Pessoa Ofendida
O Mal em MimNão sou capaz de explicar a sensação do mal em mim; representava, nesse período da minha vida de que falo, a fonte de uma angústia inexprimível. Os homens constroem teorias estranhas sobre o bem e o mal, sobre os castigos e as recompensas; procuram assim a verdade que nunca em vida poderão saber.
Foi muito bom para mim e para a minha família o facto de eu ter sempre ficado em casa e conservado sem esforço o meu antigo modo de ser calmo até aos quinze anos. Nessa altura, porém, mandaram-me para uma escola longe da minha casa, onde o ser latente em mim que tanto temia despertou e começou a agir e a insinuar-se na vida humana.
Quando digo que sentia haver muito mal dentro de mim, não quero dizer que estivesse desde sempre condenado a uma vida de infâmia ou de vício. Quero dizer, porém, isto — que havia em mim uma forte atracção por todas as coisas censuráveis que assediam o homem: podia controlar ou podia satisfazer esta atracção, mas uma vez satisfeita, mesmo só um pouco, era provável que eu nunca mais me pudesse controlar. Resolvi satisfazer essa atracção, e a partir desse momento, dava-me um prazer enorme explorar sempre novas espécies de mal.
Fernando Pessoa- manuscrito, original em Inglês (1904-1908)
Procurar o Sonho é Procurar a VerdadeA única realidade para mim são as minhas sensações. Eu sou uma sensação minha. Portanto nem da minha própria existência estou certo. Posso está-lo apenas daquelas sensações a que eu chamo minhas.
A verdade? É uma coisa exterior? Não posso ter a certeza dela, porque não é uma sensação minha, e eu só destas tenho a certeza. Uma sensação minha? De quê?
Procurar o sonho é pois procurar a verdade, visto que a única verdade para mim, sou eu próprio. Isolar-se tanto quanto possível dos outros é respeitar a verdade.
Fernando Pessoa, 'Textos Filosóficos'
Nada sou, nada posso, nada sigo.
Trago, por ilusão, meu ser comigo.
Não compreendo compreender, nem sei
Se hei de ser, sendo nada, o que serei.
Fora disto, que é nada, sob o azul
Do lato céu um vento vão do sul
Acorda-me e estremece no verdor.
Ter razão, ter vitória, ter amor.
Murcharam na haste morta da ilusão.
Sonhar é nada e não saber é vão.
Dorme na sombra, incerto coração.
O plano dela era bem simples: “Não se apegar a
mais ninguém”, daí vem você e estraga tudo! No
início, ela sentia medo, aliás muito medo. Ela
estava decidida que não iria querer mais, não
queria sentir mais aquele “friozinho na barriga”
ou passar noites pensando em como seria bom
estar nos braços de alguém. Mas agora, ela quer
continuar sentindo essa doideira que é estar
“afim” de alguém. E talvez, finalmente, deixar o
passado lá pra trás, esquecer dele e nunca mais
lembrar. Mas ela ainda sente meio que um medo,
mas não medo de gostar, mas de nada acontecer,
de estar colocando o coração nesse sentimento e
acabar tão rápido quanto começou. Ela é uma
pessoa complicada, muda de humor de uma hora
pra outra. E as vezes, se coloca tanto no lugar do
outro, que sofre até mais do que deveria. A
chatice dela parece não ter fim, e ela tem uma
mania de achar que tudo vai dar errado uma hora
ou outra, por isso tudo em relação a você, é tão
confuso pra ela. Bom, se você conseguir entender
isso, se conseguir entender esse jeito dela, então
as outras coisas vão sempre fazer sentido, mesmo
que ela não faça nenhum. E cara, não se assuste
com o jeito dela. O problema dela é ser intensa
demais, sentir demais. Mas apesar do que vai
acontecer ou não, pra ela, já valeu muito em ter
te conhecido. E sobre o futuro...Deus vai cuidar
de tudo!
"O homem mentalmente são não está certo de nada, isto é, vive numa incerteza mental constante; quer dizer, numa instabilidade mental permanente; e, como a instabilidade mental permanente é um sintoma mórbido, o homem são é um homem doente."
Às vezes, quando penso nos homens célebres, sinto por eles toda a tristeza da celebridade. A celebridade é um plebeísmo. Por isso deve ferir uma alma delicada. [...] O homem que se torna célebre fica sem vida íntima. Tornam-se de vidro as paredes da sua vida doméstica. [...] É preciso ser muito grosseiro para se poder ser célebre à vontade. [...] Todo o homem que merece ser célebre sabe que não vale a pena sê-lo. Deixar-se ser célebre é uma fraqueza, uma concessão ao baixo-instinto selvagem de querer dar nas vistas e nos ouvidos.
Tenho a náusea física da humanidade vulgar, que é, aliás, a única que há. E capricho, ás vezes, em aprofundar essa náusea, como se pode provocar um vomito para aliviar a vontade de vomitar.
Um dos meus passeios predilectos, nas manhãs em que temo a banalidade do dia que vai seguir como quem teme a cadeia, é o de seguir lentamente pelas ruas fora, antes da abertura das lojas e dos armazéns, e ouvir os farrapos de frases que os grupos de raparigas, de rapazes, e de uns com outras, deixam cair, como esmolas da ironia, na escola invisível da minha meditação aberta.
E é sempre a mesma sucessão das mesmas frases... «E então ela disse...» e o tom diz da intriga dela. «Se não foi ele, foste tu...» e a voz que responde ergue-se no protesto que já não oiço. «Disseste, sim senhor, disseste...» e a voz da costureira afirma estridentemente «minha mãe diz que não quer...» «Eu?» e o pasmo do rapaz que traz o lanche embrulhado em papel-manteiga não me convence, nem deve convencer a loura suja. «Se calhar era...» e o riso de três das quatro raparigas cerca do meu ouvido a obscenidade que (...) «E então pus-me mesmo dia nte do gajo, e ali mesmo na cara dele — na cara dele, hem, ó Zé...» e o pobre diabo mente, pois o chefe do escritório — sei pela voz que o outro contendor era chefe do escritório que desconheço — não lhe recebeu na arena entre as secretárias o gesto de gladiador de palhinhas [?] «... E então eu fui fumar para a retrete...» ri o pequeno de fundilhos escuros.
Outros, que passam sós ou juntos, não falam, ou falam e eu não oiço, mas as vozes todas são-me claras por uma transparência intuitiva e rota. Não ouso dizer — não ouso dizê-lo a mim mesmo em escrita, ainda que logo o cortasse — o que tenho visto nos olhares casuais, na sua direcção involuntária e baixa, nos seus atravessamentos sujos. Não ouso porque, quando se provoca o vómito, é preciso provocar um.
«O gajo estava tão grosso que nem via a escada.» Ergo a cabeça. Este rapazote, ao menos descreve. E esta gente quando descreve é melhor do que quando sente, porque por descrever esquece-se de si. Passa-me a náusea. Vejo o gajo. Vejo-o fotograficamente. Até o calão inocente me anima. Bendito ar que me dá na fronte — o gajo tão grosso que nem via que era de degraus a escada — talvez a escada onde a humanidade sobe aos tombos, apalpando-se e atropelando-se na falsidade regrada do declive aquém do saguão.
A intriga a maledicência, a prosápia falada do que se não ousou fazer, o contentamento de cada pobre bicho vestido com a consciência inconsciente da própria alma, a sexualidade sem lavagem, as piadas como cócegas de macaco, a horrorosa ignorância da inimportância do que são... Tudo isto me produz a impressão de um animal monstruoso e reles, feito no involuntário dos sonhos, das côdeas húmidas dos desenhos, dos restos trincados das sensações.
A gente se preenche aos poucos, as vezes até nos esvaziamos de coisas com as quais não nos identificamos mais. Com o tempo passamos a reconhecer melhor quem somos.
Nunca supus que isto que chamam morte
Tivesse qualquer espécie de sentido...
Cada um de nós, aqui aparecido,
Onde manda a lei e a falsa sorte,
Tem só uma demora de passagem
Entre um comboio e outro, entroncamento
Chamado o mundo, ou a vida, ou o momento;
Mas, seja como for, segue a viagem.
Passei, embora num comboio expresso
Seguisses, e adiante do em que vou;
No términus de tudo, ao fim lá estou
Nessa ida que afinal é um regresso.
Porque na enorme gare onde Deus manda
Grandes acolhimentos se darão
Para cada prolixo coração
Que com seu próprio ser vive em demanda.
Hoje, falho de ti, sou dois a sós.
Há almas pares, as que conheceram
Onde os seres são almas.
Como éramos só um, falando! Nós
Éramos como um diálogo numa alma.
Não sei se dormes [...] calma,
Sei que, falho de ti, estou um a sós.
É como se esperasse eternamente
A tua vida certa e conhecida
Aí em baixo, no café Arcada —
Quase no extremo deste [...]
Aí onde escreveste aqueles versos
Do trapézio, doriu-nos [...]
Aquilo tudo que dizes no «Orpheu».
Ah, meu maior amigo, nunca mais
Na paisagem sepulta desta vida
Encontrarei uma alma tão querida
Às coisas que em meu ser são as reais.
[...]
Não mais, não mais, e desde que saíste
Desta prisão fechada que é o mundo,
Meu coração é inerte e infecundo
E o que sou é um sonho que está triste.
Porque há em nós, por mais que consigamos
Ser nós mesmos a sós sem nostalgia,
Um desejo de termos companhia —
O amigo como esse que a falar amamos.
Dizem que as flores são todas
Palavras que a terra diz.
Não me falas: incomodas.
Falas: sou menos feliz.
Duas horas te esperei
Dois anos te esperaria.
Dize: devo esperar mais?
Ou não vens porque inda é dia?
Estas coisas fazem sofrer, mas o
sofrimento passa. Se a vida,
que é tudo, passa por fim,
como não hão de passar o amor e a dor,
e todas as mais coisas, que não são
mais que partes da vida?
[...]
Por isso na orla morena da praia calada e só,
Tenho a alma feita pequena, livre de mágoa e de dó;
Sonho sem quase já ser, perco sem nunca ter tido,
E comecei a morrer muito antes de ter vivido.