Perda e Dor, Clarice Lispector
Nós ainda somos moços, podemos perder algum tempo sem perder a vida inteira. Mas olhe para todos ao seu redor e veja o que temos feito de nós e a isso considerado vitória nossa de cada dia. Não temos amado, acima de todas as coisas. Não temos aceito o que não se entende porque não queremos passar por tolos. Temos amontoado coisas e seguranças por não nos termos um ao outro. Não temos nenhuma alegria que já não tenha sido catalogada. Temos construído catedrais, e ficado do lado de fora pois as catedrais que nós mesmos construímos, tememos que sejam armadilhas. Não nos temos entregue a nós mesmos, pois isso seria o começo de uma vida larga e nós a tememos. Temos evitado cair de joelhos diante do primeiro de nós que por amor diga: tens medo. Temos organizado associações e clubes sorridentes onde se serve com ou sem soda. Temos procurado nos salvar mas sem usar a palavra salvação para não nos envergonharmos de ser inocentes. Não temos usado a palavra amor para não termos de reconhecer sua contextura de ódio, de amor, de ciúme e de tantos outros contraditórios. Temos mantido em segredo a nossa morte para tornar nossa vida possível. Muitos de nós fazem arte por não saber como é a outra coisa. Temos
disfarçado com falso amor a nossa indiferença, sabendo que nossa indiferença é angústia disfarçada. Temos disfarçado com o pequeno medo o grande medo maior e por isso nunca falamos no que realmente importa. Falar no que realmente importa é considerado uma gafe. Não temos adorado por termos a sensata mesquinhez de nos lembrarmos a tempo dos falsos deuses. Não temos sido puros e ingênuos para não rirmos de nós
mesmos e para que no fim do dia possamos dizer "pelo menos não fui tolo" e assim não ficarmos perplexos antes de apagar a luz. Temos sorrido em público do que não sorriríamos quando ficássemos sozinhos. Temos chamado de fraqueza a nossa candura. Temo-nos temido um ao outro, acima de tudo. E a tudo isso consideramos a vitória nossa de cada dia.
Perdi alguma coisa que me era essencial, que já não me é mais. Não me é necessária, assim como se eu tivesse perdido uma terceira perna que até então me impossibilitava de andar, mas que fazia de mim um tripé estável.
Quando me traíram ou assassinaram, quando alguém foi embora para sempre, ou perdi o que de melhor me restava, ou quando soube que vou morrer – eu não como. Não sou ainda esta potência, esta construção, esta ruína. Empurro o prato, rejeito a carne e seu sangue.
Meu trabalho é o de viver os meus prazeres e as minhas dores. É necessário que eu tenha a modéstia de viver.
Quero saber o que mais, ao perder, eu ganhei. Por enquanto não sei: só ao me reviver é que vou viver.
Porque (...) se sendo gente eu consigo ir, por que haveria de perder essa capacidade ao me tornar mais gente?
O telefone não toca. Dói. Mas é Deus que me poupa.
Fiz do meu prazer e da minha dor o meu destino disfarçado. E ter apenas a própria vida é [...] um sacrifício. Como aqueles que, no convento, varrem o chão e lavam a roupa, servindo sem a glória de função maior, meu trabalho é o de viver os meus prazeres e as minhas dores. É necessário que eu tenha a modéstia de viver.
O melhor era mesmo calar. Outra coisa: se tinha alguma dor e se enquanto doía ela olhava os ponteiros do relógio, via então que os minutos contados no relógio iam passando e a dor continuava doendo. Ou senão, mesmo quando não lhe doía nada, se ficava defronte do relógio espiando, o que ela não estava sentindo também era maior que os minutos contados no relógio. Agora, quando acontecia uma alegria ou uma raiva, corria para o relógio e observava os segundos em vão.
Se não buscasse um deus exterior terminaria por endeusar-se, por explorar sua própria dor, amando seu passado, buscando refúgio e calor em seus próprios pensamentos, então já nascidos com uma vontade de obra de arte e depois servindo de alimento velho nos períodos estéreis. Havia o perigo de se estabelecer no sofrimento e organizar-se dentro dele, o que seria um vício também e um calmante.
E amanhã eu vou ter de novo um hoje. Há algo de dor e pungência em viver o hoje.
A cruz deles é esquecer-se de sua própria dor. É nesse esquecer-se que acontece então o fato mais essencialmente humano, aquele que faz de um homem a humanidade: a dor pessoal adquire uma vastidão em que os outros todos cabem e onde se abrigam e são compreendidos; pelo que há de amor na renúncia da dor pessoal, os quase mortos se levantam.
Mas eu quero visitas, dizia, elas me distraem da dor terrível.
Lírios brancos encostados à nudez do peito. Lírios que eu ofereço e ao que está doendo em você. Pois nós somos seres e carentes. Mesmo porque estas coisas – se não forem dadas – fenecem.
O prazer nascendo dói tanto no peito que se prefere sentir a habituada dor ao insólito prazer.
Gostar de estar vivo dói.
Do momento em que me resignei, perdi toda a vivacidade e todo interesse pelas coisas. Você já viu como um touro castrado se transforma num boi? assim fiquei eu...
"Libertar" era uma palavra imensa, cheia de mistérios e dores.
Um domingo de tarde sozinha em casa dobrei-me em dois para a frente – como em dores de parto – e vi que a menina em mim estava morrendo.
E poucos suportam perder todas as outras ilusões. Há os que se voluntariam para o amor, pensando que o amor enriquecerá a vida pessoal. É o contrário: amor é finalmente a pobreza. Amor é não ter. Inclusive amor é a desilusão do que se pensava que era amor.