Poemas de Caio Fernando Abreu
Você fala em casar. Algum tempo atrás falei nisso talvez por romantismo, por solidão ou brincadeira, ou mesmo seriamente. Não quero casar. Casamento é uma coisa completamente estúpida.
Olha, eu estou te escrevendo só pra dizer que se você tivesse telefonado hoje eu ia dizer tanta, mas tanta coisa. Talvez mesmo conseguisse dizer tudo aquilo que escondo desde o começo, um pouco por timidez, por vergonha, por falta de oportunidade, mas principalmente porque todos me dizem que sou demais precipitado, que coloco em palavras todo o meu processo mental (processo mental: é exatamente assim que eles dizem, e eu acho engraçado) e que isso assusta as pessoas, e que é preciso disfarçar, jogar, esconder, mentir. Eu não achei que ia conseguir dizer, quero dizer, dizer tudo aquilo que escondo desde a primeira vez que vi você, não me lembro quando, não me lembro onde. Hoje havia calma, entende? Eu acho que as coisas que ficam fora da gente, essas coisas como o tempo e o lugar, essas coisas influem muito no que a gente vai dizer, entende? Pois por fora, hoje, havia chuva e um pouco de frio: essa chuva e esse frio parecem que empurram a gente mais pra dentro da gente mesmo, então as pessoas ficam mais lentas, mais verdadeiras, mais bonitas. Hoje eu estava assim: mais lento, mais verdadeiro, mais bonito até. Hoje eu diria qualquer coisa se você telefonasse. Por dentro também eu estava preparado para dizer, um pouco porque eu não agüento mais ficar esperando toda hora você telefonar ou aparecer...
Aos poucos vamos substituindo expressões fatais como “não resistirei” por outras mais mansas, como “sei que vai passar”.
Então chegou o outro. Primeiro por telefone, que era amigo-de-um-amigo-que-estava-viajando-e-recomendara-que-olhasse-por-ele. Se precisava de alguma coisa, se estava mesmo bem entre aspas. Tão irritante ser lembrado da própria fragilidade no ventre do janeiro tropical, quase expulso do Paraíso que a duras penas conquistara desde sua temporada particular no Inferno, teve o impulso bruto de ser farpado com o outro. A voz do outro. A invasão do outro. A gentil crueldade do outro, que certamente faria parte do outro Lado. Daquela falange dos Cúmplices Complacentes, vezenquando mais odiosa que os Sórdidos Preconceituosos, compreende? Mas havia algo — um matiz? — nessa voz desse outro que o fazia ter nostalgia boa de gargalhar rouco jogando conversa fora com outras pessoas de qualquer lado — que não havia lados, mas lagos, desconfiava vago —, como desde antes daquele agosto desaprendera de fazer. Ah, sentar na mesa de um bar para beber nem que fosse água brahma light cerpa sem álcool (e tão chegado fora aos conhaques) falando bem ou mal de qualquer filme, qualquer livro, qualquer ser, enquanto navios pespontavam a bainha verde do horizonte e rapazes morenos musculosos jogassem eternamente futebol na areia da praia com suas sungas coloridas protegendo crespos pentelhos suados, peludas bolas salgadas. Respirou fundo, lento, sete vezes perdoando o outro. E marcou um encontro.
Olhe, não fique assim, não vai passar. Eu sei que dói. É horrível. Eu sei que parece que você não vai aguentar, mas aguenta. Sei que parece que vai explodir, mas não explode. Sei que dá vontade de abrir um zíper nas costas e sair do corpo porque dentro da gente, nesse momento, não é um bom lugar para se estar. Dor é assim mesmo, arde, depois passa. [..] A vida é incontornável. A gente perde, leva porrada, é passado pra trás, cai. Dói, ai, eu sei como dói. Mas passa. Está vendo a felicidade ali na frente? Não, você não está vendo, porque tem uma montanha de dor na frente. Continue andando. Você vai subir, vai sentir frio lá em cima, cansaço. Vai querer desistir, mas não vai desistir, porque você é forte e porque depois do topo a montanha começa a diminuir e o único jeito de deixá-la pra trás é continuar andando. Você vai ser feliz.
Como pode? Duas pessoas tão diferentes se amarem a ponto de não conseguirem desviar os pensamentos um do outro? Certo dia me perguntaram: Porque você se apaixonou? Eu respondi: Não sei… E talvez continue não sabendo. Eu simplesmente amo, acordo e vou dormir com ele nos meus pensamentos. E como podemos deixar que nossas diferenças nos afetem? Por que diante do amor, nós (humanos) somos às vezes tão racionais? Por que deixamos que o jardim tenha ervas daninhas? Respostas que eu não tenho.
Claro, o dia de amanhã cuidará do dia de amanhã e tudo chegará no tempo exato. Mas e o dia de hoje? Não quero saber de medo, paciência, tempo que vai chegar. Não negue, apareça. Seja forte. Porque é preciso coragem para se arriscar num futuro incerto. Não posso esperar.
(…) Pode fazer um pedido. Ou três. Sempre faço. Quando são três, em geral, esqueço dois. Um nunca esqueci. Um sempre pedi: amor.
Por trás do que acontecia, eu redescobria magias sem susto algum. E de repente me sentia protegido, você sabe como: a vida toda, esses pedacinhos desconexos, se armavam de outro jeito, fazendo sentido. Nada de mal me aconteceria, tinha certeza, enquanto estivesse dentro do campo magnético daquela outra pessoa. Os olhos da outra pessoa me olhavam e me reconheciam como outra pessoa, e suavemente faziam perguntas, investigavam terrenos: ah você não come açúcar, ah você não bebe uísque, ah você é do signo de Libra. Traçando esboços, os dois. Tateando traços difusos, vagas promessas.
Ninguém precisa se assustar com a distância, os afastamentos que acontecem. Tudo volta! E voltam mais bonitas, mais maduras.
Claro, o dia de amanhã cuidará do dia de amanhã e tudo chegará no tempo exato. Mas e o dia de hoje? Não quero saber de medo, paciência, tempo que vai chegar. Não negue, apareça. Seja forte. Porque é preciso coragem para se arriscar num futuro incerto.
Sabe o que eu sinto? Tem duas coisas me puxando, dois tipos de vida — e eu não quero nenhum deles. Quero um terceiro, o meu.
A primeira vez que conversamos eu chorei depois a noite inteira, porque ele inteirinho me doía, porque parecia se doer também.
O meu maior medo já aconteceu, era te perder. E o segundo maior está acontecendo: não conseguir te esquecer.
No fim desses dias encontrar você que me sorri, que me abre os braços, que me abençoa, e passa a mão na minha cara marcada, no que resta de cabelos na minha cabeça confusa, que me olha no olho.