de ave pousada em altos ramos
Dirão, em som, as coisas que, calados,
No silêncio dos olhos confessamos?
Eu sou uma ilha desconhecida, perdida algures neste oceano. Não me conheço, não me sinto, não me tenho e quando me procuro, não me encontro. Tento dar um pouco de mim, todos os dias. Tento libertar-me e gritar quem sou. De que me serve tudo isso? Sou uma ilha desconhecida, igual a qualquer outra. E como qualquer outra, espero um barco que me mostre, afinal de contas, quem sou eu e o que faço perdida no oceano, no meio de tantas ilhas todas diferentes, todas distantes.
(Somos todos uma mera ilha desconhecida. Partilhamos o mesmo oceano, mas não partilhamos os mesmos rumos. Somo-nos desconhecidos. Não nos conhecemos a nós próprios, muito menos aos outros.)
Não é bem assim. Houve um tempo em que as palavras eram tão poucas que nem sequer as tínhamos para expressar algo tão simples como Esta boca é minha, ou Essa boca é tua, e muito menos para perguntar Por que é que temos as bocas juntas.
(O homem duplicado)
... Ter como objetivo vital o triunfo
pessoal tem consequências.
Mais tarde ou mais cedo, tornamo-nos
egoístas, mais concentrados em nós mesmos, insolidários...
Talvez rejeição não seja a palavra mais apropriada, o caracol não rejeita o dedo que lhe toca, encolhe-se. Será a maneira que ele tem de rejeitar? Será. No entanto, você, à vista desarmada, não tem nada de caracol, às vezes penso que nos parecemos muito. Quem, você e eu? Não, eu e o caracol...
(O homem duplicado)
Nem aqui, nem agora. Vã promessa
Doutro calor e nova descoberta
Se desfaz sob a hora que anoitece.
Brilham lumes no céu? Sempre brilharam.
Dessa velha ilusão desenganemos:
É dia de Natal. Nada acontece.
O destino, isso a que damos o nome de destino, como todas as coisas deste mundo, não conhece a linha reta. O nosso grande engano, devido ao costume que temos de tudo explicar retrospectivamente em função de um resultado final, portanto conhecido, é imaginar o destino como uma flecha apontada diretamente a um alvo que, por assim dizer, a estivesse esperando desde o princípio, sem se mover. Ora, pelo contrário, o destino hesita muitíssimo, tem dúvidas, leva tempo a decidir-se.
Imprevisibilidade da Vida, por Saramago
Há mentiras de mais e compromissos
(Poemas são palavras recompostas)
E por tantas perguntas sem respostas
Mascara-se a verdade com postiços.
Não vida, nem sombra, nem razão,
É jaula de doidice furiosa,
Eriçada de gritos, angulosa,
Com estilhaços de vidro pelo chão.
E carrego de mais esta jornada
E protestos não servem, nem suores,
Já mordidos os membros de tremores,
Já vencida a bandeira e arrastada.
Depois se me apagaram os amores
Que a viagem fizeram desejada.
Aqui, na Terra, a fome continua,
A miséria, o luto, e outra vez a fome.
Acendemos cigarros em fogos de napalme
E dizemos amor sem saber o que seja.
Mas fizemos de ti a prova da riqueza,
E também da pobreza, e da fome outra vez.
E pusemos em ti sei lá bem que desejo
De mais alto que nós, e melhor e mais puro.
No jornal, de olhos tensos, soletramos
As vertigens do espaço e maravilhas:
Oceanos salgados que circundam
Ilhas mortas de sede, onde não chove.
Mas o mundo, astronauta, é boa mesa
Onde come, brincando, só a fome,
Só a fome, astronauta, só a fome,
E são brinquedos as bombas de napalme.
Fisicamente,
habitamos um espaço,
mas, sentimentalmente,
somos habitados por
uma memória. Memória
que é a de um espaço e
de um tempo, memória
no interior da qual
vivemos, como uma ilha
entre dois mares: um que
dizemos passado, outro
que dizemos futuro.
Podemos navegar no
mar do passado próximo
graças à memória
pessoal que conservou
a lembrança das suas
rotas, mas para navegar
no mar do passado
remoto teremos de
usar as memórias que
o tempo acumulou, as
memórias de um espaço
continuamente
transformado, tão fugidio
como o próprio tempo.
Intimidade
No coração da mina mais secreta,
No interior do fruto mais distante,
Na vibração da nota mais discreta,
No búzio mais convolto e ressoante,
Na camada mais densa da pintura,
Na veia que no corpo mais nos sonde,
Na palavra que diga mais brandura,
Na raiz que mais desce, mais esconde,
No silêncio mais fundo desta pausa,
Em que a vida se fez perenidade,
Procuro a tua mão, decifro a causa
De querer e não crer, final, intimidade.
Creio no respeito às crenças de todo mundo, mas gostaria que as crenças de todo mundo fossem capazes de respeitar as crenças de todo mundo.”
( As palavras de Saramago)
Eu fui. Mas o que fui já me não lembra:
Mil camadas de pó disfarçam, véus,
Estes quarenta rostos desiguais.
Tão marcados de tempo e macaréus.
Eu sou. Mas o que sou tão pouco é:
Rã fugida do charco, que saltou,
E no salto que deu, quanto podia,
O ar dum outro mundo a rebentou.
Falta ver, se é que falta, o que serei:
Um rosto recomposto antes do fim,
Um canto de batráquio, mesmo rouco,
Uma vida que corra assim-assim.
Penso saber que o amor não tem nada que ver com a idade, como acontece com qualquer outro sentimento. Quando se fala de uma época a que se chamaria de descoberta do amor, eu penso que essa é uma maneira redutora de ver as relações entre as pessoas vivas. O que acontece é que há toda uma história nem sempre feliz do amor que faz que seja entendido que o amor numa certa idade seja natural, e que noutra idade extrema poderia ser ridículo. Isso é uma ideia que ofende a disponibilidade de entrega de uma pessoa a outra, que é em que consiste o amor.
(p/Revista Máxima)
Os deuses, noutros tempos, eram nossos
Porque entre nós amavam. Afrodite
Ao pastor se entregava sob os ramos
Que os ciúmes de Hefesto iludiam.
Da plumagem do cisne as mãos de Leda,
O seu peito imortal, o seu regaço,
A semente de Zeus, dóceis, colhiam.
Entre o céu e a terra, presidindo
Aos amores de humanos e divinos,
O sorriso de Apolo refulgia.
Quando castos os deuses se tornaram,
O grande Pã morreu, e órfão dele,
Os homens não souberam e pecaram.